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A organização hierárquica do cérebro e o caso de AL

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 138-141)

À luz das formulações lurianas se pode melhor explicar alguns sintomas do caso clínico de AL que têm relação com as modificações funcionais provocadas pela lesão na organização e dinâmica de funcionamento de seu cérebro. Embora as seqüelas sejam leves – um quadro quase assintomático aos olhos de seu interlocutor – AL tem, de fato, dificuldades que se referem: (i) a manutenção do tônus do cérebro, cujo efeito imediato é o declínio da atenção voluntária que afeta, por sua vez, tanto a elaboração de planos, quanto o monitoramento das atividades psíquicas; (ii) a síntese de informações espaciais, com repercussões no modo como se orienta no espaço. A síntese espacial se relaciona ao Bloco II e às funções do HD do cérebro; a conservação do tônus cerebral está a cargo, prioritariamente, do Bloco I (e também do Bloco III); e o planejamento e seguimento das atividades psíquicas em geral, estão sob comando dos lobos frontais. Veja-se um exemplo de como elas se mostram:

Dado 9: anotações do meu diário de notas126 referentes à sessão de 07/05/2003.

Segundo AL, ele dirige o carro como se conhecesse o local em que está. Resultado: perdeu-se em São Paulo durante a viagem que fez essa semana. Cita um episódio que lhe ocorreu na semana passada, quando vinha para a Unicamp. Como teve que passar no Cartório, no centro da cidade - fato não freqüente – se atrapalhou para escolher o caminho que deveria fazer para

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Trata-se de um pequeno caderno onde registro os fatos que interessam ao acompanhamento clínico, seja pela recorrência, singularidade, estranheza ou ineditismo do episódio. É também a partir desse registro que o trabalho clínico se realiza.

chegar à Universidade. Fica nervoso e surpreso com sua indecisão porque já foi motorista profissional e estranha sua lentidão para tomar decisões desse tipo. Fez um caminho que lhe é mais familiar, embora, durante o percurso, tenha percebido que se tivesse seguido pela Av. Barão de Itapura para pegar a R. Carolina Florence, teria sido mais eficiente o trajeto. Segundo AL, a multiplicidade de coisas que ocorrem ao seu redor quando está dirigindo atrapalha a tomada de decisão (semáforos, pedestres, buzinas, etc.).

Tanto o TCE quanto o comprometimento frontal bilateral podem provocar dificuldades relacionadas à atividade seletiva do sujeito, isto é, à capacidade de dirigir a atenção para uma coisa e não para outra durante uma determinada atividade, o que implica a inibição de fatores que nela co-ocorrem e não são importantes para a sua execução [Coudry e Freire, 2005].

Ao dirigir o sujeito lida, ao mesmo tempo, com vários fatores: o percurso em si, as sinalizações de trânsito, os pedestres, os outros carros, os gestos que permitem conduzir o carro de maneira segura, etc. Cada um deles tem uma importância maior ou menor no curso da atividade, o que implica alternar rapidamente o foco de atenção de um para outro (ou para vários), quase simultaneamente.

O que acontece com AL? Em função da alteração da neurodinâmica de seu cérebro, seu funcionamento psíquico está mais lento e todas as variáveis que contam para a ação concorrem entre si como se tivessem a mesma importância ou a mesma força, resultando em um distúrbio de seletividade. A eqüidade das informações de que dispõe – sejam externas ou internas – deixam AL suscetível à distração, o que dificulta um planejamento estável da ação, bem como a avaliação de sua execução de modo a aplicar os ajustes que se façam necessários. Além disso, saber como chegar de carro a um determinado lugar pressupõe um plano mental que envolve uma série de elementos: um ponto de partida e um ponto de chegada (onde estou e para onde vou), pontos de referência identificáveis, leis de trânsito (ruas de dupla mão, mão única etc.), extensão do percurso (quarteirões, metros, quilômetros), entre outros. Todos eles remetem a um conjunto de coordenadas espaciais (direita, esquerda, subir, descer, seguir em frente, retorno), cuja percepção e análise, podem estar em certa medida, alteradas, considerando sua lesão parietal à direita.

AL não consegue pensar antecipadamente no percurso que deve fazer do centro da cidade até a Universidade. Faz o que está habituado porque está automatizado, bem estabelecido, fortemente registrado. Há uma defasagem de tempo entre fazer e refletir [Coudry e Freire, 2005]: a avaliação do trajeto é tardia e não há mais como mudar o trajeto. Sente-se frustrado. Como ex-

motorista profissional, fica nervoso quando percebe que poderia ter feito outro percurso, o que mostra, por outro lado, que é capaz de refletir ainda que tardiamente.

Esse modo de funcionamento é corroborado por outras situações vivenciadas pelo sujeito, especialmente antes do início do acompanhamento clínico:

Dado 10: excertos da entrevista com a mãe de AL em 02/04/03.

“AL irrita-se facilmente, não consegue nem assistir a um programa na TV porque não se concentra. Não segue uma conversa porque diz que um amontoado de coisas lhe vem à cabeça a um só tempo”.

(...)

“Sente-se inseguro quanto está rodeado por muita gente, está sem concentração e coordenação motora. Temo por ele porque está sem noção de perigo127, age por impulso”.

(...)

“Ele planeja fazer uma série de coisas durante o dia. Tem iniciativa, mas não leva nada adiante”.

Esses dados corroboram a hipótese diagnóstica de Síndrome Frontal leve: a alteração neurodinâmica não é tão intensa a ponto de provocar um transtorno no estado de vigília; a desorientação espacial não é grosseira e não se observam ações ecopráxicas ou estereotipias; a equalização da excitabilidade dos traços não é acentuada de modo a produzir um estado de confusão mental que leva à confabulação128. No entanto, seu corpo está ligeiramente desajustado em relação ao espaço circundante; múltiplas associações surgem em sua mente gerando uma demora na seleção daquela que lhe parece mais apropriada à situação em curso; metas e soluções de problemas são logo abandonadas pela dificuldade em mantê-las sob domínio da atenção; sob forte tensão age de maneira irrefletida; há um delay entre ação e reflexão: age primeiro e só depois reflete. Múltiplos sintomas, que em conjunto, geram frustração e insegurança e o fazem pensar que ele não é mais quem era: motorista profissional, “bom de papo” e “bam bam bam”.

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A mãe se refere a batidas de carro, roubos, etc.

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Daí adotar o termo “fabular” para as histórias ficcionais de AL – anteriores ao episódio neurológico - e não “confabular”. Esse último é marcado no discurso neuropsicológico para referir a uma condição patológica que se baseia em sinais clínicos que a acompanhariam: “(...) a anosognosia, a desorientação espácio-temporal, a alteração dos processos de controle de informação e da linguagem interna” [Morato, 1995a, p. 141].

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 138-141)