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O direito e a justiça: um instável equilíbrio

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 195-200)

Culpa e castigo

6.4 O direito e a justiça: um instável equilíbrio

É bem conhecida a ideia da justiça como equilíbrio, figurada pela deusa de olhos vendados com a balança nas mãos. Contudo, esse equilíbrio, em Nietzsche, é pensado de uma outra maneira, segundo os embates da vontade de poder.

Já examinamos, no primeiro capítulo, como a justiça adquire um valor crescente na

história dos gregos, substituindo, ao menos parcialmente, a arete da coragem e da destreza. Vimos também como, diante da problematização do conceito pelos sofistas, a filosofia socrático-platônica procura fundamentá-lo, fazendo-o derivar de uma ordem inerente aos cosmos. Aqui se encontra presente a ideia de equilíbrio, no sentido de harmonia e adequação.

Contudo, a forma de pensar o equilíbrio em causa na justiça é buscada por Nietzsche num terreno bem diferente: em Tucídides, cujo realismo lhe parece bem mais corajoso que o idealismo de Platão (CI, X, 20). Em Humano, demasiadamente humano, Nietzsche relembra e endossa a concepção do historiador grego: a justiça tem origem quando não existe preponderância reconhecível entre as partes em disputa, tornando-se preferível o acordo ao combate.

Em sua aparente simplicidade, essa concepção desloca a idéia da justiça do âmbito de um acordo ou adequação referido a um terceiro termo exterior ao conflito, a alguma espécie de juízo universal, para situá-la no equilíbrio obtido no interior do conflito mesmo, e através dele. As regras que se instauram a partir daí não provêm de nenhuma

ordenação ou hierarquia previamente existentes, mas resultam de um acordo tornado necessário pela equivalência entre as forças em combate, podendo ser a qualquer momento subvertido quando um dos lados conquistar predominância. Pode-se aplicar a essa figura o caráter anti-teleológico dos embates das vontades de poder.

Mais adiante, ao referir-se ao homem poderoso que funda o Estado ao subjugar os mais fracos, Nietzsche observa que ele tem o direito de fazê-lo, muito simplesmente porque não há direito que o possa impedir (HDH, 99) _ como não há, acrescentamos, nenhuma forma de ordenação vigente entre os mais fracos que a nova ordem instituída a partir do seu assujeitamento não venha substituir e suplantar. Por conseguinte, não há conquista de direito que não se faça preceder pelo exercício de um poder.

Em um aforismo de O andarilho e sua sombra, intitulado justamente O princípio do

equilíbrio, Nietzsche recusa qualquer distinção moral essencial entre o comerciante e o

pirata. Tal distinção igualmente inexiste entre o salteador e o poderoso que dele defende a comunidade; a diferença reside apenas em que, na promessa do segundo de manter o equilíbrio com relação ao primeiro, os fracos vêem uma possibilidade de viver de forma mais pacífica e regular. Eles não se submeteriam nem a um nem a outro se fossem fortes o bastante para enfrentá-los; não o sendo, organizam-se em comunidade para obter em relação a eles ao menos um equilíbrio de forças. Nesse sentido, e não naquele de uma ordenação moral, reafirma Nietzsche: “Equilíbrio é a base da justiça”.

A mesma ideia é retomada em Aurora: “Onde o direito predomina, um certo estado e grau de poder é mantido” (A, 122). Nossos direitos cessam quando se abala o nosso poder, e, quando nosso poder cresce, diminuem os direitos dos outros sobre nós, segundo configurações sempre instáveis, sem relação com uma suposta ordem exterior a elas nas quais se poderiam inspirar, ou que deveriam fazer cumprir.

Em diversas passagens, as relações entre vingança e justiça são examinadas. A vingança cega, instintiva, pessoal, pertence a um estado primitivo da cultura, sendo pouco a pouco regrada pelo recurso às leis e à instituição do castigo. Até mesmo formas antigas de represália, como aquela expressa na lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, visam restaurar um equilíbrio já conquistado que o agravo inicial prejudicou, encontrando-se num estágio evolutivamente superior àquele em que se pratica a “vingança de cego amargor”.

A concepção nietzscheana da justiça opõe-se àquelas que tentam buscar sua origem na vingança, ou encontrar uma relação consubstancial entre ambas, tal como se lê na

Genealogia da moral. Ao pensar assim, ele nos diz, somos levados a situar a justiça no

âmbito dos sentimentos reativos, ou seja, do ressentimento, quando este seria, justamente, o último terreno conquistado por ela. “Em toda parte onde se exerce...a justiça, vemos um poder mais forte, que busca meios de pôr fim, entre os mais fracos a eles subordinados, ao fluxo insensato do ressentimento”, opondo aos sentimentos de rancor a instituição da lei. Isso não significa que a lei seja mais justa do que esses sentimentos; ela os subordina a si não por possuir um valor moral intrinsecamente maior, e sim por meio da coerção e da autoridade _ exercidas, porém, ativa e não reativamente. Nietzsche faz derivar a instituição da justiça daquelas mesmas forças ativas e plásticas que levam os conquistadores a instituir violentamente o Estado. A exigência e a administração do direito pertencem à esfera dos homens ativos e agressivos, numa etapa já mais avançada da cultura (GM, II, 11).

