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O estudo clínico de AL

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 56-63)

Afinal, que dificuldades lingüísticas e psíquicas AL apresenta? Sob quais condições? Parece oportuno uma caracterização sucinta do histórico do caso clínico de AL. Começo retomando as razões pelas quais o sujeito foi encaminhado ao LABONE: dificuldade de leitura e aprendizado.

Há, de fato, problemas relacionados à leitura. Quando lê em voz alta AL o faz de modo semelhante aos adultos que lêem “com muita dificuldade em conseqüência de uma escolarização muito reduzida e de uma pouca prática de leitura" [Castro Pinto, 1994, p. 199-200]. O visível esforço na decodificação e na correta produção oral dos sons que correspondem às letras que laboriosamente decifra conferem a sua leitura um tom monocórdico, que dificulta sua compreensão e indica uma desorganização geral dessa atividade, também em função do acometimento dos lobos frontais. A interpretação de texto quando a leitura é silenciosa é um pouco melhor, mas AL logo perde o foco de atenção e o fio da meada. Pode-se dizer que AL apresenta dificuldade com a rápida alternância requerida pela leitura - seleções e ordenações sucessivas de letras que correspondem a sons - que implicam relações entre os eixos paradigmático e sintagmático de organização da língua [Jakobson, 1969].

Quanto às dificuldades para aprender pode-se afirmar que elas são infundadas. Propus, na avaliação neurolingüística empreendida, atividades absolutamente novas para ele, que envolviam o computador, instrumento com o qual não tinha familiaridade e demonstrava grande interesse em

48A edição eletrônica das Obras Completas de Freud assinala que esse artigo, provavelmente, foi escrito no

outono de 1924, embora a primeira publicação alemã seja de 1925, daí a razão das duas datas. A primeira vez que ouvi sobre esse texto de Freud foi por ocasião da apresentação feita por Coudry no lançamento do livro Cidadania, Surdez e Linguagem, na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp em agosto de 2003.

aprender a usar. Usou com propriedade a linguagem de programação Logo, que envolve conhecimentos espaciais, metalingüísticos, noções de ângulo, figuras geométricas e cálculo; o programa ICQ e o correio eletrônico cujo uso implica, além da própria escrita, o manuseio de teclas específicas e o entendimento de suas interfaces. Na interface de um programa estão organizados, em geral, os ícones que representam seus recursos, sobre os quais o sujeito tem que clicar para poder usar o programa.

Por meio dessas atividades pode-se ver que AL é capaz de colocar em funcionamento conhecimentos já aprendidos (com maior ou menor propriedade, considerando-se a complexidade do conceito em questão e sua familiaridade com ele), bem como aprender outros tantos novos. Em síntese, AL se recorda de conteúdos previamente aprendidos e registra novos conhecimentos, processos que não seriam possíveis se, de fato, apresentasse dificuldades de aprendizagem e de memória. Por exemplo, para fazer o desenho de um quadrado usando a linguagem computacional Logo é preciso saber que seus lados são iguais e que seu ângulo é de 90 graus. Os comandos do Logo, portanto, têm que seguir essas restrições caso contrário, a figura desenhada, não corresponde a um quadrado. Assim, a correta seleção de comandos e de números é uma evidência de que AL tem esses conceitos e sabe aplicá-los. Outros conceitos que surgiram no decorrer das atividades – como aqueles relacionados ao uso do sistema cartesiano – não foram usados com a mesma facilidade sendo necessária a minha intervenção no sentido de auxiliar a solução da tarefa. Por outro lado, foram introduzidos outros tantos conceitos – os próprios comandos, a noção de programação, salvar um arquivo, etc. – que foram compreendidos por AL e reutilizados em sessões posteriores, mostrando que é capaz de aprender novos conteúdos.

