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A Agenda Mágica

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 148-162)

Tomo o exercício da linguagem - especialmente o da escrita - como fio condutor do acompanhamento clínico de AL que permite a ele colocar em funcionamento a linguagem, registrar suas vivências, ler – e, portanto – narrar e relembrar experiências recentes, estabelecer múltiplas associações que o remetem a situações que lhe parecem esquecidas – em função da lesão, do uso prolongado do álcool, da sensação de desprazer que lhe causam – e a outras por-vir.

Usei como expedientes protocolares, como já disse, além de relatos orais, a agenda, o correio eletrônico, gibis, palavras cruzadas, jornais, revistas, livros, uma série de materiais que incluem a escrita. A agenda, no entanto, assume um caráter especial, por representar uma extensão de seu aparelho psíquico: dá espaço e tempo para a escrita/leitura do dia a dia. Suas

anotações misturam relatos, narrativas, comentários, réplicas, confidências, lembretes, diálogos, pondo em relação, a linguagem e a memória.

No texto "Uma nota sobre o bloco mágico" [1924/25] Freud diz que a folha de papel sobre a qual toma notas – quando receia esquecer alguma coisa - se torna uma parte materializada de seu aparelho mnêmico que, sob outros aspectos, leva invisível dentro de si. Se se sabe onde está essa “memória depositada” é possível reproduzir – ler e, assim rememorar - seu conteúdo a qualquer hora, tendo a certeza de que permaneceu inalterado [Freud, 1924/25137].

É isso que se faz quando se anota alguma coisa em uma agenda. Geralmente se antecipa – temporalmente – o que se pretende fazer: obrigações sociais, compromissos de estudo ou trabalho, pagamentos, compras, consultas médicas, enfim, afazeres do dia a dia que não podem ser esquecidos e que, via de regra, são datados. A agenda favorece uma anotação preferencialmente paradigmática. Anotações prospectivas a partir do presente. AL, no entanto, faz o movimento temporal inverso: uma revisão periódica138 de seus atos e compromissos, que mais se parece com um diário pessoal - ou com uma agenda típica da adolescência atual - do que com uma agenda stricto sensu.

Para tomar notas do que fez ao longo de um determinado intervalo de tempo AL deve relembrar o que lhe ocorreu - onde esteve, com quem, o que fez, sobre o que conversou, como se sentiu – episódios que podem lhe surgir à mente de forma aleatória, mas que se concatenam em uma certa ordem. Rememorar e, portanto, reconstruir sua memória autobiográfica, implica também uma alternância entre seleções e combinações [Jakobson, 1955/70; 1969].

E o que AL lembra? Aquilo, que por uma razão ou outra - pela relevância, pelo inusitado, pela preocupação que causou, etc. – fica registrado em seu aparelho psíquico e que, possivelmente, será em breve esquecido, para ser lembrado de novo, quando alguma outra associação trouxer à tona aquele episódio, como ocorre com todos nós, todo dia. Em termos freudianos se pode dizer que essa atividade rememorativa requer um eu ativo, orientado pela atenção psíquica e por signos de descarga lingüística de modo a manter o fluxo de associações em uma boa direção até que o sujeito alcance a lembrança desejada [Freud, 1895/1990]. Do ponto de vista da Neuropsicologia de Luria [1991a] o ato de lembrar depende, como se viu, da manutenção do tônus cortical, sem o qual é não é possível manter o esforço ativo necessário à atenção seletiva que escolhe certos vestígios e não outros.

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Não referencio as páginas do texto “Uma nota sobre o bloco mágico” nas citações que faço nesta seção porque consultei a edição eletrônica das Obras Completas, um hipertexto sem numeração.

Ao tomar notas do que se lembra, AL possivelmente se lembra de outros fatos: lembrar e escrever, escrever e lembrar, duas atividades estreitamente vinculadas. Escrever na agenda os fatos ocorridos é uma maneira de reconstruí-los e uma maneira de superassociar o registro psíquico, conferindo a ele permanência em papel. As anotações podem então ser relidas desencadeando um novo conjunto de associações que remetem a novas lembranças.

A agenda, considerada um gênero de discurso [Bakhtin, 1952-53/97, p. 304], orienta o agenciamento de recursos expressivos e o modo como nela são escritos. Em geral, uma página representa um dia da semana, que se refere a um determinado mês, de um determinado ano. A agenda é, em última instância, um instrumento culturalmente marcado que permite a inserção do tempo individual no tempo social. O cumprimento dessa cronologia favorece a consulta e a leitura das notas [Dado 11]. Essa espacialização do tempo dá a AL parâmetros que o auxiliam na ordenação de suas lembranças. Na maioria das vezes, dispõe suas notas por períodos diários: de dia, à tarde, à noite.

