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A unipolaridade da Afasia

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 100-105)

Partindo da análise da desintegração do sistema de sons que ocorre em casos de afasia e com base em seus estudos sobre a Fonologia, Jakobson afirma ser possível estabelecer “leis de implicação” entre a linguagem infantil e a linguagem na afasia, sendo esta última “um espelho” da ordem de aquisição dos sons pela criança ou “o desenvolvimento infantil ao inverso” [Jakobson, 1955/1970, p. 46; 1969, p. 36-37], o que sugere, segundo o autor, que essa forma de involução possa ocorrer também na sintaxe.

Inspira-se na noção de “duplo fenômeno” formulada por Jackson a respeito das parafasias semânticas. Em tais ocorrências o sujeito diz uma palavra no lugar de outra, sendo que as duas palavras (a desejada e a dita) geralmente pertencem a um mesmo campo semântico. Jackson afirma que para se compreender o fenômeno é preciso analisar não só a palavra que não foi dita como aquela que foi dita em seu lugar. Jakobson afirma então que a afasia pode levar a uma “redistribuição das funções lingüísticas” [Jakobson, 1955/1970, p. 43] e para argumentar a favor de sua tese apresenta um conjunto de exemplos que envolvem aspectos fonológicos, mostrando que as perdas provocadas pela lesão podem levar a compensações da mesma natureza, isto é, a rearranjos do próprio sistema fonológico [Jakobson, op. cit.].

A linguagem, segundo Jakobson, tem um “duplo caráter”: a produção verbal implica a seleção de elementos95 lingüísticos e a combinação deles em unidades de complexidade mais elevada [Jakobson, 1969, p. 37]. Dito de outro modo, a produção e a interpretação de qualquer unidade lingüística (uma palavra, uma frase, um texto) põe em operação dois mecanismos: (i) a comparação entre elementos semelhantes que pertencem a um mesmo paradigma e que, portanto,

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Trata-se do capítulo 14, intitulado "Two basic kinds of aphasic disorders". Nele, Luria referencia alguns trabalhos de Jakobson: o de 1964, intitulado "Towards a linguistic typology of aphasic impairments"; o de 1971, "Studies in child language and aphasia" e, finalmente, o datado de 1956 e escrito em parceria com Halle cujo título é: "Fundamentals of Language".

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Escolho a expressão “elemento” para me referir genericamente às unidades de cada um dos diferentes níveis de organização hierárquica do sistema lingüístico.

podem ser substituídos e (ii) a relação de um dado elemento com os elementos que o precedem e o sucedem e que pertencem a um mesmo sintagma.

“A concorrência de entidades simultâneas e a concatenação de entidades sucessivas são os dois modos segundo os quais nós, que falamos, combinamos os constituintes lingüísticos” [Jakobson, 1969, p. 38].

Isso quer dizer que a linguagem – em seus vários aspectos, isto é, em seus diferentes níveis de estruturação - lida simultaneamente com dois tipos de relações, daí sua natureza “bipolar” [Jakobson, 1955/1970]. Uma delas, interna, de similaridade (ou equivalência) e, a outra, externa ou de contigüidade. A relação interna, ou de seleção, diz respeito à escolha de elementos da língua que podem co-ocorrer em um dado contexto verbal nos diferentes níveis hierárquicos e, a relação externa ou de contigüidade, diz respeito à relação entre os elementos selecionados, isto é, à ordem do sistema lingüístico96. De forma análoga, diz ele, na retórica, essa bipolaridade pode ser representada pela metáfora e pela metonímia [Quadro 8].

Quadro 8 – bipolaridade da linguagem

Eixo Paradigmático/metafórico Sintagmático/metonímico

Tipo de relação Interna, relacionada ao sistema da língua.

Denominada de similaridade ou equivalência.

Externa, relacionada ao contexto verbal.

Denominada de contigüidade. Descrição da relação Seleção de elemento da língua em

cada um dos níveis hierárquicos.

Combinação dos elementos

selecionados de acordo com uma certa ordem do sistema lingüístico.

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No artigo de 1969 – “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia” – Jakobson recorre a Saussure para mostrar que a combinação aparece “in praesentia” e a seleção “in absentia”. Alerta, no entanto, que Saussure reconhece apenas a seqüência temporal, isto é, a combinação [Jakobson, 1969, p. 40].

