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Jakobson e a Neurolingüística discursiva

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 105-110)

Jakobson foi um dos primeiros lingüistas a se interessar pelo fenômeno afásico e a reivindicar que o estudo de qualquer dificuldade de comunicação deve em primeiro lugar “compreender a natureza e a estrutura do modo particular de comunicação que cessou de funcionar” [Jakobson, 1969, p. 34]. É exatamente sobre esse ponto particular – explicar o modo como o sistema da língua se organiza – que seu trabalho contribui de forma importante para os estudos neurolingüísticos discursivos que correlacionam essa noção ao uso da língua sob orientação de fatores ântropo-culturais de uma dada comunidade lingüística, partindo de uma visão abrangente e pública de linguagem.

Tem importância para a Neurolingüística discursiva, sobretudo, a noção de organização hierárquica do sistema lingüístico, tal como Jakobson descreve, que serve à compreensão não só das afasias, como também de diferentes tipos de dificuldades lingüísticas101, entre elas, a denominada dislexia, como se verá mais além.

Um nível hierárquico é qualitativa e estruturalmente diferente de outro e há, entre eles, uma “superposição de contextos cada vez maiores” [Jakobson, 1955/1970, p. 52]. Cada nível – fonético- fonológico, sintático, semântico, pragmático – tem, ele mesmo, uma organização hierárquica

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Jakobson vai ainda mais longe ao afirmar que a competição entre esses dois modos de operação – metafórico e metonímico – se exibe em todo processo simbólico, seja ele subjetivo ou social – e cita a obra “A Interpretação dos Sonhos” de Freud [1900] na qual a questão central é saber se os símbolos e as seqüências temporais se baseiam na contigüidade ou na similaridade [Jakobson, 1969, p. 61].

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No decorrer do curso LL362A, ministrado pela Profª Coudry no 2º semestre de 2003, tivemos a oportunidade interpretar dados-achados de sujeitos em processo demencial (Doença de Huntington), deficientes mentais, síndrome frontal, além de diferentes configurações de afasia, usando a noção do funcionamento bipolar da linguagem de forma bastante produtiva.

própria: a ordem dos fonemas que compõem uma palavra, por exemplo, é já uma sintaxe. Quando há desintegração de um dos níveis o funcionamento dos demais é afetado, o que explica a “redistribuição das funções lingüísticas”, observada por Jakobson na afasia [Jakobson, 1955/1970, p. 43]. É tomando como referência esse conceito que Coudry [2002a] afirma que

“(...) a afasia se constitui, pois, de alterações em processos de significação relacionados aos níveis lingüísticos e as suas relações e interfaces” [Coudry, op. cit., p. 84].

Coudry [2002b] vai além em suas interpretações de Jakobson na área de Neurolingüística afirmando que, além da prevalência de funcionamento de um eixo na afasia, há projeção desse eixo sobre o outro. Isto que dizer que, embora o “déficit primário” - para usar uma expressão de Luria - possa atingir um dos eixos em especial, o seu mau funcionamento acarreta um re-arranjo do outro eixo, que pode ser interpretado também como uma redistribuição do modo de funcionamento da língua. Se se observa o modo como o afásico faz uso da língua que lhe resta - quando inserido em práticas significativas que permitem que ele atue como sujeito da linguagem e não mero usuário de uma língua – se pode ver a complexidade que existe (e que, às vezes, se esconde) na alternação entre os dois eixos que organizam o sistema. Com esse propósito, apresento um dado-achado relatado em Abaurre e Coudry [2005] ocorrido em um dos encontros semanais realizados no CCA102:

“LS apresentou seguidas dificuldades (expressas por parafasias) de dizer a palavra eclipse ao contar a seu interlocutor que tinha visto o eclipse da véspera. O que fez? (...) Pôs, então, no papel três coisas para fazer sentido: escreveu E, tirou um clipe103 da agenda de seu interlocutor e juntou-o ao E já escrito” [Abaurre e

Coudry, op. cit.].

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O CCA ou Centro de Convivência de Afásicos (CCA) funciona no IEL/ Unicamp e dele participam sujeitos cérebro-lesados em acompanhamento e pesquisadores, com o objetivo de vivenciarem situações de uso sócio- cultural da linguagem em diferentes contextos cognitivos e enunciativos. Em alguns períodos do meu doutoramento acompanhei o Grupo II, sob responsabilidade da Profª Coudry.

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SL é engenheiro e poeta104. Apresenta dificuldades em selecionar as unidades fônicas (eixo paradigmático), mas consegue selecionar – via escrita - o início da palavra que pretende dizer – [e] de “eclipse” - sem completá-la. Sabe que o objeto que vê preso à agenda de seu interlocutor é pronunciado como [kli’pis]105, semelhante à parte da palavra “eclipse” que tenta produzir sem sucesso. Sabe que as duas palavras – eclipse e clipe – pertencem ao repertório de seus interlocutores. É pelo eixo sintagmático que SL analisa o contexto verbal da palavra que deseja dizer e é capaz de segmentá-la de modo a substituir parte dela por outra, [kli’pis], sem conseguir ainda produzir oralmente nem uma, nem outra. Faz então uma nova substituição ao colocar no lugar do que não consegue dizer o objeto clipe, combinando-o à escrita da letra E: letra e objeto ordenados dizem por ele o que ele não consegue dizer.