Dado 11 – organização espaço-temporal das anotações na agenda

Novembro Quinta 6 7 Novembro Sexta DE MANhà FIZ ALGUMAS COISA NA QUINTA-FEIRA FUI

SÓ, MAS NÃO TINhA MUITA COISA PARA NOS BANCOS DE MANHA E DEPOIS NÃO

FAZER . FIZ MAIS NADA .

À TARDE COMBINAMOS DE IR PARA À NOITE FUI NO KAULA BAGUNSAR UM

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Às vezes diária, às vezes semanal. Mais que isso resulta em folhas em branco, como se pode observar nos períodos de férias do acompanhamento clínico.

O GUARUJÁ, FUI PARA CASA E ARUMEI POUCO, SÓ ThINHA GENTE FEIA DAVA

MINHAS ROUPAS E VOUTEI PARA ATÉ RAIVA ...

A PADARIA E FICAMOS

ATÉ FEChAR ; QUANDO FEIXOU FOMOS EM BORA.

ChEGAMOS LÁ AS 2:30 HORAS E FOMOS

(ISSO FOI QUINTA)

DORMIR...

(ISSO FOI NA SEXTA)

Também a escrita requer, como se viu no capítulo anterior, um estado vigilante do cérebro para a manutenção da atenção, suportado por estruturas dos Blocos I e III que atuam em conjunto. A região pré-frontal controla as informações que chegam ao cérebro pelas vias que se ligam aos órgãos dos sentidos: ver, ouvir, pegar, orientar-se no espaço, atividades envolvidas no ato de escrever. O Bloco II recebe, elabora e registra essas informações em áreas específicas do cérebro, preparando as ações que serão realizadas sob o comando do Bloco III. O Bloco III elabora e mantém as intenções do sujeito e os programas de ação a elas correspondentes, executando-os; além disso, acompanha a ação em curso, comparando o efeito da ação exercida com as intenções iniciais [Luria, 1981, 1991a].

A leitura conjunta da agenda no acompanhamento fonoaudiológico possibilita ainda um novo trabalho com e sobre a linguagem e a memória. As perguntas, comentários, explicações, ressalvas, reformulações, reescrituras - dialogicamente introduzidos - convocam níveis diferentes de reflexão sobre a linguagem por meio de “atividades lingüísticas, epilingüísticas e metalingüísticas” [Geraldi, 1991/93]. Permite ainda repetir a vivência em questão e, às vezes, reformular uma vez mais o já- escrito. As notas, muitas vezes rasuradas, deixam à mostra as dúvidas, hesitações e dificuldades de AL, o que pressupõe uma mudança da posição de escrevente para a de leitor, no momento mesmo em que escreve.

A reescrita de algumas anotações e a escrita de algumas passagens - que no original figuram como marginais - trazem à tona outros assuntos, interesses, descobertas. As páginas da agenda de AL fazem ver o potencial “reflexivo” da linguagem [Franchi, 1977/92] e a escrita de sua memória autobiográfica marcada pela confluência de excertos de vivências reais e vivências ficcionais. A agenda lhe dá, assim, espaço e tempo para escrever sua memória pessoal que é, ao mesmo tempo,

“(...) social, externa, associada à memória histórica. E esta, por sua vez, está de alguma forma intimamente relacionada às experiências individuais dos sujeitos, uma vez que é a partir do indivíduo que lembra e que esquece que as lembranças são evocadas e contadas de uma determinada forma e não de outra” [Cruz, 2004, p. 34].

Freud se interessa pelo Bloco Mágico em virtude de sua “aproximação com a estrutura do aparelho perceptual da mente” [Freud, 1924/25]139. Compara o aparelho mnêmico à escrita em papel e à escrita na lousa. No primeiro caso, o traço de memória se torna permanente e, ao mesmo tempo, finito: tão logo a folha se encontre preenchida com anotações é necessário recorrer a uma nova folha de papel e, assim, sucessivamente. Ao contrário, a lousa, representa uma superfície receptiva ilimitada, porém, sem o caráter de permanência: pode-se apagar uma nota específica e escrever outra em seu lugar. Segundo Freud, o aparelho psíquico faz exatamente aquilo que a folha de papel e a lousa não podem fazer: “possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e, não obstante, registra delas traços mnêmicos permanentes, embora não inalteráveis” [Freud, 1924/25].

