• Nenhum resultado encontrado

O trabalho clínico com AL

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 176-183)

Talvez a maior dificuldade do acompanhamento longitudinal de AL seja a manutenção, por um certo período, das atividades com e sobre a linguagem. Não lhe falta entendimento a respeito da importância e pertinência das sugestões que lhe são feitas; falta-lhe organização e concentração para empreendê-las durante um intervalo de tempo, duas características importantes do quadro de SFleve. Observam-se páginas em branco em sua agenda (especialmente nos períodos em que os atendimentos foram suspensos devido a férias ou outros acontecimentos172), sem dúvida, o instrumento terapêutico de maior valia dentre aqueles utilizados. Essas páginas mostram que AL ainda depende, fortemente, do outro, isto é, do papel que esse outro desempenha no monitoramento de suas próprias ações. O trabalho clínico funciona como um importante lastro para a concretização de seus planos pessoais.

O acompanhamento longitudinal de AL, embora tenha como fio condutor o exercício da linguagem, especialmente a enunciação escrita como forma de registrar suas vivências, rememorar experiências e estabelecer múltiplas associações, transborda em outras direções. A leitura partilhada de suas notas na agenda foi, pouco a pouco, mostrando não só questões ortográficas e textuais, como também, seu modo de viver.

Estabelecemos em comum acordo algumas rotinas diárias visando a prática de uma atividade física prazerosa, o cuidado alimentar, o aprimoramento sócio-ocupacional e o lazer, aspectos importantes em seu caso clínico. As dificuldades enfrentadas em relação ao planejamento,

171 No acompanhamento clínico de casos de dificuldades lingüísticas e psíquicas é fundamental que o sujeito

possa exercer sua subjetividade por meio da linguagem já que, nos trabalhos mais tradicionais, quase nunca o sujeito se vê na posição daquele que tem o que dizer. A respeito das afasias, Coudry diz: "o afásico é sempre quem recebe os comandos do sistema e, nesse sentido, não passa pela experiência de constituir-se como locutor, perspectiva de quem produz um discurso sob a cobrança de uma 'falta' sob o parâmetro do sistema" [Coudry, 1986/88, p. 68].

172Especialmente, reforma do LABONE e greve das universidades estaduais, no período de 14 de agosto a 29

execução e avaliação de seus propósitos, interferem de forma significativa em sua vida diária. No caso de AL há ainda alguns agravantes. Habituou-se a uma vida desregrada, sem horários; em função do acidente deixou de fazer coisas que antes fazia - como praticar esportes - com receio de se machucar. Essa tomada de decisão representou muito para ele. Antes de tudo, jogar futebol era um modo de ultrapassar limites impostos pelo discurso familiar a respeito de seu estado físico. Sua mãe, segundo AL relata, tinha muito medo de que ele se machucasse durante os jogos. AL se sentia incapaz de se divertir como antes e o acidente adquiria uma dimensão enorme. Criou coragem, “desobedeceu” a mãe e voltou ao futebol: voltar às peladas implica ultrapassar um discurso a respeito de si mesmo.

Aos poucos, estabelecemos metas para dar espaço e tempo as suas ações. Como conciliar o convívio familiar, as atividades sociais e o trabalho se AL costumava sair todas as noites com os amigos, voltar tarde e não ter horário para se levantar no dia seguinte? Essa rotina, reforçada pelo descompromisso com o trabalho - cujo exercício não impõe rigor com horários - desarranja sua vida. Esse estilo de vida é, provavelmente, levado por muitas pessoas, no entanto, no caso de AL, dadas as condições neurológicas e psíquicas, esse modo de funcionamento contribui para a não manutenção do tônus cortical ótimo, facilitando a ocorrência de livres associações indesejáveis (pensar em assuntos paralelos enquanto ouve seu interlocutor, não conseguir se decidir entre duas ou três soluções que lhe ocorrem “quase-simultaneamente” diante de um problema, dizer o que não quer dizer em determinada situação dialógica, e por aí afora), atrapalhando o funcionamento cerebral em geral. O sujeito com quadro de SFleve fica preso a um labirinto sem saída. Cada dia parece único, difícil, com planos impossíveis de serem concretizados. A frustração cresce em função do que não consegue fazer. As pessoas não consideram seus atos e sua palavra; pior, o próprio sujeito começa a colocá-los em dúvida.

Isso não quer dizer que o estabelecimento e a observância de certas rotinas resolvam o problema. Em absoluto. O que se objetiva clinicamente é potencializar um melhor funcionamento psíquico e orgânico. Medidas desse tipo fazem bem a qualquer pessoa e, no caso de AL, favorecem a organização de seu estado psíquico. O esforço psíquico para se manter “no mundo”, isto é, para participar de forma efetiva e significativa, é ainda maior se comparado ao de qualquer outra pessoa. A vigilância constante gera um certo desconforto, de início. No entanto, a preservação desse estado de “alerta”, beneficiado por condutas mais regulares, começa a produzir efeitos positivos: AL começa a se sentir mais confiante e a enfrentar com maior senso de realidade os desafios que surgem.

