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Projeto para uma Psicologia Científica – 1895

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 75-77)

O estudo da afasia por um lado, e o trabalho clínico com casos de histeria por outro, parecem ter contribuído fortemente para Freud propor uma teoria geral da mente no Projeto, estudo que permaneceu inacabado. Iniciado no ano de 1895, o Projeto é marcado por idas e vindas características de um árduo trabalho intelectual que foi, por fim, abandonado por Freud até ser recuperado, cerca de 50 anos depois juntamente com algumas cartas dirigidas ao seu amigo Fliess68

.

A recusa de um localizacionismo estrito no texto A Afasia e o argumento de que os processos fisiológico e psíquico eram concomitantes dependentes parecem ter sido o ponto de partida de Freud. Assim, dois elementos são essenciais ao modelo: os neurônios69

que constituem as unidades estruturais do aparelho psíquico e a excitação neuronal, uma quantidade de energia em permanente fluxo: os correlatos fisiológico e psíquico, portanto, de um único processo indissociável [Freud, 1891/1973, p. 71]. A energia tem uma certa grandeza – uma quantidade – que é transferida de um neurônio para outro de acordo com certas leis que regulam o funcionamento do sistema nervoso e tem, também, uma certa temporalidade – um período – que é propagado por todo o tecido neuronal por indução conferindo à excitação uma qualidade.

Os neurônios são anatomicamente idênticos entre si e independentes uns dos outros. Articulados por contigüidade formam uma rede de conexões. Cada neurônio é formado por um

67 Um problema recorrente na leitura dos textos freudianos se refere à tradução. Usei tanto a versão de 1999

em espanhol, quanto a tradução feita para o português da Editora Imago, datada de 1990. Daí a razão do estudo ser referenciado ocasionalmente com uma ou outra data. Vale ainda dizer que no caso do Projeto há muitos pontos que carecem de definição e/ou de melhor esclarecimento. Alguns deles são indicados pelo editor inglês da tradução de 1990, James Strachey: a idéia de Q e sua diferença em relação à Qŋ; a diferença entre Q fluente e Q estática, catexizada; a catexia colateral como mecanismo inibitório do eu; a relação entre catexia colateral e um efeito de ligação sobre a Q; as catexias de atenção; etc. O que aqui me proponho a apresentar, como leitora novata de Freud, é o resultado de um trabalho interpretativo de uma obra complexa, inacabada e instigante.

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O texto do Projeto reapareceu pelas mãos de Marie Bonaparte, ex-paciente de Freud, princesa da Grécia e Dinamarca, que o havia comprado de um livreiro que, por sua vez, o havia adquirido da viúva de Fliess, juntamente com algumas cartas. Freud tentou reaver o texto sem sucesso [Wolheim, 1971].

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No final da década de 1880 e na de 1890 Ramón y Cajal e Waldeyer descrevem os neurônios como células nervosas distintas. De acordo com Sacks [1998/2000], Freud chegou muito perto de fazer, ele mesmo, essa descoberta, mas não chegou a explicitar inteiramente suas idéias à época.

núcleo com uma via de entrada e duas de saída que se ramificam em novas bifurcações e formam a rede. O neurônio tende a se livrar da energia em função da inércia neuronal: a excitação recebida por um neurônio sensitivo, por exemplo, tende a ser totalmente descarregada na extremidade motora. Essa descarga por meio de mecanismos musculares representa a função primária do aparelho psíquico.

A energia que circula no aparelho tem duas origens: uma externa, que advém da relação do corpo com o meio (denominada de Q), e uma interna, proveniente dos estímulos do próprio corpo (denominada de Qŋ) responsável pelas necessidades do organismo: fome, respiração, sexualidade, etc. Diz-se, então, que um neurônio está investido ou catexizado quando está repleto de Qŋ [Freud, 1895/1999, p. 342]70

. De acordo com a inércia neuronal é de se esperar que o aparelho reduza a quantidade de energia a zero, mas como há estimulação endógena de pequena grandeza permanentemente, ocorre um acúmulo mínimo de energia, usado nas ações específicas. A sensação de fome só pode ser satisfatoriamente descarregada se o organismo comer, isto é, se realizar uma ação específica, uma função secundária do aparelho.

Todas as funções do sistema nervoso são decorrentes, portanto, das funções primária e secundária impostas pelas exigências da vida [Freud, 1895/1990, p. 405]. Por isso o organismo precisa, ao mesmo tempo, tolerar um acúmulo mínimo de Q e se proteger de um possível aumento de Q, mantendo-a constante, em conformidade com a Lei da Constância.

Uma ação específica requer que o tecido nervoso seja capaz de registrar as experiências do organismo de tal modo que possa associar uma certa estimulação a um certo modo de descarga, de forma que ela seja adequada às necessidades do organismo e às condições do meio circundante. O aparelho, portanto, tem que prover algum tipo de memória. No texto da Afasia Freud afirma que um determinado evento psíquico pode ser recordado porque, fisiologicamente, deixa atrás de si uma modificação - um rastro, um traço, uma imagem – fenômeno explicado no Projeto com base em uma distinção funcional entre os neurônios.

Para dar conta desse complexo aparato que precisa constantemente fazer um balanço entre reservar energia e descarregar energia, Freud descreve três sistemas de neurônios com funções diferentes: o sistema φ, responsável pela recepção e transferência de estímulos exógenos e pela propagação no tempo desses mesmos estímulos; o sistema Ψ, responsável pelo recebimento de

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A edição em espanhol refere-se a Q como uma quantidade (de energia ou de estímulo) cuja grandeza é da mesma ordem da quantidade do mundo externo, enquanto Qŋ tem grandeza de ordem intercelular. Para facilitar a descrição do modelo do Projeto usarei a notação Q sempre que possível.

estimulação endógena, exógena e pela memória; o sistema ω - a consciência - responsável pelas qualidades sensoriais e pelas sensações de prazer/desprazer.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 75-77)