Esse pequeno artefato funciona sobre uma prancha de cera, onde se prendem pela extremidade superior duas folhas de papel: uma transparente de celulóide e um papel encerado fino e transparente que se adere ligeiramente à prancha quando o aparelho não está em uso. Com um pequeno estilete se pode escrever sobre a folha de cobertura. Suas marcas tornam-se legíveis como escrita preta em contraste com o aspecto cinzento-esbranquiçado do celulóide. Querendo-se apagar a escrita e reutilizar o artefato, basta levantar a folha dupla de cobertura da prancha de cera para descolá-la dessa última. Essa escrita propositadamente apagada, no entanto, deixa um traço permanente na prancha de cera e, sob luz apropriada, pode ser lida140.

“(...) se imaginarmos uma das mãos escrevendo sobre a superfície do Bloco Mágico, enquanto a outra eleva periodicamente sua folha de cobertura da prancha

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Os escritos freudianos dos anos 20 já se inserem em sua denominada fase psicanalítica, que vai além dos objetivos do presente estudo. Desse texto interesso-me pela analogia que o autor faz entre o Bloco Mágico e o aparelho mnêmico que remete a descrições por ele já feitas nos escritos neurofisiológicos que reafirmam o caráter dinâmico da memória e sua estreita relação com a linguagem.

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Embora Freud esteja se referindo ao registro da ordem do inconsciente (sistemas φ e Ψ já descritos no Projeto) ele insinua que esses registros podem ser trazidos à consciência – podem ser lidos, portanto, pela linguagem (associações lingüísticas)– sob luz apropriada.

de cera, teremos uma representação concreta do modo pelo qual tentei representar o funcionamento do aparelho perceptual da mente” [Freud, 1924/25].

O Bloco Mágico, portanto, tem uma superfície receptiva que pode ser reutilizada repetidas vezes como uma lousa e, ao mesmo tempo, mantém traços permanentes do que foi escrito como um bloco comum de papel, combinado duas funções “dividindo-as em duas partes ou sistemas componentes separados mas inter-relacionados” [Freud, 1924/25].

De forma análoga funciona nosso aparelho psíquico141: a camada que recebe as impressões pode ser reutilizada continuamente para outros registros sem deixar formar traços permanentes, renovando-se, assim, a capacidade receptiva do aparelho. Ao mesmo tempo as impressões ficam registradas na prancha de cera - como ficam no inconsciente - e, a depender de iluminação apropriada, podem ser lidas – pensamento reprodutivo e associações lingüísticas - ou podem vir à tona por meio de “lapsos de linguagem” e “parapraxias” [Freud, 1969]142. Essa é a diferença entre o Bloco Mágico e a memória: ele não pode, por si só, “reproduzir” a escrita apagada [Freud, 1924/25], mas os registros permanentes do aparelho psíquico podem ser lidos pela linguagem e, assim, relembrados, narrados, reelaborados.

O aparelho mnêmico de AL, antes do episódio neurológico, era prodigioso. Era capaz de “guardar tudo na cabeça”, como costuma dizer, inclusive as histórias mirabolantes que contava aos amigos. Mas agora não “funciona como antes”, o que o faz se sentir frustrado, inseguro e sem

141 Nessa passagem Freud se refere ao “sistema Pcpt.-Cs”, descrito em 1900 em A Interpretação dos Sonhos.

Trata-se de um sistema que recebe informações, mas delas não retém nenhum traço permanente, como “uma folha em branco a cada percepção”. Por trás do sistema perceptual estão os sistemas mnêmicos, que preservam os traços permanentes das excitações recebidas. Anos depois, em 1920, no texto Além do Princípio do Prazer, Freud descreve duas camadas do aparelho perceptual: a primeira que constitui um escudo protetor externo contra os estímulos exógenos, cuja missão é diminuir a intensidade das excitações ingressantes e a segunda, uma superfície receptora dos estímulos, o próprio sistema Pcpt.-Cs. Essa organização do sistema perceptual e do mnêmico já havia sido descrita no Projeto de 1895, sem referência ao nome de Pcpt.-Cs, por meio do sistema φ, responsável pela recepção e transferência de estímulos exógenos e pela propagação no tempo desses mesmos estímulos e do sistema Ψ, responsável pelo recebimento de estimulação endógena (permanentemente), exógena (via sistema φ) e pela memória, ambos atuam independentemente de uma consciência [cf. capítulo 3].

