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As origens do letramento

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 162-169)

Resposta de PH à pergunta da lição de História: "qual a diferença entre aprender na escola e em casa?" [Coudry e Freire, 2005]

O termo "letramento" foi usado pela primeira vez por Kato em 1986, em seu livro “No mundo da escrita”, mas só ganhou conotação técnica em 1988, quando Tfouni, em seu livro “Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso” o distinguiu de alfabetização. Em 1995, com a publicação do livro de Kleiman, intitulado “Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática da escrita” torna-se, então, visível o avanço de tais estudos e suas motivações. Segundo essa autora os estudos sobre o letramento têm como mote a promoção da "transformação de uma realidade tão preocupante como o é a crescente marginalização de grupos sociais que não conhecem a escrita" [Kleiman, 1995, p. 15]. Além disso, a crescente centralização das sociedades na escrita começa a mostrar que saber ler e escrever, ou seja, ser alfabetizado, é insuficiente para que o cidadão se engaje em práticas sociais mediadas pela escrita [Soares, 1998, p.45]157.

O conceito de letramento passou a vigorar como uma maneira de separar os estudos sobre o "impacto social da escrita" [Kleiman, 1991/92] daqueles que versam sobre a "alfabetização". Esses últimos tratam de competências individuais no uso e na prática da escrita produzindo, muitas vezes, equívocos sobre as relações entre sujeito e escrita. As investigações a respeito do letramento tomam outra via - com base em dois amplos modelos teórico-metodológicos que serão abordados mais além - buscando analisar mudanças políticas, sociais, econômicas e cognitivas que têm a ver com o uso extensivo da escrita nas sociedades [Kleiman, 1995, p. 16]. Procura-se, então, descrever os modos de inserção e funcionamento de materiais escritos diversos no campo sociocultural e político e sua heterogeneidade constitutiva. Além das condições de produção e os modos de circulação desses materiais, interessam as práticas socioculturais que com eles acontecem, conferindo-lhes significação [Signorini, 2001]. Ganham, assim, relevância "formas invisíveis ou ocultas de letramento" [Signorini, op. cit., p. 9] praticadas por grupos minoritários ou pouco valorizadas pelas estruturas de poder (e saber) que definem e sustentam as práticas letradas

157 Fenômeno similar ocorre mais recentemente em relação às tecnologias de informação e comunicação,

numa dada sociedade158. Exemplo disso é o trabalho de Amadou Hampâté Bâ, etnólogo, filósofo e historiador malinês, que reivindica o reconhecimento da oralidade africana como fonte legítima de conhecimento histórico e, portanto, de prática cultural relacionada ao letramento do povo fula, uma nação de pastores nômades que conduz seus rebanhos pela África savânica: “na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. Seu trabalho, como ele mesmo diz, mostra a força “da oralidade deitada em papel”159.

A diversidade desses estudos, muitas vezes pautados em linhas de investigação diferentes, aponta para uma crescente complexidade conceitual do termo, deixando-se entrever diferenças teorico-metodológicas importantes. Um dos primeiros conceitos de letramento, segundo Kleiman [1995], foi proposto por Scribner e Cole nos anos 80. Definido "como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos", esse conceito de letramento vincula-se, fortemente, à aquisição do sistema alfabético [Kleiman, 1995, p. 19]. Embora essa noção seja restritiva para os propósitos do presente estudo, já aponta para um dos equívocos da escola: o fato de lidar com a escrita de forma descontextualizada, sem remetê-la a práticas sociais significativas para as crianças que se encontram na fase de aquisição do sistema alfabético160, e que resultam, muitas vezes, no

surgimento de "pseudodisléxicos" como menciona Castro Pinto [1994].

Os estudos sobre o letramento quase sempre se afiliam a duas vertentes diferentes. Há aqueles que pressupõem uma única maneira de se desenvolver o letramento, estando ele associado a uma relação causal com o progresso, a civilização, a mobilidade social. Essa concepção de letramento, denominada por Street em 1984 de "modelo autônomo" [Kleiman, 1995, p. 21] é ainda dominante em nossa sociedade, influenciando, por assim dizer, aquilo que chamamos de "senso comum". A esse modelo contrapõe-se outro, o "ideológico", que argumenta a favor da determinação social e cultural das práticas de letramento - sempre plurais - cujos significados são múltiplos, a depender do grupo social, do contexto e das instituições que fazem uso da escrita [Kleiman, 1995]. Vejam-se, brevemente, os principais pontos defendidos pelos dois modelos.

