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Críticas à finalidade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 136-140)

Por uma gaia ciência

4.2 Críticas à finalidade

Todo o percurso nietzscheano nas suas formulações do conhecimento deve ser considerado, a nosso ver, à luz de suas críticas à finalidade, desatrelando a busca da verdade das referências que lhe poderiam dar uma visão teleológica da existência. Quanto mais se empenha Nietzsche _ e ele não deixa jamais de fazê-lo _ na criação de um sentido para o homem, mais se dá conta de que um tal sentido não se encontra revelado nas coisas mesmas, nem oculto nelas à espera de que o possamos descobrir. Nietzsche já destacara em Humano, demasiadamente humano a falta de objetivos da humanidade, assim como a necessidade de criar-lhe um. Contudo, a partir de Aurora, abordará este tema de forma bem mais categórica e extensa.

No aforismo 130, intitulado Fins?Vontade?, trata de nossa habitual distinção do reino da finalidade, onde situam-se os fins e a vontade, do incalculável reino dos acasos. Estes últimos, gigantes estúpidos, atropelam os inteligentes anões que somos; o reino da estupidez cósmica cai sobre o mundo dos fins como uma telha do telhado, matando uma bela finalidade _ ou, às vezes, zomba Nietzsche, destruindo uma teia de aranha de fins que já nos entedia. Enquanto os gregos consideravam este reino do incalculável _ Moira _ como um horizonte além do qual nem mesmo seus deuses podiam ver, o cristianismo supôs por detrás dele um Deus tecendo teias de fins tão refinadas que não as podíamos compreender, garantindo assim uma visão teleológica do mundo, embora situada além da nossa compreensão. Entretanto, aprendamos que são gigantes estúpidos também os nossos fins e as nossas razões. Talvez não existam vontade nem finalidade, tendo sido apenas imaginadas por nós. Agitando o copo de dados do acaso, as mãos férreas da necessidade jogam por um tempo infinito, de tal forma que acabam por surgir lances que semelham adequação e racionalidade, formando o que chamamos de nossos atos de vontade e nossos fins. Contudo, vaidosos, não compreendemos que “nós mesmos

agitamos o copo de dados com mãos férreas, que, em nossas ações mais intencionais, nada mais fazemos senão jogar o jogo da necessidade. Talvez!”(A, 130).

Observe-se a engenhosa construção pela qual, a partir dessa metáfora antropomórfica _ a necessidade agitando o copo de dados do acaso _ Nietzsche substitui as mãos da necessidade _ que aliás não as tem _ como sujeito da ação pelas nossas próprias; estas não agitam menos ferreamente os dados, obtendo o mesmo inalterável resultado, qual seja, a manifestação do acaso pela forma que lhe é própria. Podemos acreditar que agimos intencionalmente; contudo, quanto mais o fazemos segundo uma intenção, tanto mais o fazemos necessariamente, não seguindo propósitos nem fins. Nossas mãos são guiadas pela necessidade, que não as conduz todavia rumo a nenhuma direção em especial. Ora, a ideia de que somos guiados pelas mãos da necessidade, por mais determinista que soe, é, também ela, uma metáfora antropomórfica. A esta provocativa hipótese, portanto, Nietzsche acrescenta um igualmente provocativo talvez.

Na Gaia ciência, lemos no primeiro aforismo, Os mestres da finalidade da existência:os mestres da finalidade, ou seja, os mestres da ética, não fazem senão forjar finalidades para uma existência que não a possui, de tal forma “que tudo o que ocorre necessariamente e por si, sempre e sem nenhuma finalidade, apareça como tendo sido feito para uma finalidade”. O impulso que a tudo dirige em prol da conservação da espécie não passa de tolice e ausência de motivos, ainda que de tempos em tempos os mestres da ética forjem ao seu redor um esplêndido cortejo deles. Embora “ondas de incontáveis risos” da natureza acabem por dissolvem todas essas fantasmagorias de motivos e fins, elas modificaram a natureza do homem, fazendo dele este singular animal que tem de acreditar saber por que existe; porém, até mesmo esta sublime desrazão faz parte dos meios da conservação da espécie, vindo a tornar-se um motivo a mais para o riso.

Surge neste aforismo a primeira menção à “gaia ciência”. Ausente ainda nesse tempo da tragédia _ tempo de morais e religiões _ ela poderá sobrevir quando a comédia da existência tomar consciência de si mesma. Para tanto, requer-se “a incorporação da tese de que a espécie é tudo, o indivíduo é nada”: quando cada um puder ter acesso “a essa derradeira libertação e irresponsabilidade”, a aliança entre riso e sabedoria, talvez possa haver uma gaia ciência.