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De acordo com Freud a perturbação que se manifesta como lapso de linguagem, pode ser: (i) causada pela influência de outro componente da mesma fala, isto é, por meio de um som principal ou eco, ou através de outro significado dentro da sentença ou contexto, que difere daquele que o locutor quer pronunciar; (ii) causada por influências exteriores à palavra dita, por elementos que não se tencionava exprimir e de cujo incitamento só se torna consciente depois da perturbação. A parapraxia funciona de maneira análoga para ações cotidianas [Freud, 1969].

controle sobre seus atos. O Dado 12 mostra como um registro - inconsciente - pode irromper na escrita, comprovando o caráter dinâmico da memória.

Dado 12 – notas na agenda do dia 20 de maio de 2003.

DE MANHÃ , FUI PARA O ESCRITÓRIO FIZ BASTANTE COISA .

A TARDE, FUI NO DR. JUDSON COMVERSAMOS BASTANTE COISA RAPIDA, UMA DAS COISAS QUE EU DIÇE PARA ELE ; ELE DICE PARA FALAR COM A FERNANDA . SOBRE AS COISAS DO PASSADO, QUE EU SEMPRE FALAVA E ME CONSSENTRAVA PARA NÃO ME FERRAR .

A NOITE FIQUEI EM CASA .

Chama a atenção nessa data, a anotação que AL faz sobre o encontro com seu psiquiatra. Segundo seu registro, eles conversaram “BASTANTE COISA RÁPIDA", inclusive sobre “AS COISAS DO PASSADO, QUE EU SEMPRE FALAVA E ME CONSSENTRAVA PARA NÃO ME FERRAR”, o que sugere um grande esforço – inclusive de memória – para evitar cair em contradição nas histórias que inventa e ser flagrado pelos amigos. Há, no texto, várias rasuras, mas dentre elas, uma é

peculiar143. Antes de escrever a palavra CONSSENTRAVA escreve CORRIGIA, o que pode ser interpretado como uma paragrafia - uma palavra aparece no lugar de outra – análogo ao que ocorre na parafasia. Para Freud a parafasia não decorre necessariamente de uma lesão cerebral. Os sujeitos não lesionados também podem exibir esse tipo de fenômeno lingüístico sempre que há uma alteração funcional resultante, por exemplo, de um estado de fadiga [Freud, 1891/1973]. Nesta situação, comum a todos os falantes portanto, “elementos que não tencionávamos exprimir e de cujo incitamento só nos tornamos conscientes devido à perturbação” [Freud, 1969, p. 51] podem se precipitar. “Corrigia” sai no lugar de “concentrava”, talvez porque hoje ele está convencido que não deva inventar histórias e deva sim “corrigir” sua conduta PARA NÃO SE FERRAR. Como o fenômeno ocorre na escrita AL pode refletir e se autocorrigir. É o que ele faz: apaga e escreve outra palavra.

Embora escreva o verbo no passado seu sentido é o do presente144. A escolha do pretérito imperfeito não parece aleatória: observem-se os demais tempos verbais usados nesse registro. O imperfeito sugere uma forte ligação entre o passado e o presente. Refere-se, assim, a um passado que ainda não terminou e é exatamente isso o que acontece com AL em relação às fabulações. Resta observar outras duas questões em relação ao Dado 12: há registro de memória e há lembrança que se manifesta pelo caráter público da linguagem.

Freud [1924/25] compara o jogo entre escrever e apagar no Bloco Mágico à oscilação e à extinção da consciência no processo da percepção. O jogo entre consciência e inconsciência - lembrar e esquecer – que depende, metaforicamente, da direção do facho de luz, está desarranjado em AL em função das alterações neurodinâmicas de seu aparelho psíquico. A Agenda Mágica se apresenta como um meio de restabelecer essa relação: escrever ajuda a registrar (no papel e no aparelho psíquico), a lembrar e a fazer novas associações que, por sua vez, podem ajudar a registrar, a lembrar, a associar, e assim sucessivamente. Ajuda ainda a esquecer: à medida que se lembra (seleção) se esquece (exclusão).

