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Percepção e associação

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 70-72)

Embora Freud admita que os feixes de fibras que chegam ao córtex mantêm alguma relação com a periferia do corpo isso não quer dizer que eles refletem uma imagem topograficamente exata do corpo61. Trata-se de uma relação funcional e não de causa e efeito. Mesmo considerando

a ressalva de Wernicke de que só era possível localizar elementos psíquicos mais simples, Freud considera equivocada a idéia de localização, seja para uma impressão sensorial, seja para um complicado conceito.

Apoiado nos estudos de Hughlings Jackson, Freud afirma que as excitações não cessam quando os processos mentais começam, ao contrário, as excitações tendem a continuar. O processo psíquico, portanto, é paralelo ao fisiológico, é concomitante dependente (a dependent concomitant, nas palavras de Freud). O correlato físico de uma idéia para Freud é algo dinâmico: começa em um ponto específico do córtex e se difunde por ele ao longo de certas vias, deixando atrás de si uma modificação que pode ser recordada. São as imagens mnêmicas ou os traços mnêmicos. Isso significa que cada vez que o mesmo estado cortical for suscitado o evento psíquico a que se relaciona aparecerá na forma de recordação: “(...) não temos, por suposto, a menor idéia sobre como é possível o tecido animal sofrer tantas modificações diversas e diferenciá-las [Freud, 1891/1973, p. 71]62.

Assim, é impossível para Freud diferenciar o papel da percepção e o da associação: “(...) são dois termos com os quais descrevemos diferentes aspectos de um mesmo processo” [Freud, 1891/1973, p. 71]. Trata-se de abstrações de um processo unitário e indissolúvel que parte de um único ponto e se difunde por todo o córtex: não se pode ter uma percepção sem logo associá-la. A localização dos correlatos fisiológicos de uma e de outra é, portanto, a mesma “(...) surgem em um mesmo lugar e em nenhum momento são estáticas” [Freud, op. cit., p. 72]. É com a recusa da

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Para combater a idéia de projeção e contestar o papel dominante do córtex cerebral, Freud usa o conceito de Henle de redução das fibras através da massa cinzenta: o número total de fibras que entra na medula espinal é muito maior do que o número total de fibras que sai da medula espinal para conectá-la ao cérebro. Freud aplica esse mesmo raciocínio ao córtex cerebral e propõe que devam ser usados diferentes termos para esses dois tipos de representação no sistema nervoso: projeção para designar o modo como a periferia está refletida na medula espinal e representação para referir a sua contraparte no córtex. Em outras palavras, isto equivale a dizer que a periferia do corpo está contida no córtex não ponto a ponto, mas sim por fibras selecionadas com uma diferenciação menos detalhada.

existência de localizações separadas para a percepção e associação que Freud refuta a diferenciação entre centros e viasdalinguagem:

“(...) em cada parte do cérebro que está a serviço da linguagem temos que supor processos funcionais similares e não precisamos apelar para os feixes de fibras brancas para a associação das idéias dentro do córtex” [Freud, 1891/1973, p. 72].

Dessa maneira, a diferenciação entre afasia central e de condução não se sustenta mais: “(...) todas as afasias se originam da interrupção das associações, isto é, da condução” [Freud, 1891/1973, p. 81]. Mesmo a afasia decorrente de lesão em um centro é uma afasia por lesão de fibras associativas que se encontram em um ponto nodal desse centro.

Freud critica ainda a noção de hiatos funcionais. Segundo Meynert os processos fisiológicos de ocupação do córtex cerebral pelas imagens da memória (os resíduos das impressões sensoriais que nele chegam) dependem do número de células corticais e, portanto, a receptividade da memória é limitada pelo número de células corticais disponíveis. Assim, todo e qualquer conhecimento novo dependeria da disponibilidade (isto é, da não ocupação) de células corticais63. Freud afirma que o estudo da afasia mostra exatamente o oposto. Argumenta que aquisições posteriores ao desenvolvimento da língua materna (a fala) – a leitura, a escrita, outros idiomas, outros alfabetos, a taquigrafia – estão localizadas nos mesmos centros em que se localiza a língua materna: “(...) jamais acontece que uma lesão orgânica provoque uma deterioração que afete a língua materna e não a língua adquirida posteriormente” [Freud, 1891/1973, p. 75]. O conjunto de associações sobrepostas, portanto, é danificado antes da aquisição primária, qualquer que seja a localização da lesão64. Aqui, mais uma vez é à doutrina de Jackson que Freud recorre “segundo a qual todos esses modos de reação representam instâncias de regressão funcional (desenvolução) de um aparelho sumamente organizado, e correspondem, portanto, a estados anteriores de seu desenvolvimento funcional. Isto significa que em todas as circunstâncias, um ordenamento de associações, que por ter sido adquirido posteriormente, pertence a um nível superior de funcionamento, se perderá, mesmo que os ordenamentos mais remotos e simples se mantenham” [Freud, 1891/1973, p. 100].

Em última análise, de acordo com Freud, a afasia reproduz um estado que existiu no curso normal da aprendizagem da fala, com uma diferença: durante o aprendizado estamos limitados a

63 Daí a importância da postulação de célula permeável e não permeável feita por Freud no Projeto.

64 Quando isso não ocorre a explicação só pode se basear em fatores funcionais: a influência da idade de

uma hierarquia dos centros que começaram a funcionar em épocas diferentes (primeiro o sensorial- auditivo, depois o motor, em seguida o visual e, por último, o gráfico), enquanto na patologia funciona em primeiro lugar o centro menos comprometido.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 70-72)