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Alexander Romanovich Luria

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 120-125)

Luria, certamente, é um dos mais renomados neuropsicólogos de todos os tempos, graças aos seus estudos que inauguram um novo modo de conceber a relação entre o cérebro e as atividades mentais superiores. Simpatizante da chamada “ciência romântica” Luria procurou em seus estudos evitar a redução de fatos vivos a esquemas matemáticos, preservando sua riqueza [Gardner, 1999, p. 291]. Nascido em 1902, em Kanzan, Alexander Romanovich Luria era filho de um médico judeu de classe média que se tornou professor universitário, mas cuja carreira foi interrompida pelo czarismo da época. Aos 15 anos vivenciou a revolução soviética, quando então pode cursar a universidade, no Departamento de Ciências Sociais. Na mocidade, Luria editou jornais, escreveu livros e participou ativamente de movimentos sociais. Aos 21 anos foi convidado a assumir um posto no Instituto de Psicologia de Moscou, onde trabalhou com Leontiev no estudo das bases materiais do fenômeno psicológico humano, utilizando teorias pavlovianas. O método, no entanto, se mostrou restrito para a compreensão de aspectos caracteristicamente humanos. Em 1924, por ocasião do I Encontro Soviético de Psiconeurologia, conheceu as bases teóricas de uma psicologia marxista apresentada, então, por Vygotsky. Nasce, a partir desse momento, uma profunda e produtiva parceria entre os dois estudiosos, dando origem a uma série de trabalhos na área da Neuropsicologia. Nos anos 30, no entanto, as obras de Luria e de Vygotsky foram fortemente criticadas pelos jornais russos de psicologia e, em 1936, o Comitê Central do Partido Comunista decidiu abandonar a pesquisa psicológica. Aos 34 anos, sem emprego, Luria decidiu cursar a escola médica e terminou seus estudos na área de Neuropsicologia antes da Segunda Guerra Mundial. Encarregado de cuidar das vítimas da guerra, Luria se tornou pioneiro no estudo de lesionados cerebrais. Após a guerra a psicologia russa entra em crise e Luria é despedido do Instituto Neurocirúrgico onde trabalhava. Aos 50 anos, inicia estudos sobre o retardo mental. Após a morte de Stalin em 1953 Luria obtém permissão para pesquisar sobre a psicologia infantil e a afasia. Morreu em 1977, aos 75 anos.

Parte dos dados biográficos acima descritos está no livro “Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem”115 e, a outra, no livro de Howard Gardner, intitulado “Arte, Mente e Cérebro”116 que

115 Editora Ícone, 1988. 116 Editora Artmed, 1999.

dedica um capítulo ao autor. As últimas informações são retiradas por Gardner da autobiografia de Luria “The Making of Mind: a Personal Account of Soviet Psychology” que, em sua opinião: “traz poucas referências pessoais e é escrito em um estilo que reflete pouca paixão ou comprometimento” [Gardner, 1999, p. 284].

Gardner traça um cenário intrigante. Inicia o capítulo com dois parágrafos, cada qual apresentando Luria como ele mesmo se apresenta em sua biografia: ora como um notável neuropsicólogo da União Soviética, ora como um estudioso totalmente comum cuja contribuição seria indigna de nota. Para Gardner, isso mostra as escolhas agonizantes enfrentadas pelos cientistas que trabalham sob condições totalitaristas. E arrisca uma interpretação pessoal para esse comportamento:

“(...) a meu ver, muito mais foi silenciado em Luria. Como um resultado de suas experiências, ele finalmente perdeu o senso de perspectiva sobre o que fizera e sobre quando o fizera. Em seu livro, talvez ele estivesse inconscientemente dissimulando; ele honestamente não podia mais compreender o que acontecera. Tantas vezes em sua vida teve que mudar de emprego, de jargão, de explicações, de créditos e de incriminações que acabou por perder um senso de onde estivera e para onde estava indo” [Gardner, 1999, p. 290].

Gardner revela ainda que, por volta dos 20 anos, Luria trocou correspondências com Freud: “ao ler Freud pela primeira vez, ficou entusiasmado pela confirmação do papel vital desempenhado pelo inconsciente em motivar o comportamento” [Gardner, 1999, p. 285]. Sem dúvida, o trabalho de Luria procurou, ainda que estivesse impedido, de fundir e explicar as polaridades humanas da emoção e do pensamento. Basta observar o modo como descreve as funções da região frontal, como será visto.

Meu interesse nas investigações lurianas é duplo: primeiro, pelo modo como ele incorpora a noção de bipolaridade da linguagem de Jakobson na análise da afasia e, segundo, pelo modo dinâmico como concebe a organização cerebral permitindo e justificando a intervenção clínica em casos de lesão cerebral. Em outras palavras, Luria correlaciona dois sistemas: o da linguagem, cujo funcionamento demanda uma base neurofisiológica, garantida pelo segundo sistema, o cerebral.