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De acordo com Signorini [ 2001, p. 9] esta foi uma das importante contribuições dadas à compreensão de letramento pelos estudos etnográficos nos anos 90.

159 Folha de S. Paulo, Ilustrada, E3, 16 de setembro de 2003, reportagem sobre o livro do filósofo intitulado

Casa das Áfricas (Palas Athenas), escrita por Paulo Daniel Farah.

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Esta parece ser a idéia que sustenta, por exemplo, a alfabetização estritamente pautada no método fônico como advoga o Prof. Dr. Capovilla em entrevista ao Caderno Sinapse da Folha de São Paulo, nº 17, p. 30-32, de 25/11/2003.

"Autonomia" refere-se ao fato de a escrita ser considerada, no escopo do modelo autônomo, como um produto completo, que independe de seu contexto de produção para ser interpretada. A escola, quase sempre toma esse modelo, e considera "a aquisição da escrita como um processo neutro, que, independentemente de considerações contextuais e sociais, deve promover aquelas atividades necessárias para desenvolver, no aluno, em última instância, como objetivo final do processo, a capacidade de interpretar e escrever textos abstratos (...)" [Kleiman, 1995, p. 44]. O depoimento de PH sobre aprender na escola e fora dela é sugestivo e, ao que parece, essa visão higienizada de aprendizagem não se restringe à alfabetização. O processo interpretativo da aquisição da escrita é determinado pelo "funcionamento lógico interno ao texto escrito" que é distinto do da oralidade. Fica assim, bastante clara a dicotomia entre oral/escrito, sendo a escrita uma "ordem diferente de comunicação" [Kleiman, 1995, p. 22].

Kleiman [1995], citando Olson e Hildyard [1983], mostra que a dicotomia entre oral/escrito se assenta, principalmente, na idéia de que os enunciados orais - tomando o diálogo como referência - são pouco planejados, usados informalmente e expressam conteúdos informais, ao passo que, os escritos - considerando o texto expositivo e/ou argumentativo como padrão - ao contrário, são planejados, usados de forma seletiva e expressam conteúdos formais de conhecimento [Kleiman, op. cit. p. 28]. Tal caracterização é difícil de ser sustentada se se tomam as noções bakthinianas de dialogismo e polifonia: independente de seu modo de representação, a linguagem é, por natureza, heterogênea e faz ecoar outras vozes no enunciado do locutor [Bakhtin, 1959-61/97]. Mais ainda. Basta observar gêneros de discurso diferentes que preferencialmente usam um ou outro modo de enunciação para desconstruir essa visão: o que se dirá, por exemplo, das mensagens eletrônicas que fazem uso da escrita e se aproximam de modos de enunciação oral, ou das apresentações orais em contextos acadêmicos que se aproximam da enunciação escrita? Observem-se os escritos a seguir [Figura 4]:

Figura 4: à esquerda exemplo de uma mensagem eletrônica e, à direita, excerto do texto lido por ocasião do lançamento de um livro.

A mensagem eletrônica apresenta recursos - creditados à escrita digital - como escrever as palavras "risos" e "gargalhadas" entre asteriscos para enfatizar o que é dito161 e que, nesse caso, também reforçam o caráter face-a-face da interação e atestam o “hibridismo” de formas faladas e escritas de maneira mais acentuada [Marcuschi, 2004, p. 19]. Diferentemente, o texto de apresentação do livro “Cidadania, surdez e linguagem”, lido pela Profª Coudry por ocasião de seu lançamento pode ser considerado uma enunciação escrita. Não há como sustentar que o modo de enunciação (oral/escrito) seja critério suficiente para distinguir textos orais de escritos, tampouco que existam marcas específicas de um e outro que os caracterizem com exclusividade. Arrisco dizer, ao contrário, que os dados permitem entrever o "trânsito" entre os dois tipos de representação [Corrêa, 1997/2004] de forma mais acentuada, a depender do gênero [Bakhtin,

161 No endereço http://www.icmc.usp.br/manuals/BigDummy/netiqueta.html - consultado em 23 de novembro

de 2005 – se pode encontrar um conjunto de regras para contextos de comunicação mediada por computadores (CMC). Entre elas, encontra-se a seguinte: "além da caixa alta, você pode utilizar caracteres como o asterisco (*) e o sublinhado (_) para dar ênfase a determinadas palavras (...)".

“Estamos aqui hoje reunidos para celebrar a publicação do livro Cidadania, surdez e linguagem, que reúne uma série de abordagens teórico-metodológicas em torno da surdez; uma experiência única registrada por escrito.