Aos poucos, a vida começa a entrar nos eixos. O turbilhão de 2003 passou. Mais regrado, mais caseiro, mais atento, AL começa a tocar a vida, sem maiores problemas. Os remédios, os acompanhamentos fonoaudiológico e psiquiátrico, o ajudam a se inserir de maneira mais tranqüila em seu dia-a-dia. Mais seguro para se relacionar com as pessoas, mais fluente na escrita, menos envergonhado de suas limitações. O relacionamento familiar também melhora. No final de 2003 foi com a família para a praia. É com satisfação que registra esse momento em sua agenda [Dado 14]:

06 de dezembro Sábado

ACORDEI SEDO E FUI COM MEUS PAIS PARA A PRAIA .

CONVERSAMOS MUITO, EU E MEU PAI FOMOS CAMINHAR NA PRAIA, E FIZEMOS UMA COISA QUE FAZIA TEMPO

TEMPO QUE NÃO FAZÍAMOS; CONVERSAMOS MUITO À TARDE FOMOS PARA CASA E FIZEMOS

CHURRASCO DAS 17:00 HORAS AS 10:OO HORAS FOI BOM, QUE FICAMOS CONVERSANDO

EU, MEU IRMÃO, MEU PAI, SEU MARCÍLIO, E O ROBERVAL .

FALAMOS DE MUITA COISA ENTERESANTE QUE FAZIA TEMPO QUE NÃO CONVERSAVAMOS NÃO SAI FUI SORMIR SEDO ...

07 de dezembro Domingo

ACORDEI CEDO E FOMOS PARA A PRAIA. ENCONTREI COM UMAS AMIGAS DE CAMPINAS QUE ESTAVÃO EM CARAGUÁ COM OS PAIS, FICAMOS COMVERSANDO SOBRE AS BALADAS

DE CAMPINAS E OUTROS ASUMTOS ATÉ DO ACIDENTE À TARDE FUI PARA O CENTRO DE UBATUBA PROCURAR CASA PARA PASSAR O REVEIOM COM A TURMA, SO PEGEI TELEFOME . À NOITE FICAMOS EM CASA CHOVEU E ESFRIOU .

DESSA VEZ TROUSE A AGENDA PARA EXCREVER , NÃO TIVE VERGONHA ...

Chama a atenção a repetição da palavra “conversar” (e suas variações). Quais as razões dessa repetição? O texto retrata a repetição da vida cotidiana e narra dias passados na praia, onde pouco se faz, portanto, não há muito a dizer. Outra possibilidade é que ela seja motivada por um componente psico-afetivo: AL conversa com o pai, coisa que há muito tempo não acontece, como ele mesmo revela.

As caminhadas em companhia do pai, as longas conversas com os familiares, fazer com eles uma atividade prazerosa, recolher-se cedo à noite. Atividades corriqueiras, mas que ocorriam cada

vez menos na vida de AL. É importante assinalar que AL dessa vez decidiu levar sua agenda pessoal: “NÃO TIVE VERGONHA”, escreve.

No trabalho, novas responsabilidades lhe foram atribuídas. Tem aprendido muito, segundo conta, com um dos donos dos estabelecimentos nos quais trabalha. AL tem admiração por ele que, em sua opinião, tem grande visão para negócios. Atualmente estão expandindo a compra e venda de ticket para outra cidade da região. AL tem viajado constantemente para tratar do assunto. Outros amigos lhe requisitam para trabalhos informais: monta estandes para exposição de roupas de ginástica, transporta pessoas que vêm a trabalho para Campinas, cuida da segurança em alguns eventos. É uma referência para os amigos: sempre que alguém bate o carro, sofre algum tipo de acidente ou é vítima de um roubo, AL é chamado para ajudar a tomar as providências necessárias: polícia, hospital, oficina, o que for necessário.

No entanto, algo ainda estava em descompasso. AL “cumpria” suas obrigações, fossem no trabalho, em casa ou na clínica; mas sempre numa certa medida, como se fossem tarefas escolarizadas. Faltava-lhe um certo ímpeto para seguir adiante, para ir além, um desafio, um objetivo. A agenda, exceto nos períodos referidos, era regularmente “preenchida”. Outros textos, decorrentes de suas notas, nem sempre eram feitos. Ler, reler, reescrever, tarefas difíceis para ele. Um certo grau de satisfação havia sido alcançado, depois de um longo período difícil. Esse estado, no entanto, parecia não alimentar novos desejos. O que queria AL? Como ajudá-lo a projetar seu futuro?

Antes de dar início aos atendimentos em 2004, após um período de férias, conversei com seu psiquiatra. Suas impressões a respeito da evolução do caso de AL coincidiam com as minhas: AL estava bem, tranqüilo, mas sem planos para o futuro. O psiquiatra comentou: “sua angústia parece ter aquietado, mas, um certo grau de angústia é o que faz as pessoas avançarem na vida”.

