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A cena clínica

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 172-176)

Retomo a nota que AL escreve

em sua agenda no dia 02 de abril de 2003, depois de quase um ano de nosso primeiro contato: “FUI ATÉ A UNICAMP E ESPLIQUEI ACHO QUE TODOS OS MEUS PROBLEMAS! ACHO QUE TEM SOLUÇÃO”167 revelando sua ansiedade e deixando ver as dúvidas que o atormentam.

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Inspiro-me aqui na noção de “cena enunciativa” desenvolvida por Maingueneau [1987/89] produtivamente incorporada aos estudos de Mármora e Fedosse, ambos de 2000.

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Como foi dito no Capítulo 1, AL foi encaminhado ao LABONE do Instituto de Estudos da Linguagem em fevereiro de 2002, quando então fizemos uma avaliação neurolingüística. Passamos cerca de um ano sem contato. Em abril de 2003, sua mãe voltou ao LABONE: AL estava passando por um período especialmente difícil. Demos início, então, ao acompanhamento fonoaudiológico.

O uso da expressão - “ACHO QUE” - pode ser interpretada como um recurso que relativiza o quantificador universal todos. Mais do que dúvida, seu enunciado delega à Unicamp – e a mim – as ações que devem ser tomadas para solucionar seus problemas. A modalização usada – traduzida por uma escolha lingüística sofisticada – e o ato de fala que incumbe a outrem as soluções que a ele dizem respeito, podem ser consideradas uma “atitude de classe”168.

Esse modo de proceder e essa atitude diante da vida são compatíveis com suas preferências sociais: embora tenha uma origem humilde, AL vive como se pertencesse a uma classe social mais abastada. A última frase de suas notas mostra uma de suas predileções: jogar sinuca. Gosta também de freqüentar barzinhos e boates, viajar para o Guarujá. Mantém uma vida social intensa - típica de sua faixa etária - e da classe social média alta de centros urbanos com a qual convive: pouco engajada social e culturalmente. Quase sempre, rostos bonitos, corpos bem tratados e roupas da moda garantem a manutenção desse círculo social. As relações estabelecidas entre as pessoas em geral são efêmeras e os assuntos triviais. Nada menos proveitoso para AL, que precisa, de alguma forma, “antenar-se”: estabelecer relações entre fatos atuais e passados, projetar planos para o futuro, aprender com as pessoas, engajar-se em situações que o façam pensar, analisar, comentar, criticar, perguntar, responder, concordar, explicar etc. Atitudes que podem fazê-lo enfrentar, de fato, seus problemas.

A volta ao LABONE é um forte indicativo que a sua vida não vai bem: está desequilibrado psiquicamente, o que interfere na convivência familiar e nas relações sociais. O sujeito e a família, quando procuram ajuda profissional, carregam uma série de expectativas. Desejam que as soluções sejam encontradas rapidamente, mesmo quando conhecem a extensão do problema. No caso de AL não é diferente. A anotação na agenda mostra bem isso.

Iniciei o acompanhamento clínico de AL em 09 de abril de 2003. Marcamos encontros semanais. O acompanhamento clínico longitudinal se baseia naquilo que Coudry [1996a] denomina de “metodologia heurística”: investigador e sujeito, juntos, progressivamente, ganham entendimento das dificuldades do sujeito, visando superá-las, de acordo com o quadro clínico. O lócus de manifestação tanto das dificuldades quanto das possibilidades que a língua – e suas relações - oferece ao sujeito é a “dialogia”, tomada como lugar de produção de sentidos em que o verbal e o não verbal se cruzam [Bakhtin, 1952-53/97].

O investigador - orientado pelo que já se sabe a respeito do quadro com base em uma perspectiva discursiva - procura interpretar o que ocorre no “acontecimento discursivo” [Pêcheux,

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1990]. São interpretações que se dão “no curso da ação” e que mudam – mais ou menos - em função da dinâmica do próprio acompanhamento. A forma de intervir – para ver mais - e a forma de interpretar aquilo que se vê tem, portanto, caráter temporário, próprio do processo, o que dá condições para o refinamento teorico-metodológico. O caso de AL é um bom exemplo. A multiplicidade de fatores que co-ocorrem e a qualidade “leve” de todos eles, representam um desafio para a prática clínica. O sujeito, orientado pelo investigador, ganha gradativamente uma percepção mais apurada do seu quadro clínico: começa a entender o que lhe ocorre, por que as dificuldades acontecem e passa a ter melhores condições de lidar com os “maus momentos” que surgem inesperadamente.

O trabalho clínico se pauta em diferentes “práticas discursivas” [Maingueneau, 1987/89], isto é, diferentes situações de uso da linguagem – por meio da enunciação oral, da enunciação escrita e de sistemas não verbais - intimamente relacionadas à práxis humana. Em certo sentido a clínica é um “espaço de encenação de textos”, considerando que um texto “(...) não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada” [Maingueneau, 2001, p. 84].