AL não tem problemas relacionados à produção oral nos níveis fonológico, sintático, semântico, mas nem sempre maneja bem as regras pragmáticas que orientam o uso social da linguagem nas situações interativas das quais toma parte. Notam-se com certa freqüência hesitações e pausas mais ou menos acentuadas – a depender da situação de interlocução – creditadas a um esforço para agenciar “estratégias de dizer” [Geraldi, 1991/93] visando organizar seu “querer-dizer” [Bakhtin, 1953/53-1997, p. 303] que interfere na evolução do diálogo. Da mesma forma, quanto aos processos interpretativos, se observa uma demora na resposta que pode ser compreendida pelo interlocutor como sinal de uma atitude pouco ativa por parte de AL, isto é, não responsiva nos moldes bakhtinianos [Bakhtin, 1929/99]. Um diálogo pressupõe interlocutores que mantém um empenho ativo mútuo: o interlocutor tem que manter seu foco de atenção sobre aquele que fala para poder compreendê-lo, mantendo uma compreensão responsiva ativa, ou seja, uma "posição ativa a propósito do que é dito e compreendido" [Bakhtin, 1929/99, p. 99]. O locutor,

por sua vez, aguarda uma resposta verbal ou não verbal, uma adesão, um gesto afirmativo, um comentário. Também o silêncio, em dada situação dialógica, é uma atitude ativa, mas seu prolongamento pode ser considerado – inadvertidamente - como uma não resposta ou um alheamento de AL. Ocorre, no entanto, que nesses momentos AL está às voltas com o que acaba de ouvir, em busca de seu sentido.

Esse descompasso entre locutor e interlocutor – seja na produção, seja na interpretação de sentidos - se explica tanto pela lentificação neuropsíquica – dada a alteração da dinâmica de funcionamento cerebral decorrente do TCE - quanto pelo comprometimento bilateral dos lobos frontais que desempenham um papel fundamental no planejamento e monitoramento da atividade verbal [Luria, 1981 e 1991a]. Em outros termos, as contrapartes neurofisológica e psíquica que funcionam de maneira interdependente e concomitante, constituindo um processo único, de que fala Freud [1891/1973,] em AL apresentam – uma em relação à outra - um desarranjo temporal, um pequeno delay: as associações que se seguem a uma percepção não são mais simultâneas [Freud, 1891/1973].

Observam-se, de forma mais acentuada, alterações na produção escrita. AL não tem domínio completo do sistema ortográfico do Português do Brasil (PB), do emprego dos sinais de pontuação, da espacialização/segmentação requerida pela escrita, do emprego de certas categorias gramaticais. Todos esses sinais, no entanto, nem de longe, podem ser confundidos com um quadro de dislexia. Notam-se certos escritos que mostram o trânsito entre a oralidade e a escrita e marcas de “refacção” [Abaurre, et alii 1997], isto é, de reescritas que revelam tanto a leitura que faz daquilo que escreve quanto as dúvidas que tem acerca do modo como se escrevem certas palavras da língua. A refacção textual é aqui compreendida como um sinal de um trabalho de “modificação de algo anteriormente escrito sob forma diversa” e que pode indicar motivações que revelam especificidades do escrevente e da sua relação com a linguagem [Abaurre et alii, 1997, p. 24].

AL sabe que não sabe escrever como poderia escrever. Esse modo de escrever resulta de sua pouca experiência ao longo de sua história de vida com atividades que usam de forma significativa a escrita e, portanto, de sua pouca familiaridade com ela, somada às vivências de desprazer que lhe provocam desde os tempos da escola. Mas seus textos são textos. Quero com isso dizer que AL consegue organizar seus enunciados de modo a manter a progressão do tema em questão e usa – de forma assistemática – sinais de pontuação que auxiliam no encadeamento de suas idéias, como se pode ver no Dado 3:

Dado 3: excerto de texto escrito em novembro de 2003 em que se notam algumas anotações feitas por mim por ocasião da leitura conjunta do texto.

__ MINHA MÃE FICOU DESESPERADA, QUANDO ELAS ENTRARÃO NO QUARTO MINHA MÃE SEGUROU A MINHA MÃO E PERGUNTOU: VOCÊ SABE QUE SOU SUA MÃE APERTE MINHA MÃO, EU APERTEI

AL escreve sobre o momento em que sua mãe e sua irmã foram visitá-lo no hospital, logo após o acidente de carro, quando ainda não consegue falar e está sob o efeito de fortes medicamentos. Escreve, portanto, sobre algo do passado. No texto, usa o discurso direto, faz boas escolhas lexicais de modo a traduzir a dramaticidade daquele momento vivido (DESESPERADA), assume o papel de narrador da história. Chama a atenção a maneira como usa o travessão: ele o desenha tão logo introduz a fala da mãe, adotando a forma direta de discurso, introduzindo-a como personagem da narrativa. Outros sinais de pontuação são apropriadamente usados, auxiliando a organização textual; outras vezes, um sinal é usado no lugar de outro, mostrando que ele tem dúvidas sobre o modo de manejá-los em seu texto. Observam-se ainda instabilidades ortográficas, comuns aos aprendizes da escrita, em relação às marcas do pretérito perfeito e do futuro do presente na escrita (ENTRARÃO).

