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Em busca de uma visão crítica sobre a dislexia

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 36-41)

Castro Pinto assume uma posição mais crítica. Sem negar a dislexia - que segundo ela sempre existirá "em percentagens reduzidas" - a autora chama a atenção para a extrema "facilidade" e o "pouco rigor" que caracterizam, muitas vezes, a aplicação do termo dislexia, bem como para a inexistência de "um quadro homogêneo", cuja etiologia é mal determinada. Sugere a existência de subgrupos de perturbações de leitura que resultam naquilo que ela denomina de "pseudodislexia" [Castro Pinto, 1994, p. 185, 186, 209].

Castro Pinto considera três grandes grupos de perturbações da leitura e escrita: (i) as adquiridas, (ii) as de desenvolvimento e (iii) aquele, cuja sintomatologia é de caráter transitório. A autora foca sua discussão na chamada "dislexia de desenvolvimento", geneticamente determinada, e a distingue da "dislexia específica", que se manifesta isoladamente22. Define, pois, a "dislexia de desenvolvimento" como aquela que se manifesta na criança sem nenhuma lesão cerebral, caracterizada por "uma discrepância entre a capacidade de leitura prevista com base no nível intelectual e o nível de leitura observado a partir de testes formais" [Castro Pinto, op. cit., p. 183].

21

Trata-se de uma estudiosa portuguesa que investiga fenômenos relacionados à leitura e escrita do PE (Português Europeu). Nas citações que se seguem mantenho o PE conforme o original consultado.

22 Portanto, ao que parece, a discussão de Castro Pinto concentra-se naqueles casos abrangidos pela Teoria

Ou ainda, opondo-se à dislexia de aquisição, a dislexia de desenvolvimento é considerada como sendo "uma perturbação da leitura que impede a obtenção de uma competência normal nessa actividade", cujo termo serve "para designar as dificuldades persistentes verificadas na aprendizagem da leitura"23 [Castro Pinto, op. cit.., p. 187].

A Federação Mundial de Neurologia, por sua vez, define a dislexia como uma dificuldade para aprender a ler, não obstante instrução convencional, inteligência adequada e oportunidade sociocultural, que depende de capacidades cognitivas fundamentais, freqüentemente de origem constitucional como "dificuldades de fala e linguagem, déficits de percepção visual bem como com problemas seqüenciais; dificuldades temporais, consciência de direita e esquerda, confusão com direção" [Castro Pinto, 1994, p. 184, tradução minha24]. No entanto, a confusão conceitual parece persistir. No decorrer de seu trabalho, Castro Pinto cita autores para os quais a distinção entre dislexia específica e de desenvolvimento não parece assim tão óbvia [Quadro 2].

Quadro 2 - Dislexia de desenvolvimento25

Descrição Autor(es) Data

conjunto de insuficiências funcionais Launay

lateralização cerebral anormal Orton, Thompson, Zurif, Carson

perturbação perceptiva Ferdinand, Müller, Shankweiler e

Spionek

perturbação genética recessiva Hinshelwood 1971

cérebros com especialização diferente: maior propensão para atividades espaciais do que lingüísticas

Symmes e Rappaport Witelson

1972/ 1976 distinção entre a dislexia específica e a dislexia de

desenvolvimento, esta última de origem hereditária

Critchley 1975

existência de uma disfunção cerebral em virtude de uma atividade neuropsicológica atípica ou de uma anomalia estrutural, tanto na dislexia de desenvolvimento como na associada à lesão cerebral

Steven Mattis et al. 1975

caráter familiar que predispõe à transmissão hereditária P. Debray-Ritzen e B. Mélékian 1976

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Segundo Castro Pinto [1994] alguns autores dirão que o diagnóstico de dislexia só é plausível nas crianças que ainda manifestam dificuldades de aprendizagem ao fim de, pelo menos, um ano de escolaridade, apesar de todos os esforços pedagógicos e de uma participação ativa por parte da criança.

24 No original: "speech and language dIfficulties and visual perceptual deficits as well as sequencing problems,

dIfficulties with the processing of time, left/right awareness and directional confusion".

