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Freud, fundador da Psicanálise, iniciou sua carreira médica dedicando-se aos estudos nas áreas da Neurolofisiologia e Anatomia por quase vinte anos (1876-1896) contrapondo-se - muito antes de Luria - à corrente localizacionista52. Desse período resultam dois importantes estudos, A Afasia de 1891 – apresentado como tese de doutoramento - e o Projeto para uma Psicologia Científica de 189553. Embora ambos tenham grande importância para os estudos neurolingüísticos e para a prática clínica atuais, tiveram uma circulação restrita em seu tempo.

Freud nasceu em Freiberg, na Áustria, em 06 de maio de 1856. Casado com Marta Bernays em 1887, teve 6 filhos. Perdeu de maneira precoce uma de suas filhas, Sophie, a quem amava muito e, anos mais tarde, o filho mais novo dela, Heinele, aos 4 anos. Viveu a trágica experiência de duas Grandes Guerras. Refugiou-se, por ocasião da 2ª Guerra, em Londres.

Após o término de seus estudos na Universidade de Medicina de Viena em 1881, trabalhou no Hospital de Viena até 1885 onde aprimorou sua habilidade de observador clínico e neurologista e investigou, entre outros assuntos, os efeitos da cocaína. Trabalhou no laboratório do neuroanatomista e psiquiatra Theodor Meynert que presumia uma relação quase mecânica entre cérebro e mente [Sacks, 1998/2000]. Em 1885 foi nomeado professor de Neuropatologia na Universidade de Viena e em 1886 começou a trabalhar em seu consultório particular em Rathausstrasse. Antes, porém, passou quatro meses em Paris trabalhando com o renomado neurologista Martin Charcot utilizando e discutindo criticamente procedimentos de hipnose e de sugestão [Sacks, op. cit.]. Por volta de 1896, ano em que ocorre a morte de seu pai, Freud começa a empregar o termo "psicanálise". Em 1897 inicia sua auto-análise. Em 1930, a cidade de Frankfurt lhe concede o Prêmio Goethe; ano também da morte de sua mãe, aos 95 anos54. Freud morre em 1939 na cidade de Londres aos 83 anos de câncer bucal.

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Embora separados cronologicamente, ambos os autores apoiaram-se de um modo ou outro, nas idéias do médico inglês Hughlings Jackson [1835-1911].

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Agradeço a Dra Alessandra Caneppele pelos comentários que fez por ocasião da qualificação da tese que muito contribuíram para a sua finalização.

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A Afasia - 1891

O ensaio de Freud sobre A Afasia de 1891 – por ele considerado de caráter estritamente neurológico - é visto por vários autores como um estudo fundamental para a psicanálise [Birman, 1993; Sacks, 1998/2000], embora no contexto desta tese interesse suas formulações a respeito das relações entre o sistema nervoso e a linguagem. O próprio Freud determinou que esse ensaio fosse excluído de suas “obras completas”55, ainda que creditasse a ele grande importância teórica,

conforme confidenciou em carta escrita a seu amigo Fliess56:

“(...), mas para os trabalhos verdadeiramente interessantes, tais como a ‘Afasia’, ‘As idéias obsessivas’, que está para ser publicado, e o próximo ‘Etiologia e teoria das neuroses’, não espero senão um honroso fracasso. Existe aí algo para se desconcertar verdadeiramente e se encher de amargura”. [Freud, 1891/197357]. Pouco conhecido e divulgado – mesmo à época de sua publicação – esse estudo marca uma ruptura teórica radical com o pensamento localizacionista hegemônico da neurologia no final do século XIX. Naquele momento as relações entre lesões cerebrais, tipos específicos de afasia e localização exata das funções de linguagem pareciam estar ao alcance das mãos com os achados de Broca e Wernicke [Coudry, 2002b]. Freud opõe-se à concepção tópica então dominante e

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Essa determinação, a meu ver, contribui para uma radical ruptura epistemológica – adotada por vários autores – entre esses dois momentos da produção intelectual freudiana, como se os estudos neurofisiológicos nada tivessem a dizer aos psicanalíticos e vice-versa. Testemunho dessa ruptura é a matéria publicada no Caderno Mais! da Folha de São Paulo em 11 de julho de 2004, na qual Daniel Riva e Jorge Forbes opõem-se veementemente a junção do arcabouço teórico de Freud aos esforços experimentais das neurociências.