Incorporando aos seus estudos sobre a afasia os achados de Jakobson, Luria [1977] diz que a produção de linguagem compreende dois aspectos básicos: uma estrutura sintagmática definida e a utilização de um certo sistema de unidades lingüísticas, isto é, uma estrutura paradigmática

complexa. As duas estruturas compreendem uma série de níveis que diferem em relação às estruturas cerebrais e podem ser afetadas separadamente por lesões de diferentes partes do cérebro. O autor não quer com isso dizer que se pode "localizar", diretamente, estruturas complexas da linguagem em certas áreas cerebrais circunscritas, tampouco deseja argumentar a favor de uma visão localizacionista estreita. Ao contrário. Sem negar um substrato neurofisiológico, Luria chama a atenção para a dinamicidade e integração das áreas corticais.

De acordo com os pressupostos básicos lurianos as produções verbais relacionadas com a aquisição e uso da linguagem incorporam uma série de fatores psicofisiológicos - motivação, esquemas originais, processos de organização serial, conversão de informação sucessiva em esquemas visualizados simultaneamente ("quase-espaciais")117, entre outros - e cada um deles opera com um auxílio diferente, sendo todos eles consolidados pelos sistemas do córtex cerebral. Daí a razão pela qual a remoção de uma zona particular do córtex pode tornar inativa uma função particular e, como resultado, afetar o curso considerado "normal" da atividade da linguagem que depende, em maior grau, da integridade daquela função particular. Em outras palavras, mesmo na presença de uma lesão específica, há repercussões sobre o funcionamento discursivo da linguagem como um todo, já que cérebro e linguagem são sistemas hierarquicamente organizados.

Luria descreve dois grandes grupos de lesões cerebrais. O primeiro - decorrente de lesões nas zonas cerebrais anteriores - apresenta problemas em relação à fluência e à expansão da produção organizada sintagmaticamente (eixo da contiguidade de Jakobson), com relativa estabilidade do uso de códigos paradigmáticos (eixo da seletividade ou equivalência para Jakobson). Com o segundo grupo - lesões posteriores (zonas pós-central, temporal e parieto- occipital) - acontece o contrário: a capacidade para produzir enunciados organizados sintagmaticamente está potencialmente intacta, mas o uso e a organização paradigmática do código (incluindo os diferentes níveis) encontra-se afetado. O primeiro grupo abrange os casos de Afasia Dinâmica e Motora Eferente (ou de Broca), nos quais se observam dificuldades em diferentes níveis da organização da produção verbal. O segundo grupo - o das lesões posteriores - abarca os quadros da afasia Motora Aferente, Sensorial, Acústico-amnésica e Semântica - que se caracterizam pela manutenção da organização contextual sintagmática da produção verbal (aquilo que Luria denomina de "trajeto do pensamento para a linguagem") e por dificuldades relacionadas à aquisição e uso dos sistemas paradigmaticamente construídos do sistema lingüístico [Quadro 10].

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Que pode ser interpretada com base na lei da associação por simultaneidade, também denominada de catexia colateral, descrita por Freud [1895/1990].

Quadro 10 – classificação da afasia de acordo com Luria

Lesão Descrição Classificação

Anterior Problemas em relação à fluência e organização sintagmática - (eixo da contigüidade)

Afasia Dinâmica

Afasia Motora Eferente (Broca) Posterior Problemas com o uso e organização paradigmática

da língua - (eixo da similaridade ou eqüivalência)

Afasia Motora Aferente Afasia Sensorial

Afasia Acústico-amnésica Afasia Semântica

Para que o funcionamento bipolar da linguagem seja possível, há de lhe corresponder uma organização cerebral que o sustente. Essa talvez seja a grande contribuição de Luria, cujo trabalho, até os dias atuais, tem originado novas investigações nas áreas da Neurofisiologia e Neuropsicologia. Para entender a visão dinâmica de cérebro elaborada pelo autor, convém rever o que foi dito acerca do Localizacionismo.

Embora o estudo de Freud sobre a afasia provoque uma reviravolta na concepção reinante na área da neurologia no século XIX, pouca atenção lhe foi dada. Os princípios localizacionistas permaneceram praticamente inalterados até o início do século XX. Para se ter uma idéia, os diferentes “centros” deram origem ao “mapa sinótico localizado” desenvolvido pelo psiquiatra alemão K. Kleist em 1934. Mas a análise de fatos clínicos começou a colocar em xeque tais correlações. Observou-se que a afecção de áreas limitadas do córtex cerebral levava, via de regra, à perturbação de um grupo de processos psíquicos que, à primeira vista, pareciam inteiramente diferentes entre si. Um problema no lobo temporal esquerdo, por exemplo, além de produzir dificuldades relacionadas à compreensão da fala, podia ocasionar problemas de escrita, bem como, perturbações referentes à seleção de palavras (anomia).

