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Os estudos freudianos e o caso de AL

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 93-98)

Antes de prosseguir, é conveniente assinalar as principais contribuições do neurofisiologista Freud para o acompanhamento clínico do caso de AL.

Já no texto da Afasia Freud faz ver que uma lesão cerebral é sempre acompanhada por uma modificação funcional. A lesão, portanto, não é diretamente destrutiva, o que significa que seu impacto pode ser bem mais abrangente do que a visão localizacionista de sua época supunha. Com base nessa afirmação se pode conjeturar – análogo ao que Freud fez a respeito da afasia do tipo agnósica – que as lesões frontal bilateral e parietal à direita de AL produziram uma modificação funcional com repercussões no aparelho de linguagem. Essa hipótese parece razoável se se considera a lentificação neuropsíquica que caracteriza o quadro clínico de AL e influencia o modo como põe em funcionamento a língua em diferentes situações discursivas.

A lesão, possivelmente, também produziu efeitos na leitura e na escrita. Não quero com isso dizer que houve uma desintegração da representação-de-palavra, afetando as associações entre seus elementos visuais (nesse caso, da ordem da leitura e da escrita), acústicos e motores (da ordem da grafia). Essa superassociação (ler e escrever) não foi satisfatoriamente estabelecida à época em que foi adquirida por AL, durante a escolarização, o que também não quer dizer que ele seja disléxico. Estou convencida de que este diagnóstico é um equívoco. O uso restrito (e restritivo) da leitura e da escrita durante todos esses anos, até o episódio neurológico, nunca foi de fato tratado: AL abandonou a escola e se dedicou a atividades profissionais que pouco usam a leitura e a escrita. Os efeitos funcionais a que me refiro não se sobrepõem a uma alteração funcional anterior. Tais efeitos são ainda mais remotos e de outra ordem. Eles se revelam na relação do sujeito com a leitura e com a escrita: uma relação que antes da lesão já não era produtiva. A marca da lesão dá ao diagnóstico do passado concretude, eximindo AL uma vez mais do papel de sujeito escrevente e de sujeito de sua própria história. Veja-se o que confidencia – a si mesmo e a mim – em sua agenda:

Dado 5: – Anotação na agenda dos principais acontecimentos daquele dia [30/06/2003]

NÃO CONSEGUI DINOVO , ULTIMO DIA DO MÊS BANCO CHEIO E MUITA CONTA PARA PAGAR.

FIQUEI DAS 10:30 HORAS ATÉ 16:30 HORAS NOS BANCOS, FOI TORTURA .

MAIS NÃO É.

À NOITE MEU PRIMO DISSE QUE NÃO IA JOGAR BOLA E PEDIO PARA MIM JOGAR NO LUGAR DELE;

FIQUEI COM MUITO MEDO MAS FUI, PUIS MEU TENES, MEU CHORTES E FUI JOGAR. JOGUEI O TEMPO TODO, ATÉ QUE JOGUEI BEM, FIZ UM GOL DEI MUITA RISADA ...

PERCEBI QUE TENHO MUITO MEDO DAS COISAS E ACABO APROVEITANDO O ACIDENTE PARA DAR DESCULPAS...

Repare-se que AL começa sua anotação fazendo uma réplica à anotação de Imc feita semanas antes. Mais uma vez, faltara à sessão do CCA. É interessante observar como ele receia que o outro não acredite no que ele diz - “QUANDO FALO DOS BANCOS PARECE MENTIRA MAIS NÃO É” - e como sua justificativa é pragmaticamente legítima.

Mas, veja-se o que mais AL escreve. A última frase, possivelmente, foi escrita depois de ter feito as anotações anteriores, considerando a mudança da cor da tinta da caneta. Feliz com seu retorno ao futebol – ele passara semanas assistindo aos jogos dos amigos (fato registrado nos dias 12/05/2003, 19/05/2003, 23/06/2003) – repensa quais motivos o impedem de voltar a jogar bola e conclui: “(...) ACABO APROVEITANDO O ACIDENTE PARA DAR DESCULPAS...”. Mas como ele chega a isso?

Assumir o lugar de espectador dos jogos disputados pelos amigos reforça sua condição de incapaz e banido do grupo. Reassumir seu lugar de jogador – correr, driblar, suar, comemorar, reclamar – é uma maneira corporal de rememorar: como se posicionar em campo, roubar a bola do adversário, driblar, dar um passe, chutar em gol. Uma lembrança que desperta uma sensação de prazer e que o re-insere em práticas sociais das quais, percebe então, ele mesmo se exclui, usando o acidente como desculpa. O retorno ao futebol tem, assim, um efeito restaurador do ponto de vista clínico.

Freud [1895/1990] considera as experiências de prazer e de desprazer – as quais chamarei de experiências psico-afetivas - como constitutivas do funcionamento psíquico. Percepção, memória, pensamento, linguagem e suas relações se ancoram em um permanente intercâmbio entre as necessidades de um corpo próprio – que busca a satisfação - e as exigências do mundo. Todo e qualquer processo psíquico é motivado pela busca do prazer que, paradoxalmente, tem sua

origem no desprazer. Talvez aí resida a chave para o insucesso de AL em relação à leitura e à escrita. O desprazer que as lembranças dos tempos da escola provocam – a professora que o destratava verbal e fisicamente, a vergonha diante dos colegas, o fracasso diante das letras – ainda faz com que ele se esquive de práticas sociais que envolvam atividades de leitura ou de escrita.