Outros dois fatores correlacionados chamam a atenção: os lapsos de memória e as fabulações. O primeiro deles representa sua principal queixa pós-episódio traumático e, o segundo, pode ser interpretado como restos da relação do sujeito com a linguagem: o presente e o passado. Disse, em relação à aprendizagem, que AL registra e recorda conteúdos considerando-se as observações que fiz já por ocasião de sua avaliação neurolingüística, mas nem sempre é assim. Ou, pelo menos, não é assim para qualquer conteúdo. AL diz não se lembrar de certos acontecimentos não sendo possível associar uma cronologia estrita àqueles que foram esquecidos, isto é, não são sempre eventos de um passado mais distante, tampouco eventos recém-ocorridos. É fato que logo

após o episódio neurológico essa dificuldade é mais acentuada, isso é freqüente em casos neurológicos semelhantes ao seu. Transcorrido mais de um ano após o TCE, AL passou a apresentar sinais alarmantes de esquecimento que provocaram seu retorno ao LABONE. Com os medicamentos e os acompanhamentos clínicos (fonoaudiológico e psiquiátrico) o quadro voltou a estabilizar, mas a queixa relativa aos lapsos de memória permanece.

AL se angustia com o esquecimento de fatos absolutamente irrelevantes: o que jantou no dia anterior, qual o nome da garota que conheceu na festa semanas atrás, o que conversou com o rapaz a quem foi apresentado ontem. Isso mostra duas coisas importantes. Primeiro que ele tem uma idéia de memória pautada no senso comum: ter boa memória é lembrar de tudo o que quiser e para isso é preciso treiná-la. Um conceito restrito de memória mnemônica e um falso problema, de fato. Segundo que ele está a todo instante checando sua capacidade rememorativa, mesmo para situações absolutamente irrelevantes, nas quais fracassa – como todos fracassaríamos – o que interfere, de fato, nos registros de memória e na recordação.

Duas hipóteses parecem plausíveis para explicar esse estado. A primeira delas diz respeito a já citada alteração neurodinâmica que é, por natureza, heterogênea e, portanto, imprevisível. A memória não é de responsabilidade exclusiva de uma certa área cortical, mas prevê o funcionamento coordenado entre elas, com maior ou menor envolvimento de áreas circunscritas, a depender da natureza do conteúdo a ser lembrado. A outra hipótese se refere à possibilidade de tais acontecimentos - eventos e pessoas a eles relacionados – causarem algum tipo de desprazer a AL. Freud [1895/1990] mostra que essa sensação, paradoxalmente, pode ocasionar o esquecimento por duas razões: ou porque esses conteúdos foram reprimidos pelo sujeito, ou porque há conteúdos tão intensamente registrados que inibem o acesso a outros que o sujeito deseja recordar. O visível mal-estar provocado tanto pela lembrança de sua professora quanto pela lembrança das fabulações parecem confirmar a plausibilidade dessa hipótese.

Fabular deve aqui ser compreendido com o sentido de qualificar uma narrativa

“(...) imaginária, fantasiosa, delirante. Fabular, nesse caso, naturalmente não significa narrar sob a forma de fábula; é narrar sem critério, inventar fatos fantásticos ou bizarros, exagerar ou distorcer eventos reais, ou simplesmente mentir. Assim, aquele que fabula estaria subvertendo as (boas) intenções comunicativas das interações humanas; o fabulador exagera, inventa, esconde, blefa e mistura de tal modo ficção e realidade que o termo fabulação (...) indica uma concepção depreciativa de todo um fenômeno ‘linguageiro’, desde que se

sublinha seu caráter desestabilizador, definindo-o negativamente” [Morato, 1995a, p. 74-75].

É exatamente a subversão das boas intenções comunicativas que (supostamente) regem as interações humanas que hoje acarreta sensação de desprazer em AL. As narrativas que constrói versam sobre temas que envolvem polícia e bandido, atos de ousadia e coragem, uso da força física, aventuras. Nelas, AL é destemido e está sob a proteção ou da polícia ou de alguém influente que, via de regra, abona sua conduta. O efeito dessas fabulações sobre a vida psico-afetiva de AL é flagrante: se sente “o bam bam bam”, como ele mesmo se refere, anda armado e não mede as conseqüências de seus atos. Ainda hoje tem que exercer um controle sobre si mesmo porque percebe uma tendência em repetir esse tipo de conduta [Freud, 1895/1990].