Em qualquer ação de fala há uma espécie de contigüidade entre os interlocutores que garante “a transmissão da mensagem”, ou em outros termos, a intercompreensão97. Ao mesmo

tempo, ainda que exista uma separação espaço-temporal entre os interlocutores, ambos estão unidos por uma relação interna: há uma certa equivalência entre os símbolos usados por eles, isto é, um repertório comum que é usado tanto na produção quanto na interpretação de sentidos, sem o qual o dito não faz sentido.

“(...) os componentes de qualquer mensagem estão ligados necessariamente ao código por uma relação interna de equivalência e ao contexto por uma relação externa de contigüidade” [Jakobson, 1955/1970, p. 48].

Quando Jakobson usa a palavra “contexto”98 ele se refere ao contexto verbal, isto é, ao modo como os diferentes elementos da língua se organizam em níveis hierárquicos qualitativa e estruturalmente diferentes. Cada um dos níveis hierárquicos tem uma relação diferente com a língua (ou código, para usar sua terminologia) e com o contexto [Jakobson, 1955/1970, p. 49]. Assim, os morfemas são o contexto dos fonemas, as palavras são o contexto dos morfemas, as sentenças o contexto das palavras e o discurso o contexto das sentenças. Todo e qualquer elemento lingüístico serve, a um só tempo, de contexto para outros elementos mais simples e encontra seu próprio contexto em um elemento lingüístico mais complexo: “combinação e contextura são duas faces de uma mesma operação” [Jakobson, 1969, p. 39].

Da imbricação dos dois eixos resulta a relativa liberdade do falante (e, conseqüentemente, de seu interlocutor) no uso da língua. Isto significa que nenhum falante/escrevente de uma língua está isento da “rede de convenções lingüísticas” que a regula [Corrêa, 2002, p. 37]. A seleção de um dado fonema para ocupar uma certa posição em uma palavra considera o subconjunto de fonemas semelhantes que concorrem naquele contexto verbal particular e pertencem, por um lado, ao repertório de sons de uma dada língua e, por outro, podem ocupar um certo lugar em função da

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É de se esperar, dada a época em que os textos sobre a afasia foram escritos (especialmente o de 1955), que Jakobson faça uso de uma terminologia diferente da que adotamos nos estudos neurolingüísticos discursivos. Só para esclarecer o leitor, Jakobson concebe o código, o canal e a mensagem como partes integrantes do circuito de comunicação [Corrêa, 2002]. Assim, um enunciado é uma mensagem; o locutor é o expedidor; o interlocutor é o receptor; a língua é o código e por aí segue. Embora existam diferenças teóricas entre as terminologias interessa aos meus propósitos a elaboração do autor sobre o modo de organização do sistema da língua, absolutamente atual e produtiva para o estudo do funcionamento da linguagem em sujeitos cérebro-lesados.

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No texto de 1969 Jakobson emprega o termo mensagem com sentido equivalente a do termo contexto, usado no texto de 1955.

seleção que a precede (e, portanto, em relação à combinação que a precede) e da que lhe segue (e, conseqüentemente, em relação à combinação que dela resulta), e assim sucessivamente. Nessa combinação de elementos da língua Jakobson afirma que há uma “escala ascendente de liberdade do falante”99:

“Na combinação de traços distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala é nula; o código já estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua em questão. A liberdade de combinar fonemas em palavras está circunscrita; está limitada à situação marginal da criação de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sofre menor coação. E, finalmente, na combinação de frases em enunciados, cessa a ação de regras coercivas da sintaxe e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce substancialmente, embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados” [Jakobson, 1969, p. 39].

É com base no duplo caráter da linguagem que Jakobson distingue dois tipos de afasia quer as dificuldades incidam de forma mais preponderante nas relações internas ou de seleção, quer incidam nas relações externas, de combinação. Para o autor, portanto, a afasia afeta, em diferentes graus, a capacidade que o sujeito tem de selecionar e combinar os elementos lingüísticos. De modo geral, os afásicos que apresentam dificuldades com a seleção têm problemas com a metalinguagem, enquanto aqueles que apresentam dificuldades com a combinação têm problemas com a hierarquia do sistema lingüístico. Nos dois casos o outro eixo de funcionamento da linguagem está preservado [Jakobson, 1955/1970 e 1969].

