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O evento discursivo dos dados

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 183-188)

Em se tratando de um acompanhamento clínico de caráter longitudinal há um conjunto de dados considerável, impossível de ser detalhadamente analisado. Para os propósitos desse estudo, portanto, faz-se necessário justificar a metodologia que orienta a seleção dos dados a serem analisados. Essa seleção pressupõe, antes de tudo, uma mudança de papel: de clínico a investigador. Meu lugar se desloca do acontecimento discursivo (do então presente) para o evento discursivo (o passado e o que dele restou). O acompanhamento longitudinal se condensa em séries de eventos marcadas por momentos que me parecem cruciais para o entendimento do movimento de AL ao longo de nossa convivência.

Estudos clínicos que partem de uma concepção discursiva da linguagem - que estabelece uma relação constitutiva entre sujeito e linguagem - procuram desvendar, exatamente, o modo particular como se estabelece tal relação, seja por meio da enunciação oral, escrita ou, ainda, por outros meios (alternativos) de significação. “Particular” em dois sentidos. Primeiro, porque esse relacionamento apresenta certas características que derivam da história de cada um de nós; segundo, porque se constrói em meio a situações de interlocução reais e específicas. Em outras palavras, ao selecionar os dados que compõem o presente estudo, pretendo mostrar e discutir o conjunto de fatos que, em torno de AL, determina, interfere, auxilia, oculta, desvenda, a sua relação com a linguagem. Fatos que são, sempre, circunstanciados pelo papel que ele assume nas interlocuções das quais participa, dos propósitos que persegue e, acima de tudo, daquilo que hoje ele é, em decorrência de suas vivências prazerosas ou não. Faz diferença, do ponto de vista metodológico, a imbricada relação entre esses fatores e que pode estar, mais ou menos, influenciando a emergência de certos fenômenos lingüísticos e psíquicos, especialmente, aqueles referentes à memória e à enunciação escrita, temas de interesse no acompanhamento clínico de AL173.

Assumindo esse “posto de observação” [Geraldi, 1991/93], considero produtivo para os meus propósitos, a formulação de “dado-achado” – aquele que resulta da articulação de teorias sobre o

173 Esta é uma das razões teorico-metodológicas que justifica o desenvolvimento do Banco de Dados em

Neurolingüística (BDN) no interior do Projeto Integrado Banco de Dados e Avaliação, coordenado pela Profª Coudry (CNPq: 521773/95-4), que será detalhado na análise do dado intitulado “Conversa só de letras”.

objeto investigado e a prática clínica [Coudry, 1996a] e o “paradigma indiciário” - que define princípios metodológicos que visam oferecer rigor às investigações centradas no detalhe e nas manifestações de singularidade [Abaurre et alii, 1997]. Essas vertentes, a meu ver, contribuem para dar relevo ao que procuro compreender no caso clínico de AL: os múltiplos papéis da enunciação escrita que contribuem para minimizar os efeitos indesejáveis do episódio neurológico, do diagnóstico de dislexia, dos lapsos de memória, das fabulações. É com essa preocupação que me dedico aos dados.

Interesso-me, nesse sentido, pelo “tema” e não pela “significação”, nos moldes bakhtinianos. Segundo Bakhtin [1929/99] tema e significação estão interrelacionados, mas representam níveis distintos de sentido. O tema de uma enunciação tem "um sentido único e definido (...), é individual e não reiterável"; é definido pelas formas lingüísticas que o constituem e pelos elementos não verbais da situação que entram em sua composição. A significação, por sua vez, se refere aos elementos da enunciação que são "reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos", são firmados pelas convenções sociais e, portanto, abstratos [Bakhtin, op. cit., p.128-129]174. No estudo clínico, sem abandonar a importância da significação sem a qual o “tema” mesmo seria impossível, interessa compreender o trabalho que o sujeito faz para transformar “o dado em criado” [Bakhtin, 1959-61/97, p. 348]. Nesse processo criativo com a linguagem – que todos nós exercemos – se pode deparar, muitas vezes, com o inesperado, o inusitado, o surpreendente [Franchi, 1977/92].

