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O aparelho de linguagem

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 72-75)

Freud recusa, portanto, a hipótese de que o aparelho de linguagem se constitui por centros distintos, separados entre si por áreas sem função. Recusa ainda a idéia de que as imagens que servem à linguagem estão armazenadas nesses centros e que a associação entre eles é feita exclusivamente por feixes subcorticais de fibras. É a partir da negação dessas idéias que Freud formula um novo conceito para o aparelho de linguagem: uma região cortical contínua que compreende o espaço entre as terminações dos nervos óptico e acústico, das regiões dos nervos cranianos e alguns nervos periféricos no hemisfério esquerdo. Trata-se de um aparelho equipado para associações [Freud, 1891/1973, p. 102], que vão além do território da linguagem.

Mas o que significa estar equipado para fazer associações? Freud mostra que a palavra é uma unidade funcional da linguagem, constituída por elementos auditivos, visuais e cinestésicos.Tal estrutura só se dá a conhecer por meio do estudo da patologia da linguagem que permite observar sua desintegração. A perda de qualquer um desses elementos é um importante indicador da localização da lesão.

A palavra – assim concebida - adquire significado por meio de sua associação com a idéia do objeto, ou pelo menos é isso o que ocorre, diz Freud, quando se consideram os substantivos [Figura 1]. A idéia ou o conceito de objeto é também um outro complexo de associações integrado pelas mais diversas impressões visuais, auditivas, táteis, cinestésicas. De acordo com a Filosofia – Freud se apóia nas idéias de J.S.Mill – a aparência de uma coisa cujas propriedades são transmitidas pelos sentidos se origina do fato de que ao enumerar as impressões sensoriais percebidas do objeto fica aberta a possibilidade de se dar uma série de novas impressões na cadeia de associações. Assim, a idéia de objeto (ou representação-de-objeto) é aberta, dificilmente propensa a fechar-se, enquanto o conceito de palavra (ou representação-de-palavra) é algo fechado, mas passível de extensão.

Figura 1: esquema da associação entre representação-de-palavra e representação-de-objeto [Freud, 1891/1973].

Para mostrar como essas unidades se associam Freud discorre sobre a aquisição da língua materna, o aprendizado da soletração, da leitura e da escrita. Mostra como às associações primárias vão se integrando novas cadeias associativas – as superassociações – mais susceptíveis de desintegração na ocorrência de uma lesão, como foi dito.

ContrariandoCharcot no que se refere às vias preferenciais de associação, Freud afirma que alguns tipos de associações têm preferência sobre as demais e que estas desempenham um papel diretivo na aprendizagem da linguagem65. Quando o aparelho de linguagem está íntegro tal

preferência habitual por uma ou outra de suas associações de linguagem pode existir, mas em casos de lesão, de diminuição da capacidade associativa, se restabelecem as linhas de associação que haviam sido empregadas primariamente. Afirma ainda que se uma lesão particular não afeta todos os elementos de uma dada função da linguagem, as atividades da porção intacta do tecido

65 Charcot, ao contrário, não previa uma regra geral de preferência a respeito das rotas de associação: todas

as conexões são dotadas de direitos funcionais equivalentes e ficam a cargo da prática ou da organização individual fazer que um ou outro elemento da linguagem seja o fator central coordenador dos demais. Esse modo de ver descarta, completamente, a dependência – postulada por Freud – da função da associação da linguagem em relação ao elemento acústico e abre a possibilidade para que uma mesma lesão possa provocar diferentes transtornos de linguagem.

visuais táteis acústicos associações de objeto palavra imagem de leitura imagem sonora imagem de movimento imagem escrita

nervoso “compensarão a parte lesada e encobrirão o defeito” [Freud, 1891/1973, p. 102]. Esse modo dinâmico de conceber o funcionamento psíquico e neurofisiológico do cérebro, do nosso ponto de vista, tem um efeito importante no trabalho clínico com a linguagem. Ainda hoje a correlação entre o ponto de vista funcional (dinâmico) e a localização da lesão não recebe a devida atenção [Stengel, 1973; Sacks, 1995a, Souza e Mattos, 1999], prova disso é a história clínica de AL. Com base em suas observações a respeito das patologias de linguagem e com base no esquema de representação-de-palavra e representação-de-objeto (e a associação entre elas) Freud distingue os transtornos da linguagem em duas classes. A primeira delas compreende a afasia verbal, em que estão perturbadas as associações entre os distintos elementos da representação-de- palavra. A segunda classe engloba a afasiaassimbólica66

, em que está alterada a associação entre a representação-de-palavra.e a representação-de-objeto.

A patologia que apresenta problemas na relação entre o conceito de objeto e sua idéia (objeto real no mundo físico percebido pelos processos perceptivos) – denominada de agnosia por Freud – decorre para ele, de extensas lesões corticais bilaterais e pode acarretar problemas de linguagem na medida em que todos os estímulos para a linguagem surgem das associações com o conceito de objeto, já que percepção e associação são faces de um único processo. Freud entende que esses casos configuram uma terceira classe de afasia, a afasiaagnósica.

A afasia agnósica, portanto, é causada por um efeito funcional remoto com ausência de lesão orgânica no aparelho de linguagem e a afasia verbal e a assimbólica são manifestações de lesões nesse aparelho.

Nesse trabalho, portanto, Freud concebe o aparelho de linguagem como um aparelho equipado para associações (que vão além do território da própria linguagem) que se dão por meio de múltiplos trajetos (sendo que alguns têm preferência sobre outros) que deixam atrás de si modificações funcionais que podem ser recordadas. O aparelho de linguagem é tratado no texto de 1895, Projeto para uma Psicologia Científica, como um aparelho de memória. Considerando-se os lapsos de memória descritos por AL, parece oportuno compreender como Freud chega a essa conclusão. Passo assim a apresentar as principais idéias da primeira e terceira partes do Projeto – nas quais Freud apresenta uma concepção geral do funcionamento neurológico, especialmente da

66 Freud emprega o termo “assimbólica” com um sentido diferente daquele que havia sido dado por

Finkelnburg. Para Freud assimbólico parece mais apropriado para designar a relação entre a palavra e a representação (a idéia) do objeto do que para referir à relação entre o objeto e a coisa. Para este tipo de relação Freud usa o termo “agnosia”. Na bibliografia corrente é comum encontrarmos essa afasia com a denominação de “simbólica”. Manterei a expressão “assimbólica”, de acordo com a edição Argentina de 1973 consultada.

memória - cuja leitura foi beneficiada pela consulta a outras fontes que serão referenciadas no decorrer do texto.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 72-75)