Freud concebe o aparelho de linguagem no texto da “Afasia” [1891/1973] como um aparelho equipado para associações (que vão além do território da própria linguagem) que se dão por meio de múltiplos trajetos (sendo que alguns têm preferência sobre outros) que deixam atrás de si modificações funcionais que podem ser recordadas. Toda modificação implica um rearranjo, segundo novas condições, uma reescrição: um processo, como se viu, que não ocorre apenas na presença de uma lesão, mas que é constitutivo do funcionamento do aparelho psíquico [Freud, 1896/1990]. O aparelho de linguagem passa a ser tratado no texto de 1895, “Projeto para uma Psicologia Científica”, como um aparelho de memória.

Do texto do Projeto se pode concluir que linguagem, memória e pensamento são, em última instância, complexos de associação, isto é, processos que se estruturam de maneira análoga. Assim, é possível supor no caso clínico de AL que suas dificuldades advém da relação entre esses mesmos processos. À memória cabe o registro – dinâmico, (re)organizável, inconsciente e reproduzível – dos traços mnêmicos; ao pensamento, a identidade entre representações e percepções que se apresentam dessemelhantes com o objetivo de significar algo do mundo real; e à linguagem, a possibilidade de tornar consciente o pensamento e, assim, permitir seu registro e sua repetição. Além disso, cabe à linguagem mediar as ações específicas em relação ao outro e em relação ao mundo. Como Freud havia preconizado no texto de 1891, há um continuum cortical e há, da mesma forma, um continuum psíquico.

Viu-se também o trabalho conjunto do eu e da atenção psíquica. Quando o eu não atua de forma inibitória ou quando sua ação não é dirigida pela atenção psíquica, a energia se transmite de maneira puramente associativa seguindo as direções das melhores facilitações possíveis, de acordo com a relação resistência versus quantidade. Tais associações logo terminam em função do fracionamento gradual de Q que se torna insuficiente para a manutenção da corrente [Freud, 1895/1990, p. 486]. Esse funcionamento acontece com todos nós, inúmeras vezes ao dia. Mas esse modo de operar ocorre ainda mais vezes com AL, já que seu problema reside, exatamente, em manter seu eu ativo.

O quadro de Síndrome Frontal (SF leve) - provocado por um traumatismo (TCE) - talvez possa ser compreendido a partir daí. Os lobos frontais cumprem um importante papel na regulação e controle de todo o funcionamento cerebral: toda e qualquer atividade intelectual provoca, nos

lobos frontais, algum tipo de atividade91

. Cabe aos lobos frontais a tarefa de planejar, monitorar e controlar a ação específica em curso. O papel dos lobos frontais é muito próximo ao papel desempenhado pelo eu, postulado por Freud como a sede pulsional do aparelho psíquico. Assim, talvez seja plausível interpretar a Síndrome Frontal como uma alteração funcional do eu.

Cabe também ao eu influenciar a repetição – uma tendência natural do funcionamento do aparelho psíquico - das experiências de prazer e de desprazer, evitando manifestações exacerbadas, seja por meio da atração de desejo primária, seja por meio do recalcamento: descarga prematura ou fuga do estímulo [Freud, 1895/1999, p. 367]. AL apresenta uma tendência a repetir certos padrões de comportamento: maneirismos em relação ao próprio corpo, fabular sobre a própria vida. A repetição pode, em outro sentido, ser uma via restauradora: se por um lado, cria caminhos ainda mais facilitados e, portanto, quase automatizados; por outro, pode instaurar novas vias associativas a depender do fluxo de energia e dos mecanismos que nele operam.

A memória, tal como Freud a descreve [1895/1990, 1896/1990], registra as vivências do sujeito e é, portanto, passível de modificações ao longo da vida. Corpo e mundo se relacionam em virtude do que pode ser recordado e, portanto, repetido. O que se lembra é, em certa medida, ajustado às necessidades do sujeito e à realidade objetiva: os registros são selecionados em virtude da atuação do eu que tem sua atenção voltada para os signos de realidade, sejam eles de natureza perceptual ou lingüística. Assim conteúdos relembrados ou pensados se tornam conscientes. O funcionamento da memória depende não só da integridade do aparato neurofisiológico para regular o grau de resistência das barreiras de contato, mas também de um eu ativo - orientado pela atenção psíquica – para inibir níveis elevados de prazer e desprazer, selecionar os melhores trajetos, direcionar as catexias. A lesão de AL tanto pode ter alterado o funcionamento do eu, quanto pode ter interrompido feixes de associações. Nos dois casos o sintoma geral pode ser a não recordação, o que não significa o apagamento dos registros dessas vivências.

Um último ponto. Se houve de fato regressão da lesão – comprovada por técnicas de diagnóstico médico por imagem – isto não significa, necessariamente, que a alteração funcional por ela causada tenha regredido em igual proporção. Freud mostra no estudo sobre a Afasia que a parafasia – considerada por Wernicke como sintoma de uma afasia de condução - é um fenômeno puramente funcional que ocorre também na ausência de lesão quando o aparato neurológico está, por alguma razão, funcionando sob condições não “ideais”, como no caso de fadiga ou divisão de

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atenção [Freud, 1891/1973, p. 29-30]. Viu-se no capítulo anterior que a síndrome pós-concussional pode interferir nas condições de funcionamento do cérebro provocando alterações que afetam a vida do sujeito. Os estudos neurológicos freudianos podem servir de base explicativa para fenômenos desse tipo que ainda hoje são creditados a transtornos psicológicos ou psiquiátricos corroborando uma dicotomia entre mente e corpo – já ultrapassada pelo autor no século XIX – e que em nada auxilia o acompanhamento clínico.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 93-98)