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Corrêa [2002] chama a atenção para o fato de que nessa “escala” Jakobson toma como parâmetro unicamente o código, embora considere a linguagem inserida em uma esfera comunicativa que prevê um destinatário, um remetente e um repertório lexical comum. Daí Corrêa considerar essas restrições da ordem do código na realização concreta da linguagem como uma forma de “dar regularidade e homogeneidade a um objeto de estudo que aos olhos de Saussure, por exemplo, parecia inapreensível cientificamente”, a parole [Corrêa, op. cit., p. 46]. Segundo o autor, levar em conta (além do código) as mensagens efetivamente realizadas – e, portanto, o destinatário – faz aparecer o avesso da seleção, a exclusão, já que a escala ascendente de liberdade do falante deve considerar como limite o uso de um repertório comum entre os participantes da situação de comunicação: “assim, no caminho de sua aplicação do código para a mensagem, o arranjo por seleção tem um funcionamento espelhado: aplica-se positivamente em relação ao código, mas negativamente em relação à mensagem” [Corrêa, op. cit., p. 47].

“A oposição entre os dois tipos de comportamento verbal – o metonímico, que se refere às relações externas, e o metafórico, que envolve as relações internas – serve de base aos síndromes alternativos dos distúrbios afásicos – desordem de similaridade e desordem de contigüidade. Enquanto que cada um destes dois tipos de afasia tende para a unipolaridade, o comportamento verbal normal é bipolar” [Jakobson, 1955/1970, p. 53].

Os afásicos que apresentam a relação interna afetada (de similaridade ou de seleção), grosso modo, são capazes de “seguir, continuar e completar um contexto” dado que estão funcionais as relações externas, de contigüidade [Jakobson, 1955/1970, p. 50]. Por isso, esses pacientes apresentam dificuldade com a seleção espontânea de palavras, sintoma descrito pela afasiologia clássica como anomia. É devido ao abalo da relação interna que esses afásicos não conseguem substituir um elemento da língua por outro, com base em suas semelhanças; fazer uso da metalinguagem (nomear, definir, listar, repetir); fazer a transposição de um sistema de sinais para outro (isto é, uma “tradução intersemiótica”). Categorias como conjunções, preposições, artigos e pronomes estão conservados na produção verbal desses pacientes exatamente porque elas provêem o encadeamento do contexto verbal. A relativa liberdade do falante no que se refere à seleção de palavras está limitada e para esses sujeitos é mais fácil fazer uso de metonímias. Em resumo,

“(...) quando a capacidade de seleção é fortemente afetada e o poder de combinação pelo menos parcialmente preservado, a contigüidade determina todo o comportamento verbal do doente e nós podemos designar esse tipo de afasia como distúrbio da similaridade” [Jakobson, 1969, p. 50].

Ao contrário, quando o afásico apresenta dificuldades nas relações externas, as de contigüidade ou de combinação, as palavras relacionais são afetadas, produzindo o que a literatura denomina de estilo telegráfico. Persistem na fala desses sujeitos substantivos, verbos, adjetivos, sendo que a relativa liberdade do falante em relação à livre combinação de palavras em contextos maiores está reduzida. Observa-se assim, uma desordem na organização hierárquica do sistema, denominada de agramatismo. Esses afásicos usam com maior propriedade metáforas. Segundo Jakobson esse tipo de afasia, em especial, representa a regressão “mais regular e consistente aos estágios de linguagem da primeira infância” [Jakobson, 1950/1970, p. 53].

Jakobson mostra, em última análise, que a afasia tende a um funcionamento “unipolar” da linguagem, embora no uso individual da língua os sujeitos – afásicos ou não afásicos – manifestem uma predileção por um ou outro eixo:

“Manipulando esses dois tipos de conexão (similaridade e contigüidade) em seus dois aspectos (posicional e semântico) – por seleção, combinação e hierarquização – um indivíduo revela seu estilo pessoal, seus gostos e preferências” [Jakobson, 1969, p. 56]100.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 100-105)