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A experiência humana da dor: em busca de um sentido

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 190-195)

Culpa e castigo

6.3 A experiência humana da dor: em busca de um sentido

A temática da dor e da crueldade ocupa um lugar de grande importância na obra de Nietzsche. Guardando estreita relação com os temas tratados neste capítulo, parece-nos importante abordá-la aqui, segundo três aspectos: a dor que se causa ao outro, a dor que se causa a si mesmo, a interpretação do sentido da dor.

Se a submissão do inimigo, a guerra, o castigo e outras maneiras de infligir dor a outrem são um passo constitutivo da pré-história do homem, também a constitui, de forma essencial, o infligir dor a si mesmo _ essa característica singular do animal humano, resultante, segundo a Genealogia, da repressão dos instintos agressivos que gera a má consciência. Ainda, um outro aspecto relativo à experiência humana da dor é amplamente explorado, qual seja, a necessidade humana de dar um sentido ao sofrimento.

Em Humano, demasiadamente humano, Nietzsche defende a “inocência das más ações”: aquele que inflige dor a outrem, movido pelo prazer de aumentar o próprio poder, não tem como avaliar como será experimentada esta dor. “Alguma vez se sabe inteiramente quanto mal faz uma ação a um outro ser?” (HDH,104). Podemos apenas inferir essa dor por analogia, o que não nos permite de forma alguma apreender o seu grau, nem experimentar os efeitos que provoca naquele que a sofre. Dessa forma, nem a crueldade é reprovável como se pensa, nem é meritória a compaixão: quer causando um sofrimento, quer compadecendo-nos dele, referimo-nos a algo que não podemos verdadeiramente conhecer. Por outro lado, são frequentes as observações sobre o prazer na agressividade, que intensifica o sentimento de poder.

É essencial, entretanto, na abordagem de Nietzsche, a percepção de que a crueldade do homem pode voltar-se para ele próprio, assim promovendo igualmente a intensificação do sentimento de poder. Essa percepção tem como correlata uma outra, qual seja, a extraordinária plasticidade dos instintos quanto aos modos pelos quais podem obter satisfação ou descarga.

São bastante elucidativas a este respeito as passagens dedicadas à psicologia dos santos e ascetas, em Humano, demasiadamente humano. O homem pode tanto vingar-se

terrivelmente quanto refratar de forma igualmente terrível sua necessidade de vingança; o sacrifício de si mesmo pode satisfazê-lo tanto ou mais quanto o de outro: o que lhe importa, em qualquer caso é a descarga de sua emoção, a qual não tem como condição a satisfação do instinto através de seu objeto inicial. A descarga pode ser obtida tanto através da satisfação quanto do domínio do afeto intenso que impele a buscá-la; neste último caso, o que sucede, na verdade, “é a substituição de uma idéia pela outra, enquanto o ânimo mantém...seu mesmo nível” (HDH, 138).

O desafio de si mesmo presente em diferentes formas de ascese é destacado como uma forma singular de exercício do poder, pela qual alguns homens, na falta de outros objetos, recorrem à tiranização de partes do seu próprio ser (HDH, 137). Até mesmo a subordinação à vontade de um outro, ou a uma lei, é um meio poderoso de tornar-se senhor de si mesmo (HDH, 139); o mais extremo anseio de poder pode ser satisfeito ao travestir-se na mais extrema humilhação. Aquele que se auto-mortifica, ademais, adquire poder sobre os outros: impõe respeito e temor ao expor-se ao olhar de todos como um espetáculo terrível que faz tremer (HDH, 141). Finalmente, o estímulo doloroso é buscado como meio de escapar ao torpor e ao tédio, de tal forma que a tortura de si mesmo, a luta constante, a alternância de vitórias e derrotas, são formas de lutar contra a fadiga da própria vontade de viver (HDH, 140). Fazer com que o homem se sinta pecador é uma forma de estimular, vivificar a qualquer preço, diz Nietzsche, indicando a possibilidade do uso da dor como estimulante pelo sacerdote ascético, desenvolvida na Terceira Dissertação da Genealogia da Moral.

“O homem tem autêntica volúpia em se violentar por exigências excessivas, e depois endeusar em sua alma este algo tirânico” (HDH, 137), diz Nietzsche. Essa tiranização de si mesmo guarda estreita relação com a esfera da sexualidade, “numa espécie rara de volúpia à qual todas as outras estão atadas” (HDH, 142 ). O parentesco entre crueldade e volúpia, aproximadas pela religião, é frequentemente assinalado noutras passagens. A cadela sensualidade mendiga com bons modos um pedaço de espírito quando lhe negamos carne, observa mordazmente Zaratustra; a mórbida lascívia presente no sentimento de culpa, e nos modos pelos quais o estimula o sacerdote ascético, é ressaltada na Genealogia da moral.