Dois aspectos nos intrigam nesse aforismo. O primeiro é a aparente desvalorização do indivíduo em prol da espécie, quando em Nietzsche, habitualmente, o valor da espécie reside em produzir de tempos em tempo indivíduos excepcionais. Tentamos entendê-lo no seguinte sentido: tratar-se-ia de uma ironia dirigida à concepção de alma ou sujeito que sempre acompanha a criação dos motivos dos promotores da fé na vida _ “para eles o indivíduo50...é sempre algo primordial, derradeiro, imenso” _ indicando a

vaidade oculta nas interpretações finalísticas. Portanto, Nietzsche faria referência aqui à concepção do indivíduo como unidade última, substancial, e não à sua própria, que dele faz uma formação social de muitas almas, uma pluralidade para a qual o “assim chamado Eu” é apenas um arranjo, como dirá em Além do bem e do mal.

O segundo aspecto é um certo automatismo implícito nessa concepção: se tudo serve necessariamente à “conservação da espécie”, faça-se o que fizer a consequência é a mesma, assim como o valor. Fazendo da “conservação da espécie” o arremedo irônico de uma finalidade, tratar-se-ia de uma concepção puramente determinista, para a qual seria impossível qualquer criação de sentido? Ora, como já observamos na introdução, Nietzsche não recusa o finalismo para aceitar o determinismo, insistindo sempre na questão do sentido e do valor. Por conseguinte, pode-se também supor que aqui se repita a mesma ironia para com o indivíduo “primordial”, que acredita na liberdade da vontade. A este, Nietzsche recorda a total insignificância de qualquer coisa que faça ou deixe de fazer para a economia da conservação da espécie. A oposição entre finalismo x determinismo, liberdade x finalidade, nos remete à proposição do amor fati, que inaugura o Livro IV da mesma Gaia ciência, e exige a doutrina do eterno retorno. Um outro aforismo problematiza de forma contundente a finalidade: o 109,

Guardemo-nos. Nele, Nietzsche parece dar prosseguimento ao aforismo 130 de Aurora,

que abordamos antes, apontando algumas ideias diante das quais devemos manter-nos em guarda. A primeira delas consiste em pensar no mundo como um ser vivo: o orgânico, sendo tardio e acidental na crosta da terra, não pode ser reinterpretado como algo de essencial, universal, eterno. A segunda, em pensá-lo como uma máquina: a construção de uma máquina implica em um objetivo, o que não é o caso do universo. A terceira: pressupor que há em toda parte movimentos tão regulares como os dos astros nossos vizinhos; assim como o orgânico, nossa ordem astral é exceção, não regra.

50Segundo a nota do tradutor para o português, Paulo César de Souza, a frase também pode ser traduzida

O caráter geral do mundo é caos por toda eternidade, sustenta Nietzsche _ entendido não no sentido de ausência de necessidade, e sim de ausência de nossos antropomorfismos estéticos, tais como ordem, forma, beleza, sabedoria. Os chamados lances infelizes são a regra geral; as exceções não representam um objetivo secreto. Daí o quarto “guardemo-nos”: não censurar ou louvar o universo. Tendemos a louvá- lo ao julgá-lo ordenado e belo; por outro lado, quando usamos expressões como “lances infelizes”, trata-se de uma antropomorfização que já implica numa censura. Não é insensível nem irracional, não é belo nem nobre, nem pretende sê-lo. Não toma o homem como modelo, não é afetado em nada por nossos impulsos estéticos e morais; não tem impulso de auto-conservação, e nem qualquer outro impulso.

Segue-se o quinto: “Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Não há ninguém que comande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida: há apenas necessidades. Não havendo propósitos, não há acasos, pois “a palavra acaso só faria sentido em relação a um mundo de propósitos”.

Segue-se o sexto “guardemo-nos” _ não pensar que a morte se opõe à vida, pois o que está vivo é apenas uma variedade, ademais rara, daquilo que está morto; e, finalmente, o sétimo _ não pensar que o mundo cria eternamente o novo: não há substâncias de duração eterna. O conselho de Nietzsche, portanto, é de estarmos alertas, pois tais antropomorfismos são sombras de um Deus já morto que obscurecem nossa vista.

A impossibilidade de enxergar através dessas sombras relaciona-se à enormidade mesma do ato pelo qual matamos Deus, de tal forma que o “homem louco” que o anuncia na praça do mercado, recebido por galhofas, compreende que veio cedo demais: “Este acontecimento enorme ainda está a caminho” (GC, 125) “Quando deixarão as sombras de Deus de obscurecer-nos a vista?”_ pergunta Nietzsche. “Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira redescoberta e redimida?”(GC, 109).

Ora, naturalizar o homem não significa o retorno a uma natureza originária; a idéia mesma de uma tal natureza implica numa certa concepção da pureza da origem que Nietzsche, justamente, deseja questionar como um de nossos antropomorfismos

estéticos. A desdivinização da natureza requer o longo e tirânico treinamento da cultura. Não se trata de retroceder a uma suposta inocência anterior ao conhecimento do bem e do mal, e sim de conquistar a nova inocência que se encontra além do bem e do mal. Nesta busca, chegará Nietzsche ao singular pensamento do eterno retorno, necessário à afirmação radical de uma filosofia trágica.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 136-140)

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