Das dificuldades apresentadas pelo afásico com distúrbio de similaridade, enumeradas por Jakobson [1955/1970], duas delas chamam a atenção em relação ao dado de SL: (i) não substituir um elemento da língua por outro com base em suas semelhanças e (ii) não fazer a transposição de um sistema de sinais para outro. Ora, de certa forma, SL faz as duas coisas: (i) ao substituir “eclipse” pela expressão ordenada E + objeto “clipis”, dada a semelhança de fonetização entre elas e (ii) ao substituir um elemento da língua (a palavra “clipis”) pelo objeto “clipis”, considerando o mundo dos objetos e das coisas como um sistema não verbal. Dessa perspectiva, pode-se dizer que o eixo paradigmático mesmo enfraquecido mantém relações com o sintagmático, cuja integridade permite tanto a análise do contexto verbal em curso de modo a ancorar seleções (que não chegam a se efetivar verbalmente, nem pela oralidade, nem pela escrita) que se relacionam com o não verbal, quanto a combinação dos elementos (verbal e não verbal previamente selecionados) na ordem da língua. É para essa projeção – do funcionamento de um eixo sobre o funcionamento do outro – que Coudry chama a nossa atenção.

É, portanto, na relação do sistema da língua com outros sistemas de base semiótica e na relação de ambos com as condições de produção do enunciado que SL acha a saída – por meio de uma operação de natureza mentonímica - para significar o que pretende, fazendo uso de seu

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Desde o episódio neurológico que o deixou afásico, SL não escrevia mais poesias. Voltou a escrevê-las em meados de 2004 e hoje é membro da Academia Campinense de Letras. Como faz para escrever? Devido a sua prodigiosa inteligência, SL descobriu uma estratégia para prover aquilo que lhe falta, o eixo paradigmático: aciona o dicionário Houaiss – instalado em seu computador - e seleciona as palavras e rimas que deseja.

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O nome dicionarizado (e, portanto, sua forma escrita) do objeto a que me refiro é clipe, mas é a sua pronúncia usual [kli’pis] que interessa aos propósitos de SL. Por essa razão uso aqui tanto a forma dicionarizada quanto a sua transcrição fonética.

aparelho perceptual106. Sob tais circunstâncias se pode ver aquilo que Franchi [1977/92] denomina de “criatividade” da linguagem. Por ser a linguagem um sistema aberto e criativo e, por isso, “disponível ao atendimento das necessidades e intenções das mais variadas condições de comunicação” [Franchi, 1977/92, p. 26] é que o afásico pode colocar em funcionamento o que lhe resta do sistema lingüístico integrando-o a outros sistemas, o que lhe permite expressar seu querer-dizer.

Outra contribuição importante do trabalho de Jakobson para a Neurolingüística discursiva diz respeito à possibilidade de se reinterpretar a denominada dislexia. Como? Supondo que a dislexia de fato exista como um quadro semiológico, heterogêneo, cujas causas – sempre múltiplas – são mal definidas, que não se confunde sob nenhuma hipótese com outras dificuldades de leitura e escrita – como as apresentadas por AL - que têm origem (e se propagam inadvertidamente) em equívocos escolares provocados pela adoção de uma visão estreita de linguagem, de sujeito e de funcionamento cerebral é que considero a formulação de organização bipolar da linguagem aliada à visão discursiva de linguagem, uma via produtiva para reinterpretar e, conseqüentemente, explicar os denominados sintomas de dislexia.

Essa via explicativa supõe por um lado, uma relação entre formas lingüísticas e sentidos relativamente estável (a língua) e, por outro, a insuficiência dos recursos expressivos para veicular o sentido (a “indeterminação da linguagem”, nos moldes de Franchi [1977/92]) sendo necessário considerar outros fatores, externos à língua, as condições de produção de discurso. Não se pode esquecer que assim como aprender a falar pressupõe o ajuste sinérgico de uma série de estruturas do aparelho fonador do sujeito - abertura dos lábios, posicionamento da língua, coordenação pneumo-fônica, etc. – também a escrita pressupõe o trabalho coordenado de vários processos psíquicos – percepção visual, percepção espacial, gestualidade – com os quais a língua mantém uma vinculação estreita. Todo esse trabalho é comandado por um cérebro que funciona de maneira dinâmica, que convoca a participação integrada de diferentes subsistemas. O sujeito, portanto, tem um cérebro que controla a fala e a escrita (e muitas outras coisas) sob condições históricas, dentro de certos limites ditados por parâmetros sócio-culturais de sua comunidade lingüística.