Na moralidade do costume pré-histórica, de costumes estritos e severos, os atos do homem cruel reanimam a comunidade, dela afastando o temor e o excesso de cautela. A crueldade, “uma das mais velhas alegrias festivas da humanidade” (A, 18), encontra

vazão nas guerras, nos castigos, no escárnio do inimigo vencido, na hostilidade ao infrator dos costumes _ mas também na dureza para consigo e no martírio voluntário. O tema da crueldade para com outrem, portanto, mais uma vez invoca o seu inverso. As privações e mortificações de uma vida austera são estimadas como virtude no seio da moralidade do costume. Dado o valor atribuído ao trato rigoroso de si mesmo, aqueles que transgridem os velhos costumes encontram alívio para o mal estar assim causado a si mesmos e à comunidade em formas diversas de auto-sacrifício. O jejum, a abstinência sexual, o exílio no deserto, a auto-tortura, eram maneiras pelas quais estes indivíduos reasseguravam-se da fé em si. A própria loucura, ou a simulação dela, torna-se um recurso para aliviar o remorso do portador de novas idéias, infundindo-lhe reverência e temor para consigo, e despertando nos demais os mesmos sentimentos (A, 14). Esses são passos necessários da mudança através da qual as novas idéias substituem gradativamente as velhas, movendo algo “no pântano dos velhos costumes”: os desviantes tornam-se pajés ou curandeiros, guias espirituais e legisladores, instituindo novos costumes e novas leis.

Além dessa análise da crueldade para com outrem ou para consigo, em Aurora desenvolve-se também uma constatação já presente em Humano, demasiadamente

humano, qual seja, o fato de que os instintos podem descarregar-se e obter algum grau

de satisfação através de diferentes e contraditórias maneiras.60. Contudo, a existência de

uma pluralidade de maneiras para enfrentar a força de um instinto dado não significa que o querer fazê-lo, ou até mesmo escolher por qual dessas maneiras o faremos, esteja em nosso poder; não é, como nos parece, o nosso intelecto que se opõe a ele, e sim um outro impulso, seu rival, do qual muitas vezes não temos sequer consciência (A, 109). Não só os instintos conflitam entre si, à revelia do intelecto, como recebem valorações diferentes, que não são intrínsecas a eles próprios, e sim resultantes da interpretação vigente numa determinada moral; da mesma forma, o prazer ou desprazer que causam variam conforme essa interpretação, de tal forma que um mesmo instinto pode acompanhar-se tanto do sentimento penoso da covardia, quanto do sentimento agradável da humildade (A, 38).

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Nietzsche elenca vários modos pelos quais se podem combater a veemência de um impulso: evitar as ocasiões de satisfazê-lo, até extinguir sua força; satisfazê-lo de forma estritamente regular, ganhando intervalos nos quais não se sente seu incômodo; satisfazê-lo desenfreadamente, até a saciedade e o nojo; ligar sua satisfação a um pensamento doloroso, a tal ponto que esta satisfação venha por si mesma a causar dor; deslocar a energia que lhe é própria para um trabalho exaustivo; oprimir a organização física e

Ao abordar essas reflexões sobre a dor e a crueldade, vimos como, segundo Nietzsche, os instintos agressivos e sexuais do homem se entrelaçam, combatem-se uns aos outros, voltam-se contra eles próprios, obtêm modos diferentes de gratificação e descarga, produzem de maneiras diversas dor e prazer. Entretanto, há ainda uma outra e importante vertente pela qual Nietzsche aborda o sofrimento do homem, seja o que impõe a outrem, seja o que impõe a si mesmo, seja aquele que lhe é imposto pela natureza: a necessidade de dar-lhe um sentido. “O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas sua falta de sentido” (GM, II, 7).

Ao referir-se à antiga interpretação do sofrimento humano como espetáculo para a distração divina, o filósofo atribui a invenção mesma dos deuses à necessidade de fazer desaparecer do mundo o sofrimento oculto e não testemunhado: “É justificado todo mal cuja visão distrai um deus” (GM, II, 7). Até mesmo a invenção humana do livre arbítrio, ironiza Nietzsche, é uma forma de distrair esses divinos espectadores, que acabariam por enfadar-se de um mundo regido por um estrito determinismo.