Dito dessa forma se pode imaginar que procuro aquilo que pode ser considerado “extravagante”. Procuro - tendo como pano de fundo a práxis clínica e a história do sujeito – aqueles dados que, pelo caráter esquisito, estranho ou excêntrico, podem indicar vias explicativas teóricas fecundas para a sua prática com e sobre a linguagem. Ao mesmo tempo, procuro a reiteração desses mesmos atributos, revelada em outras situações dialógicas. Essa repetição, aparentemente paradoxal, contribui para abrandar a natureza surpreendente desses mesmos dados no âmbito da história clínica do sujeito.

Busco, assim, fenômenos que me parecem díspares, num primeiro momento. Dispendo grande esforço teórico para compreender seu funcionamento. Em seguida, quase sempre, me deparo com outros dados, menos impactantes, que sugerem que aquilo que era tratado como invulgar deixa outras marcas menos visíveis. Há, portanto, regularidades que se pode entrever

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Pode-se dizer que o tema refere-se à sua significação contextual, nas condições de uma enunciação completa, enquanto a significação, refere-se à palavra dicionarizada em relação ao sistema de uma dada língua.

entre uma história particular e outras histórias; há regularidades constituídas de irregularidades em uma única história.

Achados desse tipo, pois, oferecem indícios importantes a respeito da relação sujeito e linguagem, sendo representativos de um processo geral que se constitui continuamente e é marcado por diversas modificações ao longo de sua trajetória. Um achado ou indício quase sempre é produto de um fator motivador (ou um conjunto deles) que assume saliência [Abaurre, 1996] para o sujeito no seu trabalho com e sobre a linguagem.

O dado-achado, definido por Coudry [1996a], resulta da articulação de teorias sobre o objeto estudado e a clínica, decorrente de situações dialógicas presenciais ou não, atuais ou não (on-line e off-line). As produções on-line são aquelas que têm o acompanhamento e/ou intervenção do pesquisador bem como comentários do próprio autor. As off-line derivam de contextos nos quais o pesquisador não está presente. Tal diversidade de material lingüístico pode ser extremamente rica em termos de análise e levantamento de questões teóricas175. Esse tipo de dado é sempre "revelador e encobridor" de fenômenos lingüísticos e sua análise proporciona o “movimento teórico”, permitindo a resolução de alguns problemas e a colocação de outros [Coudry, op. cit.].

Há, portanto, por trás da formulação de dado-achado um forte compromisso entre dado e teoria. O referencial teórico orienta e levanta questões relevantes, produzindo hipóteses com as quais o investigador trabalha. Hipóteses que permanecem “sob suspeita” [Abaurre, 1996] e podem mudar em função daquilo que se observa na prática clínica: “a teoria está muito bem, mas isso não impede que os fatos existam”, dizia Charcot a Freud.

O paradigma indiciário, por sua vez, constitui um modelo epistemológico pautado no singular, no episódico, no detalhe, que guarda relação com aquilo que o investigador se propõe a compreender do ponto de vista teórico. Não é qualquer dado que é sinal de qualquer fenômeno. Explicitado pelo historiador Carlo Ginzburg [1986] no escopo das Ciências Humanas esse modelo baseado no singular apareceu no final do século XIX, sem que houvesse uma preocupação com a definição de um “paradigma coerente com esses pressupostos”. Ginzburg, então, se propõe a discutir esse paradigma, denominado então de “indiciário”, assumindo como pressuposto que, “dado que a realidade é opaca” [Ginzburg, op. cit.], deve-se contar com dados incomuns – sinais, indícios – para decifrá-la e para descobrir certas regularidades subjacentes aos fenômenos superficiais [Abaurre e Coudry, 2005].

Ginzburg relata o trabalho de Morelli, um médico italiano que usava o pseudônimo russo de

Ivan Lermolieff, que contestou, em meados de 1874, a autenticidade de pinturas italianas com base em “pormenores mais negligenciáveis”. De forma semelhante agia Sherlock Holmes, o célebre detetive criado por Arthur Conan Doyle, com base em “indícios imperceptíveis para a maioria” [Ginzburg, 1986, p. 145]. Também Freud, segundo o autor, se interessou pelo modelo de Morelli.