Constatações como essa provocaram então uma grande reviravolta nos estudos neurológicos, liderada por estudiosos da chamada corrente “antilocalizacionista”. Pesquisadores como K. Goldstein118, por exemplo, lançaram a tese de que os processos psíquicos são função de

todo o cérebro e não podem, por isso, se situar em áreas delimitadas do córtex cerebral. Até os anos 60 essa visão holística influenciou fortemente os estudos na afasiologia. No entanto, pesquisas histológicas mostraram que essa pretensa homogeneidade da massa cerebral, de

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Goldstein [1878-1965] nasceu em terras da atual Polônia que pertenciam a Alemanha. Antes de estudar medicina estudou filosofia e literatura, áreas que certamente, influenciaram suas idéias.

funcionamento único, também carecia de fundamento. Luria, então, tenta conciliar o localizacionismo e o holismo [Rapp, 2003].

A saída para essa crise exigia, segundo Luria [1991a], uma revisão do conceito de “função psíquica” e, conseqüentemente, de “localização” dessas funções. Segundo Luria [op. cit.], o conceito de “função” em biologia tem duas acepções completamente distintas. Stricto sensu, entende-se por função a "direção de um determinado tecido" [Luria, op. cit., p. 89]. Por exemplo, a função do fígado é regulação da troca de hidrato de carbono e a função do pâncreas é a segregação de insulina. Num sentido mais amplo, "função" significa uma atividade de adaptação de todo o organismo. Pode-se então falar em função da respiração, da digestão, da locomoção. Nessa perspectiva abrangente, uma dada função constitui uma atividade complexa exercida pelo trabalho integrado de todo um conjunto de órgãos, cada um dos quais assegura um determinado aspecto do resultado global. Assim, “o sistema funcional representa um complexo todo dinâmico, no qual o objetivo final permanente (“invariante”) é realizado pelo sistema mutável (“variante”) de suas partes componentes” [Luria, 1991a, p. 89].

Essa noção ampliada de função é aplicada a vários atos biológicos de adaptação - digestão, locomoção, respiração - e, igualmente, às funções psicológicas que, sem dúvida, não podem ser localizadas em áreas limitadas do sistema nervoso, tampouco depender, na mesma medida, de todas elas a um só tempo. Assim, a tarefa da neuropsicologia luriana passou a ser a análise do sistema de zonas cerebrais que funcionam em conjunto ou, em outros termos, “a análise da maneira pela qual esse sistema funcional se distribui pelos aparelhos do córtex cerebral segundo as respectivas estruturas cerebrais” [Luria, op. cit., p. 92].

Dessa perspectiva se pode explicar porque uma afecção pode ocasionar a perturbação de diversos sistemas funcionais - desde que integrados por um determinado fator correlacionado àquela área determinada - e, inversamente, os motivos pelos quais um mesmo sistema funcional pode ser abalado por afecções de diferentes áreas cerebrais - considerando-se que todas elas desempenham um papel naquela determinada função. Tome-se por um momento, o sistema funcional da escrita. Sua realização inclui, além da análise auditiva, a análise cinestésica da estrutura da letra (articulação), a análise visual e a programação motora, podendo apresentar problemas – de natureza diferenciada – em virtude de afecções das áreas auditivas, cinestésicas, visuais ou motoras do cérebro. A análise da natureza de tais problemas funcionais auxilia tanto o diagnóstico tópico das lesões cerebrais, quanto a compreensão da estrutura fisiológica das funções psíquicas. Torna-se assim, imprescindível, a compreensão dos princípios que regem a organização funcional do cérebro humano.

O cérebro humano, segundo a visão luriana, é um complexo sistema hierarquicamente organizado. Os dois hemisférios cerebrais – considerados as áreas superiores do sistema nervoso central - asseguram a análise e síntese das excitações que chegam do mundo exterior, a assimilação e a elaboração da informação recebida, a elaboração de programas de atividades complexas e o monitoramento da vida psíquica. O córtex cerebral e a substância branca – constituída por fibras de projeção que ligam o córtex às formações subcorticais subjacentes e por fibras de associação que ligam regiões corticais isoladas – formam um aparelho altamente complexo e diferenciado, totalmente interligado. Composto por várias partes, qualquer perturbação em um determinado nível repercute - mais ou menos - sobre os demais.

Assim, embora o exame clínico de AL tenha acusado uma lesão nos lobos frontal e parietal direito alto a alteração funcional dessas regiões pode causar - em maior ou menor escala - conseqüências para o funcionamento geral do sistema. Também a causa da lesão tem um significado importante. Um TCE provoca um impacto da massa cerebral sobre a estrutura óssea craniana que influi na dinâmica do funcionamento cerebral, como foi visto no capítulo anterior.

Para entender o sistema cerebral e sua organização hierárquica é importante conhecer os três principais “Blocos” cerebrais descritos por Luria, que desempenham um papel especial no funcionamento psíquico. O primeiro deles mantém o tônus cerebral (Bloco I); o segundo recebe, elabora e conserva a informação que chega ao cérebro do mundo exterior (Bloco II) e o terceiro Bloco programa ações assegurando, regulando e controlando a execução de cada uma delas (Bloco III). A atividade consciente humana depende, em última análise, tanto da atuação isolada de diferentes órgãos do sistema nervoso que compõem cada um dos Blocos, quanto do trabalho integrado de todos os Blocos.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 120-125)