Cabe perguntar quando e porque esse tipo de conduta surgiu. É provável que as fabulações tenham se tornado mais freqüentes à época em que consumia bebida alcoólica: embalado pelo álcool inventava histórias, continuamente reconstruídas com novos elementos, de modo a garantir tanto o interesse do interlocutor, quanto a manutenção da sensação de prazer (traduzido por uma sensação de poder). Mas há também um componente psico-afetivo, talvez, como se pode ver no Dado 4.

Dado 4: Relato oral sobre as mudanças que ocorreram sem sua vida depois do acidente [02/07/2003]

L Locutor Enunciados Observações

1 AL É. É que antigamente, quando eu era criança então, minha mãe sempre me proibia de tudo. Então, tudo eu era proibido de fazer, tudo. Ia, ia andar de bicicleta ia sem uma blusa, que tava meio frio.

Não, você tem que ir de blusa.

Não mãe, mas eu vou andar de bicicleta.

Você tem que ir de blusa. Tem que ir de blusa.

Ia de blusa; só que, pô, suava, né? Então às vezes tinha que mentir alguma coisa para poder não usar. Então eu sempre...que nem... eu ia em tal lugar...

Não, não pode porque lá é perigoso.

Muda a tessitura vocal, imitando a mãe Muda a tessitura vocal, imitando a mãe Muda a tessitura vocal, imitando a

Então está bom, mãe, eu vou em tal lugar. Eu falava que ia num lugar que não era perigoso e ia para esse...

mãe

2 IFF Você foi aprendendo...Foi uma mentira que foi...

3 AL Eu tive que ir criando para poder, tipo...enganar ela para poder ir para os lugares que eu tinha vontade de ir, entendeu? Eu só não podia ir porque ela não deixava, ela me proibia.

Não! Isso aí você não pode fazer, isso não pode, não pode, não pode!

Então eu enganava ela para poder...então eu disfarçava...Tipo, ã, vamos em Jaguariúna de bicicleta. Vamos! Mãe, eu vou andar na Lagoa de bicicleta. Entendeu? Pegava e ia para Jaguariúna. Às vezes ela ficava sabendo e, às vezes, não. Quando ela ficava sabendo, já era depois e ela não tinha mais como reclamar.

Muda a tessitura vocal, imitando a mãe

4 IFF Mas isso foi se instalando em você... 5 AL É, fui me acostumando a...mentir.

AL conta que começou a mentir quando era criança para evitar que sua mãe o proibisse de fazer coisas que queria fazer. Quando ele assume o papel discursivo da mãe no relato reproduz sua fala por meio de uma mudança da tessitura vocal. Mais do que lembrar, AL revive aqueles episódios49.

Não se pode dizer que há repetição da fabulação em si, o que se repete é o modo de narrá- las, o formato, a estrutura. São “ruínas de gêneros de discurso”, possivelmente, de aventuras narradas em seriados da TV, no cinema, nos desenhos animados de ação, que povoam sua imaginação desde a infância50. Quando criança costumava colocar sua espada de plástico ao sol para “energizá-la” tal como o famoso personagem He-man fazia.

49

Em seu estudo sobre as Histerias, entre os anos de 1893 e 1895, Freud usa a hipnose como forma de analisar as origens dos sintomas de seus pacientes e constata que eles desaparecem à medida que o paciente é capaz de revelar - por meio de suas próprias palavras - certos acontecimentos.

50

Agradeço a observação do Prof. Corrêa, por ocasião do exame de qualificação, a respeito da noção de ruína de gênero de discurso, produtivamente incorporada a esse estudo, especialmente na análise do dado Arraiá Taquarar, no capítulo 5.

3. Referencial teórico

A recordação não é uma reexcitação de inúmeros traços fixos, fragmentados e sem vida. É uma reconstrução ou construção imaginativa, pautada na relação entre a nossa atitude perante toda uma massa ativa de reações ou experiências passadas e organizadas, e um pequeno detalhe saliente, que comumente aparece sob a forma de imagens ou da linguagem. Portanto, raras vezes ela é realmente exata, mesmo nos casos mais rudimentares de recapitulação de coisas decoradas, e não tem a menor importância que o seja.. Frederic Bartlett

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 56-63)