É sobre o registro por escrito e sobre a função perceptual do aparelho mental – motivada por reflexões bastante atuais que me levaram a estudar Freud – que concentro o tema de minha fala (...)” [Coudry, 2003].

Ops..errei o envio..agora esta tudo certo *risos*

Finalmente consegui ter acesso ao tao falado episodio que estao comentando nos corredores da Pos Graduacao. *risos*

Eu particularmente estou comecando a decorar esse texto para ler para a banca *gargalhadas*

1952-53/97, p. 304] e/ou de seu suporte [Chartier, 1999]: um, para ser dito e, o outro, para ser lido.

O modelo ideológico assume uma posição mais próxima desse argumento, considerando as duas formas de representação da língua não pela via da diferença, mas da semelhança. Pensa, assim, a aquisição da escrita:

"(...) como um processo que dá continuidade ao desenvolvimento lingüístico da criança, substituindo o processo de ruptura que subjaz e determina a práxis escolar" [Kleiman, 1995, p. 30].

Ainda no escopo do modelo autônomo de letramento muito se fala sobre a relação aquisição da escrita e o desenvolvimento cognitivo, com grande ênfase nas estratégias de resolução de problemas empregadas por grupos de sujeitos letrados em contraste com grupos não-letrados: o pensamento abstrato162 é diretamente relacionado à escrita. O trabalho de Luria [1988] com camponeses das regiões de Uzbekistan e Kirghizia na União Soviética - que viviam sob um regime quase feudal - e com grupos de alfabetizados - que se engajaram na Revolução e que sofreram transformações sociais, econômicas e culturais profundas - mostrou, segundo o autor, diferenças importantes relacionadas ao pensamento categorial. Sem tirar o mérito dos achados de Luria - extremamente importantes para a consolidação de uma psicologia de cunho socio-histórico - as pesquisas pautadas no modelo ideológico hoje questionam tais resultados. Argumenta-se, por exemplo, que as "habilidades cognitivas" são dependentes das práticas sociais das quais participam esses sujeitos quando usam a escrita e, portanto, decorrem da escolarização e não como desejam os seguidores do modelo autônomo, de um "bem universal" inerente à escrita. As pessoas alfabetizadas saem-se melhor do que as não alfabetizadas porque são capazes - devido ao contínuo exercício que a escola lhes submete - de explicitar os princípios embutidos na solução de uma dada tarefa, diferentemente do que pode significar uma "atitude mais ou menos abstrata". Portanto, ser capaz de verbalizar os processos envolvidos numa dada situação-problema tem a ver com uma determinada prática discursiva que ocorre privilegiadamente na escola "que valoriza não somente o

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Várias minorias lingüísticas sofrem esse tipo de discriminação: sujeitos de classes sociais desfavorecidas, surdos, povos indígenas etc. É importante dizer que vários estudos neurolingüísticos realizados no LABONE têm mostrado, como já foi dito, o movimento - muitas vezes produtivo - entre linguagem (oral e escrita), percepção e corpo, sem que a recorrência à percepção e/ou ao corpo implique uma atitude "mais concreta" do sujeito, ao contrário, veja-se o que fez SL (capítulo 3).

saber fazer, mas o saber dizer" [Kleiman, 1995, p. 27]. Tem-se aí, uma vez mais, um ponto importante a ser marcado em relação à AL: mais do que privá-lo de participar de certos "eventos de letramento", o diagnóstico de dislexia, excluiu-o da escola e, portanto, da oportunidade de nela elaborar uma série de conhecimentos sistematizados de nossa sociedade. Talvez o mais negativo desse tipo de correlação simplista seja tomar o alfabetizado como norma e, conseqüentemente, operar com duas espécies cognitivas diferentes: aqueles que sabem ler e escrever e os que não sabem.

Além de o pensamento abstrato ser visto como uma qualidade intrínseca à escrita há outros ganhos decorrentes da alfabetização, segundo a visão autônoma, entre eles, aqueles que se referem ao estilo de linguagem. Kleiman [1995] cita o trabalho de Ong de 1981, para quem há diferença entre a linguagem das culturas orais e a das manifestações escritas. Segundo o autor, a gramática da cultura escrita é mais elaborada e fixa, porque faz uso de subordinações ao invés do estilo aditivo, característico da oralidade; a cultura escrita usa expressões analíticas ao invés de construções agregativas, também típicas da oralidade; há continuidade analítica e linear do pensamento na atividade de linguagem via escrita e não um raciocínio redundante e repetitivo, como ocorre na oralidade. Decorrem dessa diferenciação implicações preconceituosas a respeito da natureza do pensamento oral163, considerado predominantemente situacional e operacional, reforçando assim, o que foi denominado por Graff em 1979 de "mito do letramento" [Kleiman, 1995, p. 34]. Essa visão parcial do fenômeno pressupõe, em última análise, a existência do que se pode denominar de um escrevente padrão.

