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Necessidade e liberdade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 71-74)

A vontade a partir do cristianismo

2.1 A vontade em Santo Agostinho

2.1.2 A discussão de O Livre arbítrio

2.1.2.3 Necessidade e liberdade

De onde procede, todavia, insiste Evódio, esta inclinação pela qual a vontade afasta- se do bem universal e imutável? Se a inclinação aos bens inferiores é natural à vontade, tal como ela nos foi dada, então ela tem necessariamente de voltar-se para tais bens. Ora, não se pode descobrir culpa alguma onde a necessidade e a natureza dominam (LA, III, 1,1).

Vemos delinear-se, pois, em Agostinho, a distinção entre a necessidade da natureza e a liberdade da vontade. Sendo natural à pedra o movimento pelo qual cai em virtude do seu próprio peso, ela não pode ser censurada por isso; mesmo se o seguisse para sua própria perda, seria constrangida a tal pela necessidade da natureza. Portanto, o movimento pelo qual a alma se afasta do bem, para ser considerado culpável, não lhe

pode ser natural. Já se estabelecera, no início do diálogo, que a alma não pode ser constrangida ao pecado por outrem, nada sujeitando o espírito à paixão senão a sua própria vontade. Dessa forma, o movimento em questão lhe é próprio, mas voluntário, e não natural. A pedra não possui nem o poder de reter o movimento que a arrasta, nem pode não o querer; ela não comete pecado, pois, quando tende para baixo em virtude de seu peso. Ao contrário, podemos acusar a alma de pecado, quando ela prefere os bens inferiores, afastando-se do. bem verdadeiro, segundo um movimento voluntário e posto sob o nosso poder (LA, III, 1,3).

Essa distinção entre a necessidade da natureza, na qual não pode existir defeito nem culpa, e a liberdade da vontade, é reiterada mais adiante, quando Agostinho distingue entre a corrupção natural às coisas transitórias, que não é reprovável, e o vício, que o é. Uma natureza mais forte pode corromper outra mais fraca, sem que haja vício nem de um lado nem de outro: não censuramos o homem que procura seu sustento nos frutos da terra, nem esses frutos pelo fato de se corromperem ao serem consumidos como alimento. Tampouco é reprovável que os seres temporais despareçam, não tendo recebido o poder de existir por mais tempo: se assim não fosse, as coisas futuras não poderiam suceder às passadas, impedindo os “poemas temporais” de se desenvolverem em sua espécie de beleza. Igualmente, não há culpa no ser que não recebeu a capacidade de ser mais perfeito Portanto, se o homem tivesse sido criado de tal modo que pecasse inevitavelmente, seu dever seria pecar, assim seguindo a lei da natureza (LA, III, 14, 39- 41). Diferentemente, o vício, que não pertence à natureza, é reprovável. Ninguém é obrigado por sua natureza a pecar. Contudo, existe culpa no caso de uma criatura recusar-se a ser o que tinha o poder de ser, se o quisesse; ou seja, se não fizer o que devia, tendo recebido uma vontade livre e uma capacidade suficientemente grande para tal (LA, III, 14, 40).

Não residindo a raiz dos males na natureza, qual poderia ser a causa determinante da vontade? Ela possui em si mesma um poder causal, sendo a causa primeira do pecado. Sendo assim, é ocioso indagar a causa do mesmo ato da vontade; caso se pudesse encontrá-la, perguntaríamos, ainda, qual a causa dessa causa, tornando infindável a busca (LA, II, 17, 47). Encontramos aqui, portanto, a ideia da causalidade da vontade. Mais uma vez reitera Agostinho: não se pode encontrar nada que esteja em nosso poder senão aquilo que fazemos quando o queremos. Eis por que nada se encontra tão

plenamente em nosso poder do que a própria vontade: desde que o queiramos, está sem demora disposta à execução. Não envelhecemos ou morremos voluntariamente, mas por necessidade; entretanto, ninguém ousaria declarar que não queiramos voluntariamente aquilo que queremos (LA, III, 3, 8).

Evódio, porém, coloca ainda uma outra questão: conhecendo Deus antecipadamente todas as coisas futuras, como poderíamos vir a pecar, senão necessariamente? Prevendo Ele o pecado como futuro, este devia inevitavelmente realizar-se. Como pode existir uma vontade livre onde uma necessidade tão inevitável é evidente? Não haveria, pois, decisão voluntária no pecado, mas sim irrecusável necessidade (LA, III, 2, 1).

A argumentação subsequente buscará demonstrar que não existe incompatibilidade entre a presciência divina e a vontade livre do homem. Deus estabeleceu, uma vez por todas, como deve decorrer a ordem do universo que criou. Se alguém deve ser feliz futuramente, Ele o sabe. Será voluntária ou necessariamente que essa felicidade se realizará? A vontade de Deus, é certo, constitui para sua criatura uma necessidade. Mas isso não quer dizer que, quando vier a ser feliz, ela o será contra a sua própria vontade. Assim, também a vontade culpável, se acaso estiver no homem, não deixará de ser vontade livre, pelo fato de Deus ter previsto sua existência futura. Portanto, ainda que Deus preveja as nossas vontades futuras, não se segue que não queiramos algo sem vontade livre (LA, III, 6, 8).

Évodio não vê ainda como podem não se contradizer estes dois fatos: a presciência divina de nossos pecados e a nossa liberdade de pecar. Como aquilo que Deus previu não pode deixar de acontecer necessariamente, como não se há de atribuir a Ele o que em suas criaturas inevitavelmente acontece? E, por conseguinte, em virtude de que justiça castiga os pecados que não podem deixar de acontecer (LA, III, 4, 9)?

Deus prevê os que hão de pecar por própria vontade, sem todavia forçar ninguém a fazê-lo, responde Agostinho. Assim como o homem, ao lembrar os acontecimentos passados, não os força a se realizarem, Deus tampouco força os acontecimentos futuros ao prevê-los. Ainda, assim como lembramos certas coisas que fizemos, e todavia não fizemos todas as coisas de que nos lembramos, do mesmo modo Deus prevê tudo aquilo de que Ele mesmo é o autor, sem, contudo ser o autor de tudo o que prevê. Por que,

pois, como justo juiz, não puniria ele os atos que Sua presciência não forçou o homem a cometer? (LA, III, 4, 9-11)

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 71-74)

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