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Síndrome Frontal leve

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 51-56)

As esculturas da artista inglesa Rachel Whiteread criam uma metáfora visual para a inquietação provocada pela alteração do funcionamento lingüístico e psíquico de AL. Whiteread dá "matéria e visibilidade ao espaço negativo, ao que existe entre as coisas, ao vazio em torno delas ou no interior delas, ao que não é das coisas" [Carvalho, 200343]. Em um de seus trabalhos, a artista presta uma homenagem às vítimas do Holocausto em Viena. Trata-se de um molde negativo do avesso de uma biblioteca: fica aparente os fundos das estantes e a parte oposta das lombadas dos livros, as prateleiras e as bordas das páginas dos livros fechados e petrificados. Virando "o mundo do avesso", a artista esculpe "a falta e o vazio". Carvalho diz que a criação de Whiteread provoca uma confusão completa:

"(...) é como se tudo tivesse sido invertido de repente. E o pior é que, ainda assim, essa inversão permite um resquício de reconhecimento sinistro. Temos a impressão de que sabemos o que está diante de nós, mas não conseguimos nomeá-lo. Não

43 Bernardo Carvalho escreveu um artigo intitulado O espaço negativo a respeito do trabalho de Rachel

Whiteread, por ocasião de uma exposição na Oca do Ibirapuera, que foi publicado no Caderno Ilustrada da Folha de São Paulo em 19 de agosto de 2003.

conseguimos entender o que é que reconhecemos. O mundo saiu dos eixos" [Carvalho, op. cit.].

Faltam eixos também para AL. Embora ainda se reconheça - "um resquício de reconhecimento sinistro se mantém" - estranha a percepção que tem de si mesmo, como mostra seu relato [Dado 1 – linha 22]. Sua lentificação - pouco visível aos olhos do outro - toma uma gigantesca proporção para ele. Já não consegue rir e se distrair com as mesmas coisas. Fica apreensivo, assustado, é acometido por um turbilhão de idéias que lhe chegam à mente a um só tempo. O que sente agora a respeito de si parece análogo ao impacto que a escultura de Whiteread provoca. A inversão das convenções feita pela artista não permite às pessoas entenderem o que vêem, mas provoca um estado de perturbação e mal-estar. Os dois casos - a escultura da artista e o estado alterado de AL - mostram a dificuldade que temos de ver o avesso das coisas. AL hoje é o que não era. Mas, quem era AL? Como reconstruir sua história pessoal?

Em função do acompanhamento psiquiátrico e do acompanhamento fonoaudiológico várias coisas vieram à tona. O duplo exercício com e sobre a linguagem – pela oralidade e pela escrita – fizeram com que AL revivesse coisas que pareciam já-perdidas em virtude de uma queixa de memória.

Em meados de maio de 2003, AL conta que antes do acidente costumava mentir muito, como se tivesse "várias personalidades"44. Na época, tinha que manter um alto grau de concentração para não cair em contradição em relação às histórias que inventava. Após o acidente não mentiu mais. Evita, assim, pessoas que o lembrem "daquele" passado e acrescenta: "eu era trouxa; as pessoas se aproveitavam de mim". Naquela semana AL havia reencontrado uma velha amiga que sabia de coisas íntimas de sua vida, contadas por ele logo após o acidente. Ele de nada se recorda. Na mesma noite do encontro, surpreso com a revelação, anotou em um papel as principais confidências. Foi a primeira vez que AL fez uso da escrita como forma de registro de sua história. Mais tarde escreve essas notas em sua agenda [Dado 2].

Dado 2: Notas na agenda em 27/05/2003 que foram lidas e comentadas na sessão do dia seguinte.

DIA NÃO FIS NADA .

HÁ NOITE LIGUEI PARA UMA AMIGA QUE FASIA TEMPO QUE NÃO FALAVA COM ELA, E ELA ME DIÇE ALGUMA COISAS QUE FALEI PARA ELA HÁ UM

TEMPO ATRAIS, QUE EU FIQUEI ASSUSTADO. COISA MUITO INTIM .

COM DISLEPISIA , MENTIRA , QUERER SER SUPERIOR AOS AMIGOS, PORISSO ME ENVOLVIA COM A POLICIA

SALA DE AULA FICAVA CONSTRANGIDO QUERER SABER TUDO SOBRE SEXO QUANDO A PROFESSORA MANDAVA LER E ESCREVER NA LOUSA ...

Seu desabafo para a amiga toca em duas questões fundamentais. A primeira delas diz respeito à dislexia e o que dela decorre, aí incluído o constrangimento que sente ao se deparar com

situações em que é obrigado a ler e a escrever em público. Mesmo depois de tantos anos e de ter passado pelo sofrimento do acidente essas lembranças não o abandonam. Por outro lado, sentir-se “constrangido” é sinal de que AL está lidando com a SF: em geral, sujeitos com SF não se importam com esse tipo de desconforto. A segunda questão está relacionada ao fato de AL contar “mentiras” para os amigos. Na tentativa de se mostrar “superior” aproxima-se de policiais – com os quais mantém um certo relacionamento social – provavelmente, para mostrar aos outros que tem prestígio. O acúmulo de histórias inverídicas demanda um grande esforço psico-afetivo e psíquico: é preciso relacionar constantemente diferentes histórias a diferentes interlocutores.