O modelo ideológico, do qual já assinalei algumas características importantes até aqui, apresenta-se como uma alternativa ao estudo da complexidade constitutiva do letramento, tomando-o não somente como produto da cultura, mas também das estruturas de poder de uma sociedade. Sem negar os resultados das investigações oriundas do modelo autônomo, esses estudos assumem outra direção. Por exemplo, a relação entre desenvolvimento cognitivo e desenvolvimento da escrita é vista tendo como pano de fundo das estruturas culturais e de poder, presentes na escola, sem adotar uma relação simplista de causa e efeito [Kleiman, 1995, p. 39].

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O pensamento oral, nessa visão, seria conservador uma vez que o conhecimento adquirido deve ser mantido na memória; suas formas de conceituação e de verbalização são muito próximas da vida cotidiana porque fazem uso de critérios relacionados a contextos de experiência e da ação; tende a ser agonístico em função da relação face-a-face e de um imbricamento entre narrador, personagens e audiência, já que a interação interpessoal não favorece o distanciamento [Kleiman, 1995].

Particularmente, a grande mudança que o modelo ideológico instaura é a compreensão de que as práticas de letramento mudam em função do contexto. Dito de outra forma, diferentes práticas de letramento são integradas ao cotidiano, diferentemente pelos vários grupos socio- econômicos que compõem uma dada sociedade. Assume, então, uma “perspectiva relativista” [Signorini, 2001, p. 10], intrinsecamente relacionada a padrões sócio-culturais determinados, isto é, às práticas sociais que integram direta e indiretamente a produção e leitura de materiais escritos, que têm conceitos, normas, valores e funções sócio-culturais a eles subjacentes e que balizam o que se considera “letrado” em dada situação. Isso não quer dizer que a aquisição e as práticas de leitura são idênticas para todas as pessoas, mesmo quando colocadas em ação por meio de uma educação formal massificada. Sempre há desigualdade de acesso aos recursos de letramento em função de mecanismos socio-políticos e ideológicos de controle de recursos materiais e simbólicos [Signorini, 2001, p. 10]. Esse controle, como mostra o presente estudo, pode ser exercido também por meio de certos diagnósticos clínicos que acabam por produzir um confisco do sujeito, tirando- lhe a oportunidade de se relacionar de maneira significativa com certas práticas sociais: AL deixou de ir ao cinema, ler os jornais e revistas e participar de situações discursivas cujo tema verse sobre conteúdos que ele não tem acesso ou não sente ser capaz de lidar.

Esse tipo de poder ou, de "vontade de verdade" para usar uma expressão de Foucault [1970/00], explica a razão pela qual o modelo autônomo continua a orientar as ações de alfabetização na maior parte de nossas escolas e representa oportunidades diferentes para grupos distintos: as crianças que pertencem a grupos altamente escolarizados têm oportunidade de dar continuidade a um processo de desenvolvimento lingüístico já iniciado em casa; ao contrário do que ocorre com as crianças provenientes de famílias pouco letradas, que serão obrigadas a romper com suas práticas cotidianas. Continuidade para alguns; ruptura para outros164, assim é a vida.

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Segundo Kleiman [1995] essa foi a conclusão do estudo etnográfico empreendido por Heath em 1982, nas pequenas comunidades no sul dos Estados Unidos. O autor considerou eventos de letramento nos quais a escrita é essencial para a atribuição de sentido, tanto em relação aos interlocutores, quanto em relação aos processos e estratégias interpretativas. Ele observou que as famílias menos letradas não recontextualizam as práticas de letramento vivenciadas com as crianças, não existindo a verbalização e retomadas do tema, como ocorre nas famílias mais letradas; as famílias menos letradas tendem a mostrar o modelo de como agir em situações cotidianas, diferentemente das famílias letradas, que verbalizam procedimentos ao realizar tais atividades; as famílias menos letradas não valorizam as histórias inventadas pelas crianças, ao contrário das outras famílias, que aproveitam essas oportunidades para veicular algum tipo de "moral" [Kleiman, 1995 p. 39- 44].

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