25

Com base na revisão da literatura feita por Castro Pinto [1994] o quadro mostra as principais hipóteses explicativas sobre a Dislexia de desenvolvimento.

processamento preponderante no hemisfério direito M.B. Denckla et al. 1980 funcionamento normal do hemisfério direito e anormal do

hemisfério esquerdo

Susan Carey e R. Diamond 1980

modo distinto de processar informação a nível cerebral (constatação de atividade elétrica diferenciada)

Frank Duffy 1983

disfunção cerebral focal, possivelmente, em virtude de influências hormonais ocorridas durante o

desenvolvimento fetal.

C. Temple 1985

Alguns autores observam a ocorrência de problemas particulares e sintomáticos na escrita como característica da dislexia e como suas possíveis causas, além da hereditariedade, o tipo de abordagem escolar usada, problemas afetivos e outras perturbações "instrumentais", isto é, relacionadas ao "esquema corporal, com a má organização espácio-temporais, com a má lateralidade, com a linguagem e com a função simbólica" [Castro Pinto, 1994, p. 185].

Mesmo aqueles que defendem que a dislexia independe da prática de ensino, chamam a atenção para o fato de certas práticas escolares serem mais ou menos adequadas a certos grupos de sujeitos, e para a necessidade de se praticar, de fato, a leitura para que seu mecanismo seja plenamente compreendido. Em relação aos problemas afetivos, as opiniões se dividem. Há autores que acreditam que eles são a causa das "recusas de comunicação" que se revelam, também, na linguagem escrita e outros, que defendem o oposto, isto é, que a dislexia sim, seria a causa de transtornos afetivos [Castro Pinto, 1994].

Quanto aos problemas instrumentais que compõem o quadro da dislexia, alguns estudiosos os interpretam como produto de uma perturbação perceptiva, ou decorrentes de um conjunto de insuficiências funcionais, ou ainda, causados por uma lateralização cerebral anormal. A esse respeito, outros autores contrapõem o argumento de que tais dificuldades instrumentais não podem ser tomadas como causa da dislexia uma vez que nem todos os sujeitos apresentam todas as dificuldades apontadas, tampouco, quando estão presentes, são sistemáticas.

Tomando todas essas considerações, portanto, a definição da dislexia torna-se crescentemente pouco explícita. Uma solução indicada pela autora seria a possibilidade de existir um quadro de dislexia de desenvolvimento sem a ocorrência de certos fatores que poderiam, no entanto, acompanhar o quadro como "sintomas associados" (fatores instrumentais, hereditários, afetivos, pedagógicos, etc.), sendo a presença de uma lesão cerebral condição suficiente para afastar tal diagnóstico.

Em relação aos erros cometidos durante a leitura e a escrita, pouca diferença se faz notar entre os referidos por Condemarín e Blomquist e os apresentados por Castro Pinto, para quem o caráter não homogêneo da dislexia de desenvolvimento se revela com base nos erros encontrados tanto em relação ao tipo de leitura quanto ao tipo de ortografia. O refinamento dos sintomas fica por conta de nova categorização. Castro Pinto apresenta ainda três outros tipos de dislexia, conforme estudo de 1973 de E. Boder (i) a "disfonética", caracterizada pela incapacidade de integrar símbolos e sons; (ii) a "diseidética", relacionada a uma incapacidade para tratar as letras e as palavras como conjuntos; e (iii) a "mista", que seria uma combinação das duas anteriores. A criança disléxica "escreve como fala", de acordo com alguns autores estudados por Castro Pinto. Portanto, ao problema de leitura - nessa concepção de escrever e ler - soma-se o problema de escrever de forma deficitária: a chamada "disortografia" 26.

Quanto ao diagnóstico da dislexia de desenvolvimento E. Boder argumenta que se pode proceder de três modos: (i) por um processo de exclusão; (ii) indiretamente com base na freqüência e persistência de métricas e (iii) diretamente com base na freqüência e persistência de certos tipos de erros de leitura e escrita.