Esse tipo de dificuldade em lidar com regras de conduta, embora encontrada corriqueiramente em diversos círculos sociais, é descrito na literatura como freqüente em casos de lesões do lobo frontal. O célebre caso de Phineas P. Gage ocorrido em 1848 e retomado por Hanna Damásio nos anos 90 é emblemático. Devido a uma perfuração no crânio por uma barra de ferro Gage sofreu uma extensa lesão nos lobos frontais, responsável por uma reviravolta em sua personalidade, embora seu restabelecimento físico tenha sido completo: Gage deixou de ser Gage, diziam seus amigos.

"Mostrava-se agora caprichoso, irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles entravam em conflito com seus desejos, por vezes determinadamente obstinado, outros ainda caprichoso e vacilante, fazendo muitos planos para ações futuras que tão facilmente eram concebidos como abandonados" [Damásio, 1994/96, p. 28].

Curiosamente, no entanto, no caso de AL, o que se observa, é um "Gage às avessas", como se pode ver no Dado 1 [linhas 10 e 12]. AL desenvolveu uma "ética pós-trauma": começa a tomar ciência de seu antigo comportamento e a se dar conta das ocasiões em que tende a repeti-lo nessa nova fase de sua vida45. Ele se surpreende com as revelações que fez à amiga: “(...) EU FIQUEI ASSUSTADO. COISA MUITO INTIM”.

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Como se verá no capítulo 3 a repetição é uma tendência do aparelho psíquico, segundo as formulações de Freud [1895/1990].

Os problemas de memória aparecem agora sob uma nova roupagem. É possível que AL evite lembrar de fatos e acontecimentos que lhe causam algum tipo de desprazer [Freud, 1895/1990]46.

Esse desprazer talvez esteja relacionado ao fato de manter – de alguma maneira – duas memórias autobiográficas que concorrem entre si: uma que se refere à sua vida de fato – filho de um casal de origem humilde e de pouca escolaridade, com uma história de insucesso escolar, marcada por um diagnóstico que lhe tirou a oportunidade de continuar seus estudos – e outra, recorrentemente reconstruída (e, portanto, “mal registrada”) em que figura como uma pessoa destemida, ousada, valente, bem sucedida, bem relacionada. Ele não gosta de lembrar de quem de fato é e, ao mesmo tempo, ele não consegue se lembrar de todos os ‘ALs’ que construiu para si e para os outros.

Como recuperar o AL de antes do acidente – do ponto de vista clínico – e ajudá-lo a reconstruir sua memória autobiográfica e, portanto, sua subjetividade? Esse parece ser o ponto de angústia de AL que o leva - recorrentemente - ao esquecimento de fatos vividos e, paradoxalmente, reforça a idéia de que hoje ele está "diferente", liberando aquilo que Freud denomina de "desprazer contínuo" [Freud, 1898].

Recorrendo ao exercício dialógico da linguagem - especialmente por meio da escrita - AL começa, pouco a pouco, a reconstruir fatos já vividos ao mesmo tempo em que registra novos acontecimentos relacionados à sua vida. Para dar início a acompanhamento clínico, sugeri que AL usasse uma agenda dessas comuns que quase todas as pessoas usam para fazer anotações de suas incumbências diárias: compromissos de trabalho, acontecimentos sociais, obrigações financeiras, consultas médicas etc.

A agenda é um certo gênero de discurso [Bakhtin, 1952-53/97] - um tipo mais ou menos estável de enunciado que se dá em uma esfera de utilização da língua, ligado a ações humanas significativas47 – que foi com o uso clínico pouco a pouco transformado, dando lugar a “textos

intermediários” [Dolz e Schneuwly, 1996]. Basta uma rápida espiada em sua agenda para constatar

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No “Projeto para uma Psicologia Científica” de 1895 Freud tematiza sobre o prazer/desprazer como constitutivas do funcionamento do aparelho psíquico desde o nascimento do bebê, como se verá no Capítulo 3. Anos depois - já na sua fase psicanalítica – o autor retoma essa questão e a relaciona ao esquecimento. Sobre o esquecimento de nomes, por exemplo, Freud diz que não se pode tratar o fenômeno como algo acidental: há, quase sempre, a influência de um "motivo", de um conteúdo que é "reprimido" [Freud, 1969; p. 16].

47 O autor trata de dois tipos de gêneros, os primários e os secundários. Os primários se constituem em

circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea, e os secundários, em situações de comunicação cultural mais complexas. Estes últimos absorvem e transformam os primeiros. Como exemplos de gêneros do discurso o autor cita, entre vários, crônicas; contratos; textos legislativos; documentos oficiais; escritos literários, científicos e ideológicos; cartas oficiais e pessoais; a linguagem das reuniões sociais, da família e do cotidiano [Bakhtin, 1952-53/97].

uma grande transformação nas anotações de AL. Daí a adjetivação de mágica que a agenda de AL ganhou, numa alusão ao texto de Freud, "Uma nota sobre o bloco mágico", datado de 1925 [1924]48, que será retomado no capítulo 4.

A agenda, em poucas palavras, dá um espaço ao tempo - nesse caso - um certo critério que ajuda AL a selecionar o que registrar e, ao mesmo tempo, instaura o passado e o futuro no presente: permite a ele rever o que já passou e projetar o que pode ser feito e registrado num futuro relativamente próximo.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 51-56)