Aqui, a doutrina da vontade de poder é mais uma invocada, como o será ainda a propósito do castigo, permitindo a Nietzsche desenvolver e refinar o equilíbrio em causa na justiça. Desprovida, como vimos, de qualquer feição teleológica, a vontade de poder não atua visando aplicar uma ordenação prévia; produz, em seus embates, ordenações provisórias, parciais, instáveis, que reinterpretamos, a posteriori, como a ordenação e a finalidade mesma das coisas. O que chamamos de direito é apenas um equilíbrio obtido dessa maneira. “A finalidade no direito é a última coisa a se empregar na história da gênese do direito.” Por conseguinte, não há uma ordem de direito concebida como geral e soberana, que viria a excluir enfim toda luta; os estados de direito não são senão estados de exceção, ou seja, “restrições parciais da vontade de vida que visa o poder”, numa luta incessante para criar maiores unidades de poder (GM, II, 11).

A vingança, como a gratidão, requer poder e força para a retribuição, sendo prerrogativa daqueles que podem dominar e impor; por outro lado, é a impotência de vingar-se que leva os fracos à apologia do perdão. Portanto, não se trata de condenar a vingança, ou qualquer outro impulso agressivo do homem, em nome da concórdia e da paz. Trata-se, primeiramente, de fazer ver que a vingança bruta, imediata, reflexa, seria incompatível com a manutenção e o avanço da organização social, requerendo, portanto, alguma regulação que a impeça de exercer-se desta maneira; é próprio da comunidade que cresce em poder impedir a livre descarga da ira coletiva sobre o malfeitor, protegendo-os, em especial, daqueles a quem prejudicou diretamente (GM, II, 10). Em

segundo lugar, trata-se de apontar o caráter insidioso, essencialmente reativo, daquela vingança que se encontra na origem da moral do ressentimento, relacionando-se à impossibilidade da descarga do afeto através da ação (GM, I, 10).

Uma tal vingança visa, ademais, alçar-se à esfera dos valores mais elevados, ao pretender conter em si a origem da justiça. Em primeiro lugar, a moral do ressentimento, no cristianismo, acaba por transmutar o prazer da vingança em justiça eterna _ veja-se a longa citação de Tertuliano feita por Nietzsche no parágrafo 15 da Primeira Dissertação, ao descrever o gozo dos eleitos na contemplação dos condenados ao inferno. Em segundo lugar, o filósofo denuncia o caráter essencialmente vingativo na origem das idéias modernas: segundo Zaratustra, o que os “pregadores da igualdade” chamam de justiça é, precisamente, que o mundo seja varrido pelos temporais da sua vingança (Z, II, Das tarântulas). Em terceiro, a vingança concebida nesse solo reativo aplica-se a uma irremissível condenação do devir: seu espírito nos aprisiona ao passado, ao supor que onde havia sofrimento deveria sempre haver castigo (Z, II, Da redenção). Tanto os valores religiosos de abnegação e humildade quanto os valores políticos de igualdade parecem a Nietzsche, pois, caracterizar-se por uma origem rancorosamente vingativa, fundados numa básica insatisfação consigo, num impossível querer ser outro. Essa idéia encontra sua clara formulação na Primeira Dissertação da Genealogia, onde o ressentimento é examinado detidamente enquanto um criador de valores, ou antes, como um “mau” criador, associado ao declínio fisiológico e à décadence. É próprio dele a inversão do olhar que estabelece valores, a necessidade de dirigir-se para fora e não para si mesmo, de um não que precede o sim, de uma reação no lugar da ação; concebe o inimigo como mau, faz do mau justamente o bom da outra moral como conceito básico a partir do qual elabora a imagem do bom, ele mesmo (GM, I, 10). Daí a transvaloração de valores que faz da fraqueza mérito, da submissão, obediência, do ter de esperar, paciência, do não poder vingar-se, perdão. Aqui, ilustra-se claramente a crítica examinada mais acima à concepção da origem da justiça na vingança.

