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Efeitos do bem escrever

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 169-172)

O mito do letramento, de maneira sorrateira, faz parte de inúmeros discursos com ampla circulação em nossa sociedade e que em nada contribuem para (re)colocar as questões sobre a língua, a aprendizagem ou a escola, em outro lugar. As notícias veiculadas pelos meios de comunicação de massa oferecem farta evidência disso. No capítulo do dia 09/12/2003 da novela Celebridade, da Rede Globo, exibida em horário nobre, por ocasião da premiação do personagem José Carlos - um garoto de cerca de 10 anos - pelo seu rendimento na escola em "redação", a suposta diretora da escola, ao condecorá-lo, diz que deixou aquela medalha em último lugar porque "todos sabem que saber escrever corretamente é a base para todo o resto"165.

No ano anterior, em 7 de novembro de 2002, foi a vez da Revista Veja, semanário de circulação nacional, publicar a matéria (de capa) "Falar e escrever bem: o brasileiro tem dificuldade de se expressar corretamente". O título parece suficiente para mostrar o preconceito com que são tratadas as noções de língua, leitura, escrita..."corretas". Falar e escrever bem são, em última análise, passaporte para melhor desempenho cognitivo e, conseqüentemente, social.

Kleiman [1995] apresenta o extrato de algumas matérias jornalísticas - retiradas da coletânea de textos "Analfabetismo no Brasil" [1990] - que evidenciam esse tipo de "senso comum" e que relacionam o letramento (escolar) à manutenção de características da espécie humana, modernidade, ascensão e mobilidade sociais, desenvolvimento econômico, distribuição da riqueza, produtividade, emancipação feminina e, até mesmo ao avanço espiritual. Impressionante notar como esse tipo de discurso vai sendo, pouco a pouco, incorporado, aumentando ainda mais o fosso que separa os menos letrados do grupo dominante (longe se ser o majoritário). Em síntese, o modelo autônomo (vigente ainda em nossas escolas), atribui o fracasso escolar ao próprio indivíduo.

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Corro o risco de não ser absolutamente fiel na transcrição das palavras do personagem, porque não as anotei de imediato e estou me fiando em minha memória. No entanto, tenho absoluta certeza de que o sentido nelas "impregnado" aproxima-se muito do que escrevi.

Mas nenhum jornal será capaz de apresentar - especialmente pela pena de um jornalista - uma avaliação não preconceituosa, ou sem repetir o pensamento único, de erros ortográficos ou de variantes gramaticais. Jamais.

Possenti [2003] faz uma interessantíssima análise da maneira como a língua vem sendo tratada na mídia (tv, rádio, imprensa) ou, mais especificamente o que ele denomina de "multiplicação de aulas de português pela mídia", que se restringem a retomar "uma espécie de resumo ou simulacro das gramáticas normativas" [Possenti, 2003, p. 68] refletindo uma certa concepção geral sobre língua. Como leitor atento ao fenômeno Possenti observa em meio a pequenas notícias "tentativas de análise (...) de quem (re)enuncia um saber definitivo" que exibem "as opiniões mais primárias e preconceituosas que, no entanto, parecem as únicas possíveis" [Possenti, op. cit., p. 69].

O autor destaca algumas razões, nas quais acredita, contribuíram para o fenômeno: (i) fracasso do sistema escolar em relação à sua capacidade de ensinar a língua padrão; (ii) a suposição de que a língua oferece apenas uma forma de falar/escrever corretamente; (iii) a crença de que "falar corretamente" é condição necessária para a obtenção de um bom emprego; (iv) a suposição de que quem "conhece a gramática" escreve bons textos; (v) uma certa proximidade entre o discurso de auto-ajuda, também crescente em nossa sociedade, e o tipo de ensinamento que se faz a respeito da língua via mídia [Possenti, 2003, p. 68-69].

De forma geral, o que se lê e o que se ouve na mídia sobre o tema é resumido pelo autor por meio de seis rubricas: “preconceito” (especialmente se se trata de povos considerados "atrasados" ou quando o português falado é de uma região que não é a do repórter); “viés normativo” (que acaba por transformar a gramática em voz definitiva, desconsiderado a língua como fenômeno socio-histórico); “análises fajutas” (tentativas desastrosas para explicar o que foi considerado "erro"); “purismo” (expresso por julgamentos duvidosos sobre mau gosto, falta de clareza, estrangeirismo e invenções lexicais); “associação entre correção e inteligência” (construções não normativas são consideradas evidência de pensamento falho, confuso ou pouco inteligente); “língua é escrita” (desconsiderando-se totalmente o oral e, conseqüentemente, a circulação que se dá entre as duas formas de representação da língua); “psicolingüística de araque” (que se restringe a uma série de dicas, quase sempre, nonsense)

Esse efeito invisível, devastador, foi flagrado na fala de AL, em um de nossos encontros. AL estava recontando uma matéria de jornal que acabara de ler. Trata-se de uma reportagem sobre um livro, recém-lançado à época, pelo psicanalista e educador Rubem Alves em co-autoria com o jornalista Gilberto Dimenstein, intitulado “Mau na escola, bom na vida”. O texto fala sobre as experiências dos dois, dentro e fora da escola, e critica o sistema educacional com suas amarras curriculares; falta de sintonia com a realidade dos alunos e pouco estímulo à criatividade de modo

geral. Um tema caro à AL, cuja leitura desencadeia associações relacionadas à sua própria história escolar [Dado 13].

Dado 13: recontagem do texto Mau na escola, bom na vida

"Dois rapazes, que nunca gostaram de estudar, por vários motivos - professores, escola -, durante um papo, resolveram escrever um livro. Hoje, já são graduados, excelentes professores. O livro é para explicar para o pessoal que não gosta de muito estudo que se se esforçar, não tiver preguiça, falta de atenção, é só querer que consegue".

AL junta duas histórias, possivelmente devido a associações que livremente surgem em função da alteração da neurodinâmica do funcionamento cerebral que apresenta por um lado, e a sua dificuldade em manter o foco de atenção na leitura em andamento, por outro. Como resultado, consegue recontar o início do texto, mas se equivoca ao concluir seu relato, possivelmente influenciado por discursos sobre uma escola - sempre certa - e os alunos, sempre preguiçosos! Chama a atenção o uso da expressão “pessoal” - uma maneira de individualizar o que é coletivo – para avaliar e punir. Pouco esforço, preguiça e desatenção: várias explicações possíveis – e possivelmente já ouvidas – para o seu próprio fracasso escolar. O discurso da ordem - uma outra voz, que não a sua, que não a dos autores - ecoa em sua enunciação: a memória autobiográfica se faz presente na cadeia de discursos do senso comum. Resta dizer que AL, sem nenhuma dúvida, lê o texto e dirige a mim – seu interlocutor – sua interpretação.

5. Achados e indícios

Freud nunca esqueceu esse 'bon mot', e anos depois, ao transtornar o mundo com fatos incríveis, nunca se cansava de repeti-lo: a teoria está muito bem, mas isso não impede que os fatos existam. Foi a principal lição que Charcot tinha a transmitir: a obediência submissa do cientista aos fatos não é a adversária, mas a fonte e a servidora da teoria. [Peter Gay, 1989, p. 62-63]

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 169-172)