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A vontade de verdade como determinação da moral

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 105-108)

É preciso considerar como pensa Nietzsche o conhecimento e a verdade, dada a

estreita ligação da produção da verdade com aquela da moral, interpelada ao longo de toda de sua obra. Tal ligação, como procuraremos mostrar, influencia fortemente sua crítica ao conceito de liberdade da vontade da tradição filosófica.

Diferentes formulações do conhecimento podem ser encontradas na obra de Nietzsche. A noção de uma “sabedoria trágica” é apresentada em O Nascimento da

tragédia, em 1872, indicando uma profunda reserva quanto ao conhecimento racional, e

o privilégio dado à intuição e à arte, em detrimento da ciência. Ela dará lugar à filosofia científica e histórica defendida em Humano, demasiadamente humano, que se modifica, por sua vez, até a Gaia ciência. Interrogada a partir da doutrina da vontade de poder em

Assim falava Zaratustra, a vontade de verdade será considerada constitutiva do ideal

ascético na Genealogia da moral. No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche diz voltar ao ponto de partida, reivindicando a posição de fundador de uma filosofia trágica.

Ao longo dessas diferentes formulações, as relações do estabelecimento da verdade com aquele dos valores morais são objeto importante da crítica nietzschiana, que a segunda parte deste trabalho pretende examinar. A tarefa filosófica de Nietzsche guarda íntima relação com a interpelação da vontade de verdade: não podendo o problema da ciência ser colocado no terreno da ciência mesma (NT, Tentativa de auto-crítica, 2), cumpre à filosofia sua formulação.

Podemos ver como as concepções sobre o conhecimento da verdade dos autores que examinamos, diferentes entre si, inscrevem-se todavia numa configuração com a qual pretende insurgir-se a filosofia de Nietzsche.

Na filosofia socrático-platônica, a equação que identifica o verdadeiro e o virtuoso é reforçada pela distinção entre mundo sensível e inteligível, fundamentando-se a conduta correta na perfeição imutável do segundo. O olhar dirigido pelo filósofo à verdade

absoluta é o que lhe permite promulgar regras sobre o belo, o justo e o bom, segundo um discurso racional que reflete e transmite a ordem do cosmos.

Em Aristóteles, a distinção entre conhecimento teórico e inteligência prática, desatrelando a identificação do verdadeiro e do falso da escolha boa ou má da ação moral, nem por isto deixa de subordinar a moralidade ao seguimento da regra reta da razão. Se o bem já não é mais princípio transcendental, é todavia causa final, numa concepção teleológica do existente; a sabedoria filosófica, na qual reside a forma mais elevada de felicidade, consiste na contemplação dos primeiros princípios imutáveis. Em Santo Agostinho, sustenta-se a existência de uma realidade superior e imutável, identificável a Deus, que a razão humana, inferior a ela, pode todavia conhecer. A realidade dos números aponta-nos regras inalteráveis e verdadeiras; a sabedoria divina, ainda superior, contém verdades de ordem moral, segundo as quais é preciso viver conforme a justiça, considerando o íntegro e o imutável superiores ao corruptível e ao temporal. Dessa forma, embora a fé seja superior à inteligência, esta corrobora e explica aquilo em que acreditávamos sem entender.

Em Kant, os limites impostos à razão impedem qualquer conhecimento do supra- sensível, rejeitando como indemonstráveis as afirmações de ordem metafísica. Entretanto, as ideias transcendentais da razão não possuem apenas função normativa, mas possibilitam a passagem dos conceitos da natureza aos conceitos morais. A identificação da vontade à razão prática engendra uma ética na qual a validade universal da lei moral determina, através do imperativo categórico, a conduta de todos os homens, iguais entre si pela posse da razão.

Em Schopenhauer, embora a razão não se identifique à virtude, e o conhecimento racional encontre-se submetido à vontade, admite-se e louva-se um conhecimento mais elevado, de ordem intuitiva, que concerne às ideias, tais como as concebe o filósofo. Esse conhecimento desinteressado, liberto da vontade, é um passo essencial à ascese e à santidade, nas quais o homem atinge sua mais alta condição.

O questionamento da vontade de verdade enquanto parceira constante da moral, assim como da superestimação das formas lógicas de validação do discurso verdadeiro, será desenvolvido na obra de Nietzsche, seja pela crítica explícita que lhes faz, seja por sua forma mesma de trabalhar e escrever. As formas lógicas de demonstração parecem-

lhe insuficientes, pois, quando se acredita demasiadamente nelas, reificando-as, esquecendo sua origem ficcional e sua ancoragem em valorações, aceita-se o debate, elidindo o jogo de forças que o permeia, nos termos ditados por uma vontade de verdade que não se reconhece como tal. Como sustenta Nietzsche no Prólogo de

Aurora: “... os juízos de valor lógicos não são os mais profundos e mais fundamentais a

que pode descer a ousadia da nossa suspeita: a confiança na razão, com que se sustenta ou cai a validez desses juízos, é, sendo confiança, um fenômeno moral” (A, Prólogo, 4). Nesta segunda parte, portanto, tendo como referência a clássica divisão da obra de Nietzsche em três períodos, examinaremos o percurso que chega até ao questionamento da vontade de verdade como âmago do ideal ascético.

Ao examinar o primeiro período, abordaremos O nascimento da tragédia enquanto uma primeira versão da tarefa filosófica de Nietzsche. Sustentando uma crítica à consideração teórica do mundo que ordena a cultura a partir de Sócrates, esse livro mantém-se ainda no terreno de concepções estético-metafísicas que serão abandonadas posteriormente.

No segundo período, a partir de Humano, demasiadamente humano, Nietzsche acredita realizar sua grande liberação, retomando em novos termos a própria tarefa, a partir de uma aproximação com o paradigma científico de sua época. Este lhe parece, então, indispensável para uma filosofia científica ou histórica que se possa opor à visada metafísica, resgatando o sentido histórico faltante aos filósofos até então.

A partir da Gaia ciência, já se apresenta uma interrogação dos valores em que a própria ciência se inscreve, assim como a ideia de um conhecimento capaz de criar valores novos. Em Assim falava Zaratustra, vemos surgir, estreitamente ligadas, as expressões “vontade de verdade” e “verdade de poder”, permitindo levar adiante essa reflexão; em Além do bem e do mal e na Genealogia da moral, compreende-se que toda vontade de verdade deriva de um certo tipo de valorações, num campo que não é regido pela oposição verdadeiro x falso, por mais que a utilize para seus próprios fins.

Este percurso não é apenas ou essencialmente crítico, mas afirmativo: atravessa-o a construção de “um outro ideal”, culminando numa nova formulação da sabedoria trágica como inovação propriamente nietzschiana.

Capítulo 3

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 105-108)

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