Em 1914 Freud escreveu um ensaio intitulado O Moisés de Michelângelo, no qual se refere ao trabalho de Morelli, aproximando-o da psicanálise:

“parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados ou inobservados, do monte de lixo, por assim dizer, de nossas observações” [Freud, 1914].

Ele próprio, nesse ensaio, usa o método de Morelli para interpretar a obra de Michelângelo. O interessante é observar como Freud seleciona os pormenores que importam – com base naquilo que outros estudiosos já tinham observado e naquilo que não tinham observado – e os integra para elaborar uma argumentação possível e coerente, como dois fios que compõem um apertado nó.

A partir dos três casos - signos pictóricos (Morelli), indícios (Doyle) e sintomas (Freud) - Ginzburg descreve um modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas diferentes, denominado de “paradigma indiciário”.

Assim concebido, o paradigma indiciário define algumas questões metodológicas importantes. Em primeiro lugar, em relação aos critérios de identificação e seleção dos dados. Um dado é singular à medida que pode ser tomado como “representativo” de algo que é, teoricamente “revelador”, já que nem tudo que é incomum é, necessariamente, singular no sentido aqui adotado. Em segundo, em relação ao que se toma como “rigor metodológico” que, naturalmente, não pode, em estudos clínicos como o que aqui se apresenta, se focar em procedimentos experimentais, replicação de experimentos e quantificação de resultados [Abaurre e Coudry, 2005]. Trata-se de um “rigor flexível” (tal como o denomina Ginzburg) em que contam outros fatores, como a intuição do investigador para observar o singular, como um “caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa” [Ginzburg, 1986, p. 154], e a sua habilidade para formular hipóteses teóricas explicativas a respeito do flagrado.

“ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a por em prática, regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz- se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” [Ginzburg, 1986, p. 179].

É o que tento exercitar.

Tanto o achado quanto o indício requerem um constante exercício de formulação e reformulação de hipóteses. O que é preciso assinalar é que por trás da qualidade de “singular” há um trabalho do sujeito com e sobre a linguagem, decorrente da “operações discursivas” [Geraldi, 1991/93] de diferentes tipos, em função da situação real de interlocução da qual toma parte. Esse é o foco: compreender o trabalho do sujeito e os motivos que o levam a fazer um ou outro percurso, mudar de trajetória, retomar caminhos já trilhados, num processo em funcionamento. Episódios, portanto, que implicam uma (re)elaboração psíquica [Abaurre e Coudry, 2005] que se dá a conhecer em virtude daquilo que o sujeito – na sua relação com a linguagem - deixa sobressair. Persegue-se, enfim, aquilo que o sujeito faz e como faz e não o que deixa de fazer [Abaurre e Coudry, op. cit.].

No capítulo 1 ao apresentar AL usei a imagem de “mosaico” para chamar a atenção para as diversas peças que compõem sua história. Chegou o momento de destacar algumas delas – por meio de achados e indícios - para compreender esse sujeito da linguagem, por meio da dialogia, valendo-me das contribuições de Freud, Jakobson e Luria.

Serão analisados dados relacionados à escrita de AL, com diferentes propósitos. Começo apresentando uma interação via ICQ, uma ferramenta de sua geração que ele nunca usou e que inaugura condições de produção do discurso, no mínimo, diferentes para ele. O movimento entre a enunciação oral e a enunciação escrita em contextos de conversas on-line é um atributo importante em seu caso. As seleções e ordenações quase simultâneas, necessárias para a produção de sentido demandam um exercício neurolingüístico complexo, como será visto. Em seguida, serão apresentadas várias reescritas de um convite de festa junina. O tema festa (de qualquer tipo), caro a AL, permite ver que escrever é muito mais do que codificar e que a escrita é também balizada por aspectos vísuo-espaciais que compõem certos gêneros de discurso. Finalmente, apresento uma anotação de AL na Agenda que mostra a “memória do corpo” e em seguida duas versões escritas de um assalto protagonizado por ele. A primeira versão é considerada por ele “verdadeira” e, a outra, “falsa”. As duas mostram o movimento de AL em direção à lembrança e, portanto, à reconstrução de sua memória autobiográfica e subjetividade. Em conjunto, os dados-achados

tratam de questões relacionadas à escrita, memória e fabulação, que representam o “núcleo duro” do caso clínico de AL.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 183-188)