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receber, elaborar, conservar

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 127-132)

O segundo Bloco está intimamente relacionado aos órgãos dos sentidos, já que sua função é a de receber, processar e conservar as informações recebidas pelo organismo, vindas do mundo externo. Formado pelas áreas posteriores do córtex cerebral, mais especificamente, as regiões parietal, temporal e occipital, o Bloco II possui um caráter modal-específico, isto é, neurônios altamente especializados que processam e conservam na memória os vestígios das informações recebidas de forma diferenciada: informações visuais são processadas na região occipital, as auditivas na região temporal e as táteis-cinestésicas, na região parietal. São, pois, células aferentes ou responsáveis pelo recebimento de informações. Em cada uma dessas regiões, distintamente, encontram-se tecidos procedentes de cada um dos aparelhos receptores. Também existem porções mais complexas - de estrutura hexassegmentar - que fazem a síntese das informações recebidas, como é o caso da seção IV do córtex. Nela chegam fibras que se originam nos aparelhos sensitivos periféricos e que se transferem para outros neurônios. Algumas fibras se dirigem para a seção V onde se encontram células motoras (de estrutura piramidal) e, dela, seguem para a periferia:

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Seção IV aferente

Fibras que chegam dos órgãos sensoriais outros neurônios Seção V células motoras (piramidais) zona primária ou de projeção periferia

arco dos reflexos sensoriais mais simples Seções II e III Células associativas (piramidais e asteróides) zona secundária ou de associação

fecha-se, assim, o arco dos reflexos sensoriais mais simples. São as chamadas zonas primárias ou de projeção. Outras fibras que chegam à seção IV se encaminham para neurônios de ação curta (de estrutura piramidal ou asteróide) que enviam as excitações para células associativas mais complexas que se encontram nas seções II e III do córtex e constituem as chamadas zonas secundárias ou de associação, que se localizam nas adjacências das zonas primárias [Quadro 11].

Quadro 11: visão geral da organização do Bloco II

A grande diferença entre as duas zonas cerebrais, as primárias (de projeção) e as secundárias (de associação), está no "grau de especialização" dos neurônios de cada uma delas e,

Seção I

ligações horizontais transcorticais que asseguram a conexão de áreas

corticais contíguas

Seção VI

projeções de células vegetativas que asseguram a conexão do córtex com

portanto, na função que elas desempenham. Nas zonas de projeção existem neurônios altamente especializados alocados em áreas específicas (temporal, parietal e occipital) que recebem informações dos órgãos sensoriais e, nas zonas de associação, espalhadas nas adjacências das zonas primárias, existem neurônios menos especializados, multimodais, que recebem informações das zonas primárias, codificando-as em estruturas dinâmicas móveis, garantindo, assim, o funcionamento conjunto de grandes porções do córtex cerebral. Tome-se, por um momento, o efeito de um estímulo visual: "as zonas primárias do córtex da sensibilidade têm as funções de distinguir esses e aqueles indícios específico-modais (visuais, auditivos, táteis), noutros termos, exercem a função de fracionar (analisar) em partes componentes a informação recebida, ao passo que as zonas visuais (secundárias) dessas mesmas áreas corticais implicam a função de unificar (sintetizar) ou proceder a uma elaboração complexa da informação que chega ao sujeito" [Luria, 1991a, p. 103, parênteses em itálico da autora].

As zonas primárias têm, portanto, uma "estrutura somatotópica" [Luria, op. cit., p. 104] isto é, as fibras nervosas que nela chegam das regiões receptoras estão dispostas em rigorosa ordem: cada ponto da superfície receptora representa um ponto determinado da zona primária e sua extensão é proporcional a importância que tal região do corpo têm. Assim, a área ocupada, por exemplo, pela boca e língua é bem maior do que aquela ocupada pela perna ou quadril. A consideração de tal estrutura é particularmente importante para o diagnóstico clínico: a diminuição, superexcitação ou ausência de sensibilidade em determinadas regiões do corpo pode indicar problemas relacionados às zonas receptoras primárias. Contrariamente, problemas nas zonas secundárias ocasionam um desarranjo geral na análise das informações que nelas chegam, produzindo aquilo que a literatura denomina de "agnosia" [Luria, op. cit., p. 106], que pode então ser, de natureza tátil-cinestésica, visual ou auditiva.

As demais conexões do sistema nervoso central ficam por conta das seções I e VI - ainda não mencionadas - bem como da substância branca, subjacente ao córtex cerebral. As seções I e VI garantem, respectivamente, a conexão entre as diferentes áreas corticais e, também, a conexão dessas mesmas áreas com estruturas mais profundas do cérebro. As longas fibras da substância branca, por sua vez, conectam o córtex com as formações subjacentes - via tecidos de projeção - e ligam áreas isoladas do córtex a outras regiões corticais, via tecidos transcorticais. Os dois hemisférios também estão interligados por um feixe de fibras, o corpo caloso, o que garante um funcionamento harmonioso entre eles, apesar da dominância de um deles: no homem, quase sempre, o esquerdo. Cada hemisfério desempenha com maior propriedade um certo conjunto de

funções psíquicas - por exemplo, a linguagem é especialidade do hemisfério esquerdo - o que não quer dizer que na presença de uma lesão, o outro hemisfério não possa atuar naquela função.