Na vigência da moralidade do costume, supõe-se que agradam aos deuses os sacrifícios cruéis, inclusive os auto-sacrifícios. O rigor da vida que se impõem os indivíduos representa uma virtude que faz a comunidade cheirar bem junto aos deuses (A,18); também as terríveis formas de martírio voluntário visam apaziguar as divindades. A interpretação cristã da existência vem refinar as formas desse sofrimento auto-imposto, como argumenta exaustivamente Nietzsche, desde a abordagem da psicologia dos santos, em Humano, demasiadamente humano, até a descrição dos meios empregados pelo sacerdote ascético para lidar com o sofrimento e com a exaustão da vida, na Genealogia da moral.

Esse refinamento consiste, sobretudo, na criação e na intensificação crescente do sentimento de culpa.As tentativas do homem para atribuir uma causa ao seu sofrimento caminham no sentido de uma culpabilização crescente: primeiro, o homem vê em todo infortúnio uma coisa pela qual deve fazer o outro sofrer; depois, um castigo, finalmente, um meio de livrar-se da culpa (A, 15). Causa e efeito são entendidos como causa e punição, de tal forma que as causas tornam-se pecadoras, e as consequências algozes. Dessa maneira, cria-se um círculo vicioso pelo qual o sofrimento, inicialmente evitado, torna-se procurado. Como dirá Nietzsche na Genealogia da moral, a vitória do

sacerdote ascético é assegurada quando o homem, já não se queixa da dor, e sim anseia por ela, pedindo por mais dor (GM, III, 20)61.

Se os instintos sexuais ou agressivos podem satisfazer-se tanto de um determinado modo como de modo inverso, tanto pela satisfação direta ou substitutiva, não é indiferente, todavia, para os fins de aprimoramento da cultura ou do indivíduo, a forma pela qual encontram descarga. Por um lado, a satisfação direta e imediata do instinto seria incompatível com as organizações sociais humanas. Por outro, as inversões e substituições do seu modo primitivo de satisfação vêm conduzindo, segundo Nietzsche, a uma tirânica desnaturalização do homem.

Cabe indagar como pensa o filósofo, ou que indícios nos dá a este respeito, quanto a outras possibilidades de lidar com a dor. Não se trata, obviamente, de uma busca do prazer a todo custo, nem da proteção temerosa contra todo sofrimento: afinal, prazer e desprazer se misturam e se intercambiam no jogo dos instintos, sendo impossível reduzir a atividade humana à procura do primeiro e à evitação do segundo. Um problema importante parece residir no fato de que o homem, às voltas com esse complexo jogo pulsional sobre o qual não detém nenhum controle consciente, insiste todavia em acreditar-se livre e responsável _ e assim, culpabiliza a si mesmo, os outros homens e o devir. O que significaria reconquistar a inocência tanto na felicidade quanto na dor, dando-lhes novo sentido?

A dor causada ao homem pelas forças da natureza, inclusive da sua própria, que não se pode evitar ou contornar, torna-se insuportável quando sofrida em estado bruto. O que reprova Nietzsche não é a busca de sentido para a dor em si mesma, e sim a direção que lhe imprimiu o ideal ascético, refinando e multiplicando infinitamente o sofrimento humano. Essa direção não sendo dada, não se encontrando inscrita no universo, foi preciso inventá-la; ora, se o fizemos de uma certa maneira, poderíamos, em princípio ao menos, também experimentar uma outra, diferente ou mesmo oposta.

O homem, que hoje conhece as mais requintadas formas de infligir sofrimento a si e aos demais, tornou-se, segundo Nietzsche, amolecido e pouco viril. Para recuperar sua força, esses instintos agressivos necessitariam encontrar formas de sublimação ativas, sem o caráter sub-reptício e mendaz daquelas que lhe oferece o ideal ascético. A ideia

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Dessa forma, nosso planeta, visto de um astro distante, deve parecer “a estrela ascética por excelência, um canto de criaturas que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida, e que a si mesmas infligem o máximo de dor possível, por prazer em infligir dor _ provavelmente o seu único prazer” (GM, III, 11).

mesma de adestramento do homem tampouco pode ser dispensada, e talvez nem mesmo se possa retirar da dor o papel que aí desempenha. Da mesma forma, toda auto- disciplina acarreta uma dimensão dolorosa. No pensamento de Nietzsche, não há uma negação da dureza para consigo ou com os outros; a “grande saúde” não se obtém no repouso nem visa atingi-lo, comportando risco e sofrimento. Se a extraordinária plasticidade dos instintos do homem permitiu seu direcionamento para estranhas e mórbidas formas de satisfação, afastando-os das formas primitivas, seria preciso dar- lhes outro endereço. Como seria possível adestrar _ a si mesmo ou a outrem _ sem amansar, envergonhar, tornar inofensivo?

O exame das formas pelas quais regulam os homens suas relações, através do direito e da justiça, ajuda-nos nesta reflexão.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 190-195)

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