A explicação de Jakobson [1955/1970; 1969] a respeito da organização bipolar da linguagem, pode ser aplicada de forma produtiva ao sistema de escrita alfabética. Também esse sistema se organiza em função de séries de seleções e combinações intercaladas em cada nível hierárquico

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Daí Freud conceber o aparelho de linguagem como um aparato equipado para associações que vão além do território da linguagem [Freud, 1891/1973].

que resulta, para cada um deles, em um repertório de complexidade crescente (letras possíveis, marcas morfológicas, itens lexicais, regras sintáticas próprias da enunciação escrita) e que funciona de maneira integrada no exercício da linguagem escrita (o conjunto de letras é condição de possibilidade dos arranjos morfossintáticos que, por sua vez, possibilitam a formação de palavras e assim sucessivamente). Oralidade e escrita compõem um único sistema que se materializa por meio de formas próprias de enunciação: sons e letras.

O trabalho do sujeito com e sobre o sistema de escrita alfabético pode (também) ser descrito como uma sucessão de seleções e combinações balizada por fatores histórico-culturais. Esse deslocamento pelos dois eixos é da ordem do sistema da língua, vinculado a outros processos psíquicos, a percepção visual, espacial, gestualidade. Dificuldades no deslocamento em si e/ou na sua relação com esses processos psíquicos podem ajudar no entendimento da dislexia. Retomem- se alguns sintomas descritos por Condemarín e Blomquist [1970/86] como típicos de um quadro de dislexia que podem ser produtivamente interpretados desse ponto de vista [Quadro 9]:

Quadro 9 - reinterpretação de alguns (supostos) sintomas do quadro de dislexia.

Sintomas típicos do quadro de dislexia Eixo envolvido

confusão de letras, sílabas ou palavras com diferenças sutis quanto à ortografia (a-o; c-ch; c-o; e-c; f-t; h-n; i-j; m-n; v-u...)

dificuldade na seleção de letras que têm um formato semelhante

relação entre a linguagem escrita e a percepção visual Sílabas ou palavras com grafia similar, mas com

orientação no espaço diferente (b-d; b-p; d-b; d-q; n- u; w-m)

dificuldade na seleção de letras que têm um formato semelhante

relação entre a linguagem escrita, a percepção visual e a espacial

confusão de letras cujas leituras têm ponto de articulação comum e cujos sons são próximos (d-t; b- p; f-v...)

dificuldade na seleção de unidades fônicas que envolvem traços distintivos semelhantes e na sua relação com a letra que lhe representa

relação entre o sistema fonético-fonológico e o sistema alfabético

inversão parcial ou total de sílabas ou palavras (malas-lamas; sol-los; ao-oa; uma-amu...)

dificuldade na combinação dos elementos que compõem uma unidade, em diferentes níveis de organização (sílaba, palavra)

Relação entre o sistema fonético-fonológico e análise/síntese visuais

contaminação de sons dificuldade relacionada ao trânsito entre os dois eixos Adição ou substituição de sons, sílabas ou palavras

(camisa-cama; famoso-fama); repetição de sílabas, palavras ou frase

dificuldade relacionada à combinação dos elementos que constituem uma unidade de sentido

Falar, ler, escrever, portanto, implicam o uso de um sistema que se organiza em função de um repertório próprio da língua - de sons e de letras – que recursivamente origina um conjunto de recursos expressivos que podem ser combinados de múltiplas maneiras em função de restrições de, pelo menos, dois tipos: (i) aquelas ditadas pelo próprio sistema, (ii) as que resultam da relação desse sistema com outros sistemas não verbais (processos psíquicos perceptivos e corporais):

“Dado que nenhum falante age nem o evento discursivo é produzido em estado puro, a significação é sempre o resultado de um ‘sistema de sistemas’, na feliz expressão de Eco [1979]. Ao falar e ao ouvir, aciona-se um ‘sistema’ lingüístico- verbal e outros sistemas (das boas maneiras, da hierarquia entre os falantes, das suposições derivadas do conhecimento mútuo, enfim, da cultura, sem excluir necessariamente instâncias como o inconsciente e a ideologia – todos históricos). Cada um interfere de alguma forma nos outros, colabora para constituí-lo a longo prazo. E, a curto prazo, no evento discursivo, são ingredientes relevantes para produzir significações. Saber manipulá-los adequadamente é uma das características de sujeitos ‘normais’ numa cultura. Não saber denuncia uma ‘falta’: ou um estágio de aquisição (o falante é estrangeiro ou é criança) ou uma forma de perda (o falante sofreu uma lesão)” [Possenti, 1992, p. 76-77].

Por fim, vale reafirmar a importância da teorização de Jakobson para a prática clínica com afásicos e com sujeitos com outros tipos de dificuldades lingüísticas e psíquicas. A compreensão da organização do sistema lingüístico indica um caminho produtivo de intervenção, qual seja, o de prover meios para que o sujeito possa encontrar formas alternativas de suprir o mau funcionamento de um eixo – por meio do outro - ou recuperar o trânsito entre eles. Esse tipo de estratégia clínica, do ponto de vista discursivo, se pauta em um movimento contínuo entre a linguagem, a memória, o corpo e os processos perceptivos - possibilitado pela dialogia - como meio de reconstruir a linguagem que pode estar, em diferentes níveis, impedida.

No documento Agenda magica : linguagem e memoria (páginas 105-110)