A igualdade de direitos representaria um valor concebido no solo do ressentimento. Não só os homens não são iguais, diz Zaratustra, como tampouco devem tornar-se iguais. Abordaremos, no próximo capítulo, a exigência do pathos da distância feita pelo ideal do “espírito livre”. Contudo, assim como o indivíduo não pode retroceder a formas primitivas de satisfação dos instintos, tampouco a cultura poderia retornar às formas

violentas e cruas de dominação pelas quais se instituíram as primitivas formas de equilíbrio. Da mesma forma, não se trata da defesa da primazia da força bruta, pela dominação grosseira dos mais fortes sobre os mais fracos. O que Nietzsche nos faz levar em conta é que todas as nossas concepções humanitárias sobre a igualdade de direitos associam-se a uma tentativa de mascarar os conflitos inerentes a toda forma de justiça. Contudo, se podemos acompanhar e compreender esta crítica de Nietzsche, não é tão simples reunir e articular em sua obra os elementos de uma concepção positiva de justiça na cultura.

A lei, na concepção de Nietzsche, nada mais faz senão declarar o que é permitido aos olhos daqueles que a instituem. Todavia, se esses ou aqueles dos seus ditames são determinados pelas reivindicações de poder daqueles que as impõem, nada tendo em si mesmos de inalteravelmente verdadeiro ou sagrado, a imposição de leis é necessária ao avanço da cultura.

O valor da justiça estaria relacionado à atividade. “Ser justo é sempre uma atitude positiva...O homem ativo, violento, excessivo, está sempre mais próximo da justiça que o homem reativo”. O homem justo, nesse sentido, possui “uma elevada e profunda objetividade”, não perturbada pela injúria pessoal, ou pela necessidade de avaliar de modo falso e parcial, como faz o homem reativo (GM, II, 11). Como interpretar esta passagem, se a lei, como vimos, é necessariamente parcial, atendendo às reivindicações de poder que obtêm predomínio? Tomar a lei como neutra e isenta significaria conceber o equilíbrio que ela institui como ditado por um termo exterior ao conflito. Por conseguinte, a “elevada objetividade” não pode ser pensada como neutralidade, como um fora ou acima de qualquer perspectiva, e sim, como uma perspectiva mais ampla, da qual se descortinam múltiplos ângulos, possibilitada por um certo alinhamento das vontades de poder em conflito. Apenas a atividade propicia tal perspectiva; a reatividade distorce e estreita a visão, buscando vencer o combate pela negação do combate mesmo, ao definir o seu arbítrio por valores exteriores a ele.

A genealogia nietzscheana do direito e da justiça, entrementes, ressalta o caráter essencialmente reativo da doutrina do livre arbítrio, impondo ao homem o “impossível querer ser outro” característico da moral do ressentimento.

6.5 O castigo

Em diversos momentos, Nietzsche critica as práticas do castigo que buscam fundamentar-se numa concepção transcendente de justiça. Sua crítica tem como alvo a doutrina da liberdade da vontade, que justifica o castigo pela imputação da responsabilidade moral: assim, já em Humano, demasiadamente humano, rejeita a justiça premiadora e punitiva, que pressupõe a liberdade da vontade, e, portanto, a não necessidade das ações humanas.

Em Aurora, sustentando que a punição, tal como a exercemos, mancha mais que o crime, compara a balanças de merceeiros nossas leis penais, que contrabalançam culpa e pena. Contudo, não se trata apenas de denunciar as formas judiciais das penalidades, e sim a profunda infiltração da idéia de punir em nosso pensamento, de tal forma que rancor e vingança inspiram a busca de culpados e a imposição de castigos. O mundo se encontra infestado pela erva daninha da punição _ e não apenas nas conseqüências da nossa forma de agir, sublinha Nietzsche. O filósofo não se preocupa, pois, apenas com os efeitos psicológicos e sociais do castigo, mas com o seu insidioso infiltramento na nossa imagem mesma do devir: a “infame arte interpretativa do conceito de punição” priva da inocência a “pura casualidade do acontecer” (A, 13).

“Ninguém acusa sem o pensamento oculto do castigo e da vingança _ mesmo quando acusa seu destino, a si próprio” (OD, 78). Zaratustra aconselha: “Suspeitai de todo aquele em quem é poderoso o pendor para punir” (Z, II, Das tarântulas). Nietzsche reafirma essa suspeita, relacionando-a, no Crepúsculo dos ídolos, à doutrina da liberdade da vontade. Ali, após desenvolver a crítica à liberdade da vontade como um dos “quatro grandes erros” da razão, já examinada no item 5.3, sustentará: “A doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado”. Portanto, toda forma de responsabilização é atribuição de culpa e castigo: “Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto do querer julgar e punir que aí busca”. Nietzsche, ao longo de toda sua obra, manifesta uma aguda aversão aos efeitos, que lhe parecem terríveis, dessa interpretação.

Embora o tema do castigo surja em passagens diversas da obra nietzschiana, a abordagem mais sistemática de sua origem será encontrada na Segunda Dissertação da

Genealogia da moral. A ideia do castigo como privação das vantagens da comunidade

já fora expressa em O andarilho e sua sombra: a comunidade devolve o infrator ao estado selvagem do qual até então o protegera, de tal forma que toda espécie de

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 195-200)

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