A dificuldade em se fazer um diagnóstico diferencial entre os grandes grupos apresentados pela autora se torna, ao longo do texto, cada vez maior. Castro Pinto chama a atenção para o fato de cada sujeito ser único, sugerindo que cada criança pode necessitar em maior ou menor grau de algum tipo de apoio seja na escola e/ou em casa, com o objetivo de "ultrapassar o carácter porventura lento que pode revestir talvez transitoriamente o seu modo de actuar". [Castro Pinto, 1994, p. 192]. Acrescenta ainda que esses sujeitos, da mesma forma que a parcela considerada disléxica, pode também apresentar "um desenvolvimento perceptivo, psicomotor, linguístico e mesmo afectivo que não esteja totalmente de acordo com o esperado para sua idade", ressaltando que o critério idade deve ser visto de forma cautelosa, uma vez que "nem todas as crianças de uma determinada idade reagem da mesma forma" e que de um modo geral "o ensino praticado na sala de aula visa unicamente a média" [Castro Pinto, op. cit., p. 192]. Relembra que há outros casos cuja sintomatologia pode se assemelhar a da dislexia, devido a uma "possível correlação entre o meio socioeconómico e o mais ou menos fácil acesso ao material de leitura e como tal também ao acto de ler" [Castro Pinto, op. cit., p. 193].

26Isto é, "dificuldades na escrita correta de uma palavra" [Castro Pinto, 1994, p. 195, tradução minha]. No

Castro Pinto também é cuidadosa ao se referir a outros tipos de sujeitos que não devem ser confundidos com disléxicos, como é o caso daquela criança "que lê devagar, talvez abusando das pausas em virtude da sua pouca prática de leitura" ou aqueles adultos "que lêem em voz alta com muita dificuldade em conseqüência de uma escolarização muito reduzida e de uma pouca prática de leitura" [Castro Pinto, 1994, p. 199-200].

Essas análises de Castro Pinto podem ser tomadas como indícios no sentido de se tratar a questão da dislexia de uma perspectiva mais produtiva, inserindo-a nos debates a respeito do letramento que, necessariamente, impõe um alargamento à concepção de linguagem, tanto em sua forma escrita quanto oral – como se verá no capítulo 4 –, e de sujeito-histórico, isto é, de "sujeitos reais e suas histórias individuais de relação com a linguagem" [Abaurre, 1997, p. 83] .

De qualquer forma, os estudos - quer sobre a dislexia específica, quer sobre a de evolução - que durante décadas ocuparam tantos (e renomados) pesquisadores são impregnados por uma

"(...) visão psicolingüística do letramento como conhecimento estrito da letra, do código, e como capacidade, ou condição cognitiva unificada, universal e abstrata decorrente do uso da escrita enquanto tecnologia (...) atravessada por concepções escolares que promovem a aquisição de habilidades instrumentais específicas e atitudes passivas diante da escrita" [Signorini, 2001, p. 7-8].

Por tudo que foi exposto até aqui fica fácil concordar com Castro Pinto a respeito da extrema facilidade e, muitas vezes, pouco rigor, com que o termo dislexia é empregado, ainda nos dias de hoje. AL foi vítima de uma explosão de teorias não conclusivas que tentam dar conta de um fenômeno por excelência heterogêneo, cujo entendimento requer uma teoria de linguagem que não vê a escrita (e seu sistema) apartada do exercício da linguagem. Ler/escrever é um processo complexo que pressupõe:

“(...) uma série de operações lingüístico-cognitivas que vai muito além da codificação de sons em letras para escrever e da decodificação de letras em sons para ler, até porque tais relações são heterogêneas, não unívocas. Vários conhecimentos, a um só tempo, são necessários para escrever: manipular o sistema ortográfico de uma dada língua, o que requer o estabelecimento de relações entre som e letra; entre palavras e coisas; entre palavras e gestos; entre palavras e palavras; entre palavras e idéias; entre palavras e fatos. É preciso que o

sistema da escrita esteja imerso em práticas sociais (discursivas) que fazem sentido para uma determinada comunidade de falantes dessa língua” [Coudry e Freire, 2005a, p. 23].

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 36-41)