Logo que AL voltou das férias, comecei a discutir seu futuro profissional. Quais seus projetos para os próximos anos? O que aconteceria com ele? Será que as suas funções na padaria e na churrascaria seriam eternas? O que mais ele gostaria de fazer? Como poderia ir atrás de seus ideais? AL está convencido de que precisa retomar seus estudos. Sabe que sua escolaridade não é suficiente para pleitear um emprego de maior status no mercado de trabalho. Mostrei a ele que aquele era o momento oportuno de investir em si mesmo. AL ganhou confiança.

Quase três semanas foram necessárias para que AL tomasse alguma decisão. Em um de nossos encontros, falou sobre a sua primeira professora, aquela que o agredia quando era criança. O fantasma da insegurança voltara a lhe rondar. Mas AL já não é mais o mesmo AL daquele tempo. Muitas coisas aconteceram. Esse era o momento de enfrentar uma nova situação de vida.

Assim, em abril de 2004, depois de um ano de acompanhamento clínico sistematizado, AL se inscreveu em um curso no SENAC sobre Organização de Eventos, com duração de quatro meses, com aulas à noite, três vezes por semana. Há tempos AL tem interesse por essa área. Ele é socialmente bem relacionado, sabe promover festas, conhece a infra-estrutura necessária, mas não tem nenhum tipo de “qualificação” que lhe autorize a oferecer esse tipo de serviço. Muitas vezes é convidado pelos amigos para “ajudar” a promover reuniões sociais.

Para comemorar a novidade a Profa Coudry e eu aceitamos um convite antigo: almoçamos com ele na churrascaria. Foi uma surpresa! Conhecido pelo apelido de “Lemão”, AL se mostrou totalmente confortável com a situação: nos recebeu muito bem, falou sobre culinária, indicou os melhores pratos, resolveu assuntos de trabalho pelo celular, explicou o funcionamento do restaurante, nos apresentou às pessoas, enfim, estava completamente à vontade e ciente de seus afazeres. A certa altura, um garçom derrubou os talheres. Sutilmente, sem nenhum alarde, fez-lhe um sinal para recolhê-los e levá-los para a cozinha. Um verdadeiro profissional, muito diferente do homem que nos procurou um ano atrás.

Outro fator mudou significativamente ao longo desse ano de acompanhamento clínico. AL sempre teve vergonha de mostrar as suas eventuais namoradas suas dificuldades. Naquele período, AL começou a namorar uma garota. A notícia em si não tem grande importância, não fosse pelo fato de que algo “diferente” aconteceu. Com essa namorada, AL relata que consegue pedir “ajuda”. Explicando melhor. Uma coisa que sugeri com certa insistência a AL é que fosse ao cinema. Por que? Ora, assistir a um filme implica integrar percepções diferentes: acompanhar a trama por meio das imagens, da trilha sonora e da leitura das legendas e atribuir sentido a isso tudo levando em conta o enredo. Esses elementos sobrepostos precisam ser integrados e interpretados por meio de certos sistemas de referência; tarefa não trivial para ele. AL não é, certamente, um “cinéfilo”, tampouco tem interesse por certos temas que possam exigir certos conhecimentos que ele não tem interesse, sem mencionar sua queixa principal, a dificuldade para ler. Mesmo assim, insisti para que usasse um aparelho de vídeo cassete em sua casa para poder retornar a fita sempre que fosse necessário. Também sugeri que escolhesse filmes de ação ou comédias, dois gêneros que lhe agradam. Tive pouco sucesso. Os filmes assistidos tinham sabor apenas de tarefa cumprida. Agora, com a namorada, fiquei surpresa quando relatou que fora assistir Paixão de Cristo. Não gostou muito. Não entendeu tudo. Não conseguiu ler muitas passagens. A interpretação do que viu foi possível graças ao que já sabia sobre a história. Mas há um aspecto importante. Pediu à namorada que fosse, ao longo do filme, comentando aquilo que lia, para ajudá-lo. Essa mudança sim é fundamental. Não há porque mostrar para ela aquilo que ele não é. Relata que em situações

similares, tem feito a mesma coisa. Enfim, ela já sabe de seus limites e ele lhe diz como ela pode ajudá-lo a ultrapassar suas dificuldades.

Foram meses extremamente produtivos. Contou à professora do SENAC suas dificuldades relacionadas à escrita, mas se empenhou em escrever em grupo um projeto de final de curso. Suas idéias eram apreciadas pelos demais integrantes da equipe e logo ganharam apoio. Feliz, faz novos planos.

Ao término do curso, o SENAC organizou uma solenidade com a participação de alunos de vários outros cursos. Sua turma deveria se apresentar “a caráter”, como se fosse uma encenação de vários temas de festas e/ou eventos. AL não poderia ter escolhido outro traje: vestiu-se, cuidadosamente, de terno e gravata. Seu corpo ostenta seu desejo: poder, enfim, apresentar-se como um aluno bem-sucedido: muda a representação que tem de si mesmo. Foi “a primeira formatura de minha vida!”, diz ele com entusiasmo. A solenidade serve, então, a uma encenação psíquica. Segue o convite:

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 176-183)