56 Fliess era médico especialista em nariz e garganta e residia em Berlim. Freud e Fliess mantiveram uma

intensa correspondência entre 1887 e 1902. Homem de grande inteligência e amplos interesses na biologia geral, Fliess mostrava-se acessível às idéias de Freud que lhe relatava sem maiores reservas seus pensamentos e sentimentos.

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Carta datada de 2/5/1891, disponível em Freud, S., Lettres a Wilhelm Fliess, notes et plans [1887-1902], in La naissance de la psychanalyse. Paris, 1973. p. 56. Referência citada por Joel Birman no capítulo A linguagem na constituição da psicanálise, no livro “Ensaios de teoria psicanalítica”, de sua autoria [Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1993. p. 47].

propõe uma concepção funcional da afasia58

[Birman, 1993]. Para chegar a esse ponto Freud empreende um estudo meticuloso e crítico a respeito das teorias de conceituados neuropatologistas de seu tempo. O ensaio é magistralmente redigido. Nele Freud analisa criticamente as teorias neurológicas vigentes, sobretudo as elaboradas por Meynert, Lichtheim, Grashey, Wernicke. Salvam-se Jackson e Bastian.

Essa ousadia – como o próprio Freud afirma em outra carta escrita a Fliess em maio de 1891 - é ainda mais relevante se compreendida em seu contexto histórico. No final do século XIX o tema afasia era um lugar estratégico de confluência de discursos teóricos de diversas áreas: neuropatologia, filosofia, psicologia, estudo da linguagem [Birman, 1993]. Freud foi o primeiro autor de língua alemã a fazer uma análise crítica sistemática do Localizacionismo.

A neuropatologia, recente naquela época, ganha grande impulso com a descoberta de Paul Broca. Em 1861 ele descreve a afasia motora como decorrente de uma lesão localizada na terceira circunvolução frontal esquerda. Esse fato foi decisivo para o renascimento da Frenologia praticada por Gall, de caráter estritamente localizacionista, que andava desacreditada. Duas tendências disputavam a hegemonia nas pesquisas sobre o sistema nervoso: Gall (e o localizacionismo) versus Flourens, que defendia uma hipótese funcional59 [Birman, 1993].

Treze anos depois é a vez de Wernicke descrever um quadro - com sintomatologia contrária a de Broca - e correlacioná-lo a uma lesão no centro sensorial da linguagem, localizado na primeira circunvolução temporal. Mais tarde descreve um novo tipo de afasia, com alterações na associação da imagem sonora da palavra com a impressão cinestésica da palavra, função atribuída às fibras brancas que conectam os dois centros, o sensorial (ou de Wernicke) e o motor (ou de Broca). A destruição dessas vias provoca a denominada parafasia, sem alterações de compreensão e de articulação, quadro denominado por Wernicke de afasia de condução.

Com as descobertas de Wernicke vários autores passam a aceitar o fato de que os transtornos de linguagem eram provocados por lesões nos centros de linguagem ou em função da

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Antes de voltar a sua atenção para a afasia, Freud estudou casos de histeria, fato que, provavelmente influenciou seus estudos. Em casos de histeria Freud observou ora ausência da linguagem verbal (mutismo), ora problemas motores periféricos (paralisias), sem ocorrência de lesões corticais, o que o levou a crer que tais sintomas eram da ordem de algo funcional. Hipótese que orientou seus estudos sobre a afasia [Lima, 2005].

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Segundo a hipótese funcional, a massa cerebral tem o mesmo potencial para qualquer função psíquica, sem uma correlação estrita entre determinadas áreas cerebrais e determinadas funções. Existiriam, segundo essa visão, múltiplas possibilidades tópicas para diferentes funções mentais [Birman, 1993].

interrupção dos feixes de associação entre eles, estabelecendo-se uma distinção entre a afasia central e a afasia de condução.

Dois aspectos da visão Localizacionista60 ganham a atenção de Freud. O primeiro deles diz respeito a essa distinção entre a afasia causada por lesões nos centros (tal como ocorre na afasia de Broca e de Wernicke) e aquela decorrente de lesões nas vias (tal como descrito por Wernicke na afasia de condução), com base na separação entre centros de linguagem e vias de condução. O segundo aspecto refere-se à localização estrita de certas funções de linguagem em centros topograficamente delimitados.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 65-68)