Fala-se, assim, a respeito daquilo que todos falam, dos discursos que circulam, dos fatos noticiados nos jornais; dos programas de TV; das músicas que fazem sucesso; das recentes descobertas da ciência divulgadas pelos meios de comunicação; sobre cinema, teatro; contam-se piadas, etc. Fala-se, também, da própria vida: trabalho, família, passeios, dificuldades, anseios, expectativas. Diversos tipos de materiais lingüísticos podem ser aproveitados como suporte a essas práticas: livros, revistas, fitas de vídeo, palavras cruzadas, gibis, correio eletrônico, comunicador instantâneo (ICQ), fotos, jornais, agenda. Toma-se a linguagem, então, como

“um catálogo completo de relações inter-humanas, toda uma coleção de papéis que o locutor pode escolher para si e impor ao destinatário” [Ducrot, 1973/81].

Os interlocutores, dinamicamente, em função do texto (da prática discursiva em questão), mudam de papéis discursivos, integrando-os em uma certa encenação em que contam, além das possibilidades oferecidas pela língua, as vivências de ambos e as inscrições corporais e “proxêmicas”169 [Fedosse, 2000]. Estão em cena, pois, linguagem, memória, corpo e percepção.

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A proxêmica propõe-se a analisar as relações espaciais e o modo como os sujeitos utilizam o espaço na produção de sentidos, aspecto particularmente importante no caso de AL, considerando a lesão parietal à direita.

As práticas sociais que se fazem por meio da linguagem desencadeiam “atividades lingüísticas, epilingüísticas e metalingüísticas” [Geraldi, 1991/93]. As primeiras são vistas como um exercício intencional e contextualizado de linguagem que ocorrem, naturalmente, nas interações verbais; as atividades epilingüísticas decorrem de uma necessidade de o sujeito compreender e dominar sua língua e, as metalingüísticas, revelam uma reflexão mais apurada do sujeito que toma a linguagem como um meio para pensar e falar a respeito dela mesma [Geraldi, op. cit.]. As práticas sociais dão condições para que o sujeito exerça um “trabalho” com e sobre a linguagem [Franchi, 1977/92], diferentemente do que faz a Neurolingüística tradicional, que privilegia as atividades metalingüísticas que tomam a linguagem de seu exterior e a descrevem em função de um certo sistema nocional170.

Na visão discursiva o trabalho lingüístico do sujeito é dirigido ao outro "deixando rastros de sua presença, atestando um trabalho lingüístico em andamento, assentado em um quadro de referências ântropo-culturais" [Coudry, 1996c, p. 325]. Saber dizer e se fazer compreender, interpretar o que é dito, expressar o que se conhece e reconhece do mundo, recordar para contar ao outro suas memórias não depende de um conhecimento prévio dos recursos expressivos da língua, mas sim de operações de construção de sentidos dessas expressões na situação dialógica, de um e outro interlocutor.

As situações dialógicas que se dão ao longo do trabalho clínico permitem entrever o papel organizador e regulador da linguagem no processo de (re)construção do que foi alterado pela patologia [Freire, 1999]. Mas isso não ocorre por si só. Investigador e sujeito comentam sobre o que fazem com a linguagem. Há um contínuo trabalho reflexivo de ambas as partes no sentido de compreender porque se faz uma ou outra atividade com a linguagem; porque se diz como se diz; porque se escreve do modo que se escreve, porque se lembra do modo que se lembra. O investigador pontua para o sujeito um certo “dado”, flagrado em uma situação dialógica; explica as razões pelas quais aquilo pode acontece e quais recursos podem ser utilizados para lidar com a dificuldade; da mesma forma, indica as situações em que o sujeito consegue, com sucesso, tomar outro caminho. O sujeito passa a monitorar sua enunciação: um trabalho de revisão do que foi dito e de reformulação do que pode ser dito. O sujeito mantém, então, uma “atitude responsiva”, isto é, toma uma "posição ativa a propósito do que é dito e compreendido" [Bakhtin, 1929/99, p. 99] e do modo como o faz. Esse alcance do trabalho clínico, no entanto, depende da qualidade da relação

170 Geralmente, são utilizados testes padronizados baseados na Gramática Normativa e no Português da

variedade culta, descontextualizados e que usam material lingüístico que desconsidera fatores contextuais, sem os quais, se inviabiliza o exercício discursivo da linguagem.

entre os envolvidos: o sujeito expressa sua subjetividade – que se revela pelas marcas que deixa em seus enunciados - porque lhe é outorgada a possibilidade de assumir o papel discursivo que lhe cabe na interlocução171.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 172-176)