Além das zonas primárias e secundárias, existem ainda as denominadas zonas terciárias que garantem maior complexidade ao funcionamento do Bloco II. As zonas terciárias são específicas da espécie humana e as mais jovens, em termos de desenvolvimento. Localizam-se nos limites da região parietal, occipital e temporal e compreendem os campos 39, 40, 37 das áreas parietais inferiores do córtex [Figura 3121]. Têm uma estrutura análoga a das Seções II e III das zonas

secundárias, com neurônios multimodais, que fazem a "unificação da informação" [Luria, 1991a, p. 106] que nelas chegam de diferentes analisadores do córtex cerebral. Lesões nessas áreas perturbam a "unificação em esquemas simultâneos as irritações sucessivas que chegam ao encéfalo" [Luria, 1991a, p. 107] dificultando as mais complexas atividades humanas, como a linguagem oral, a leitura, a escrita, o cálculo.

Figura 3: visão externa e interna do mapeamento do cérebro proposto por Broadmann em 1909

O episódio neurológico de AL provocou, além do comprometimento bilateral frontal, uma lesão na região parietal alta no hemisfério direito (ou HD) que representa parte da zona terciária da

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região parieto-occipital do hemisfério não dominante. O que se sabe é que as lesões no HD não interferem – eu diria, não diretamente - nos processos gnósicos simbólicos, na compreensão de estruturas lógico-gramaticais complexas, tampouco na organização da atividade da fala, da escrita, do cálculo [Luria, 1981, p. 135, 138]122. Isso significa que o HD – pelo que se conhece a respeito do hemisfério esquerdo (ou HE) – desempenha um papel diferente na organização dos processos psíquicos: sua estrutura modal é menos diferenciada, mais global e polissensorial, dada a sua organização funcional mais difusa.

De acordo com Luria [1981] Jackson foi um dos primeiros autores a afirmar que o HD - embora não relacionado aos processos de linguagem - participa “diretamente de processos perceptivos e é responsável por formas mais diretas – visuais - de relações com o mundo exterior” [Jackson, 1874, apud Luria, 1981, p. 139]. Só nas últimas décadas essa formulação passou a ser investigada. Sabe-se hoje que o HD está diretamente relacionado à análise de informações diretas recebidas pelo sujeito “a partir de seu próprio corpo”, mais vinculado à sensibilidade direta do que às estruturas lógico-verbais. Isso pode acarretar problemas de sensação no próprio corpo, denominados em geral, como dificuldades de esquema corporal [Luria, 1981, p. 139, 140]. Em casos mais graves pode se manifestar por meio de uma apraxia para se vestir e pode ocasionar ainda uma agnosia espacial unilateral: o sujeito ignora o lado esquerdo do próprio corpo e do espaço em geral. Lesões no HD, portanto, podem interferir no corpo do sujeito e na sua orientação espacial: o sujeito pode não saber mais se localizar no espaço, as relações espaciais familiares podem lhe parecer estranhas, chegando - nos casos mais severos - a se manifestar como uma agnosia e apraxia construtivas [Luria, op. cit., p. 141]. Pode também acontecer de o sujeito apresentar dificuldade em reconhecer visualmente os objetos, a chamada paragnosia, ou dificuldade em reconhecer os rostos das pessoas, a prosopagnosia. [Luria, op. cit., p. 141].

Luria considera, no entanto, que mais importante do que as desordens gnósicas decorrentes de lesões no HD são as dificuldades relacionadas à denominada de anosognosia:

“(...) percepção geral, pelo paciente, de seu próprio corpo e de sua própria personalidade; portanto, o sintoma de longe mais importante de uma lesão no hemisfério direito é a notável ausência de percepção, pelo paciente, de seus próprios defeitos” [Luria, op. cit., p. 141].

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De acordo com Luria [1981] há poucos estudos que tratam da atuação do hemisfério direito e menos numerosos ainda aqueles que apresentam casos de lesão similares a de AL.

Nesses casos, se o paciente tem uma paralisia, ele não a percebe; ou se ignora o lado esquerdo do espaço e não reconhece alguns objetos, também não nota que isso lhe acontece. Nesses casos mais graves, Luria afirma que o funcionamento dessas pessoas pode lembrar, em alguns aspectos, o de pacientes com Síndrome Frontal grave [Luria, op. cit., p. 142], diferentemente do quadro de AL.

Por fim, é preciso lembrar que o trabalho coordenado das três zonas do Bloco II garante o recebimento e a análise de toda e qualquer informação exterior provocando a programação de algum tipo de resposta do organismo. Essa é a função do Bloco III.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 127-132)