No acompanhamento neurolingüístico de AL o uso da agenda coloca lado a lado duas atividades fortemente vinculadas - lembrar e narrar - e tem, ao menos, três grandes motivações: (i) como extensão de seu aparelho psíquico, como espaço/tempo de registro de suas vivências; (ii) como metáfora do aparelho de memória, no qual o registro nela se mantém, mas está sujeito a

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A escrita omitida pela rasura só é visível no original, se lida contra luz.

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Já assinalei no capítulo 2 a importância do acompanhamento psiquiátrico para AL com o objetivo de tratar daqueles conteúdos psico-afetivos que podem surgir ao longo do acompanhamento fonoaudiológico.

leituras que podem desencadear outras associações que remetem à narrativa de outros registros e projetam novas vivências; (iii) como trabalho com e sobre a linguagem, que demanda a atividade conjunta de várias áreas cerebrais, especialmente aquelas que se encontram alteradas em seu quadro clínico e como meio de reconstruir socialmente sua relaçãocom a escrita.

Sobre este último ponto uma observação importante. “Voltar” a escrever tem um papel restaurador para AL: fala de si mesmo, de seu cotidiano, de seus anseios, dos amigos e familiares. A escrita sempre exerceu nele um efeito ruim: fracasso e vergonha. (Re)aprender a ler e a escrever com autonomia pode ser um meio de (re)inseri-lo em práticas sociais das quais hoje ele se vê e se sente excluído e cujo uso significativo pode ajudá-lo a (re)interpretar o insucesso escolar do passado. Suas dificuldades para ler/escrever não se restringem a um livre e apropriado manuseio do sistema alfabético - embora talvez aí residam suas origens - faz-lhe falta aquilo que, do exercício plural com a escrita, nele repercute. Do ponto de vista clínico, esse trabalho com e sobre a escrita, está (também) fortemente relacionado a uma concepção ampla de letramento, pautada nos estudos de Corrêa [1997/2004], pelas razões que passo a descrever.

Letramento(s)

O desenho ao lado foi feito por PH, um menino de 6 anos, em processo de alfabetização. PH tem grande interesse pelos países e suas culturas: gosta de saber onde se localizam geograficamente, como é o clima, qual a moeda que usam etc.. Coisas que vai aprendendo à medida que toma parte, como interlocutor, de diferentes tipos de práticas sociais, com diferentes pessoas. Gosta de manusear atlas e

tem em seu quarto um globo terrestre que é freqüentemente examinado. Aos poucos, elabora "sistemas de referência" a respeito desses assuntos permitindo refinar e elaborar novos conhecimentos sobre o mundo [Franchi, 1977/92]. Nessa mesma época, PH observa que os perfumes de sua mãe são todos "americanos". Surpresa, a mãe lhe pergunta como chegara àquela conclusão. PH responde: “nos vidros está escrito EAU (soletrando as letras da palavra), o nome dos

Estados Unidos, diferente do que tem nos meus aviões, USA (de novo, soletrando), mas pode chamar dos dois jeitos”. A criança, sem se dar conta de que a ordem das letras na escrita é fundamental, toma a palavra francesa “eau” como idêntica à sigla "EUA" [Coudry, 2004].

De outra forma funciona DN, uma senhora afásica integrante do Grupo II do CCA, que está sendo alfabetizada. Quando da minha inserção no grupo, todos se apresentam. Chega a vez de DN. Impossibilitada de falar, abre a página da agenda onde estão descritos os dados pessoais e "lê com o dedo" seu nome e endereço [Coudry, 2004]. Em outra ocasião, DN leva para o encontro um livro de receitas a fim de escolher um prato para ser feito na Oficina de Culinária. Respondendo às perguntas dos interlocutores, DN folheia e mostra as figuras referentes às receitas que costuma fazer em casa.

Os dados de PH e de DN mostram pessoas de idades diferentes que estão se alfabetizando, sendo ambos, "letrados". Mostram, também, a força e o alcance do processo de letramento que acontece (também) para além das paredes da escola. É o que ocorre com AL e o mantém inserido na história de seu tempo. Fatos análogos aos aqui relatados ocorrem com todas as pessoas, de diferentes classes sociais, pertencentes às mais variadas comunidades lingüísticas. "Letrado", no caso desses dois sujeitos, se refere à possibilidade de manusear, produtivamente, em meio a práticas sociais específicas, materiais que contém escrita145, independentemente do grau ou nível de alfabetização.

Entende-se no âmbito desse estudo, portanto, alfabetização e letramento como dois processos distintos que podem estar ou não - a depender das práticas sociais - correlacionados. Ser

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