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CAPÍTULO 3 A ARBITRAGEM, TEORIA DOS SISTEMAS E ACESSO À

3.2 A arbitragem como subsistema social autônomo

A arbitragem é um meio de solução de controvérsias alternativo ao Judiciário e com este não se confunde. Contudo, constitui a arbitragem um subsistema próprio dentro da teoria dos sistemas de Luhmann?

Como visto, para ser considerado um sistema, o objeto de estudo deve ter:

(i) capacidade de autocomposição mediante instrumentos próprios (fechamento operacional);

(ii) ter contato e trocar mútuas influências com o ambiente que o cerca (abertura cognitiva).

O processo arbitral, até pelas suas origens históricas, possui essa autonomia sistêmica. Engana-se quem pensa que a arbitragem é uma mera réplica do sistema processual estatal na esfera privada.

No campo da arbitragem internacional, especialmente, desde o princípio, a ideia dos seus criadores foi a de formar um sistema autônomo que se distanciasse dos sistemas estatais e só tivesse com eles contatos esporádicos, especialmente no tocante à imposição de sanções. Vejamos o

58 que diz George Ridgeway126 ao mencionar sobre a história da corte arbitral da Câmara de Comércio Internacional de Paris (CCI):

The development of commercial arbitration, however, has grown up within the organization of private business itself without government aid; its contact with the state has clearly involved merely the recognition of its own handiwork in the form of legal sanction for private arbitration. Thus the system of international commercial arbitration has never been primarily dependent upon legal sanctions. It has rather relied upon the general realization by business men of the inadequacy of ordinary legal procedure in meeting the requirements of rapidity and precision necessitated by the character of present-day commercial disputes.127

É bem verdade que a semelhança entre o sistema judicial e o arbitral em alguns aspectos é tamanha que em alguns países a arbitragem é vista como extensão do sistema jurídico estatal, conforme aponta Eric Bergsten:128

In some countries, particularly in Latin America and in England, arbitration was traditionally seen as an extension of the State system of litigation. In such an atmosphere the procedure followed in arbitration was necessarily closely modelled on the procedure followed in litigation in the courts. Even where arbitration was not seen as an extension of the State system of litigation, and the law did not require the local court procedure to be followed in arbitration, the habits developed by lawyers in the courts were carried over into arbitration.129

126 RIDGEWAY, George. The Merchants of Peace: twenty years of business diplomacy through

the International Chamber of Commerce. New York : Columbia University Press, 1938. p. 317.

127Tradução livre: “O desenvolvimento da arbitragem comercial internacional, contudo, cresceu

com a auto-organização dos negócios privados, sem qualquer ajuda estatal; seu contato com o Estado envolveu meramente o reconhecimento da efetividade do seu próprio trabalho, por meio de sanções legais para as arbitragens privadas. Portanto, o sistema da arbitragem comercial internacional nunca foi primariamente dependente de sanções legais. Ele mais se apoia na percepção geral dos homens de negócios de que o processo legal comum é inadequado para atender os requisitos de celeridade e precisão necessitados pelas disputas comerciais contemporâneas”.

128 BERGSTEN, Eric. International Commercial Arbitration. Disponível em:

<http://unctad.org/es/Docs/edmmisc232add38_en.pdf>. Acesso em: 12 out. 2014.

129 Tradução livre

: “Em alguns países, como na América Latina e na Inglaterra, a arbitragem era tradicionalmente vista como uma extensão do sistema estatal de litígios. Em tal atmosfera, o processo seguido na arbitragem era necessariamente intimamente modelado pelo processo seguido nas cortes estatais. Mesmo quando a arbitragem não era vista como uma extensão do sistema estatal de litígios, e a lei não requeria que o procedimento das cortes locais fosse seguido pela arbitragem, os hábitos desenvolvidos pelos advogados nas Cortes estatais eram levados para a arbitragem” (p. 19).

59 Contudo, apesar da semelhança, a arbitragem possui autonomia sistêmica em relação ao Judiciário, constituindo-se em um sistema próprio. No dizer de Eduardo Parente,130 “a forma com que o procedimento arbitral é constituído demonstra também o fechamento operacional do seu sistema, diferindo por completo do sistema estatal”.

O processo arbitral é realmente bem diferente do judicial. Primeiro, ele tem seu fundamento de validade na autonomia das vontades, e não no contrato social que liga todos os cidadãos à solução judicial estatal. Ele ainda se inicia com a aceitação do encargo pelo(s) árbitro(s), nos termos do art. 19 da Lei de Arbitragem, e não por meio de petição inicial.

Além disso, por ser um processo totalmente baseado na autonomia da vontade, possuindo uma flexibilidade131 no procedimento e na forma de decidir, inexistentes nos demais sistemas processuais.

Podemos ainda destacar que o processo arbitral em geral é regido por regulamentos das instituições que administram os procedimentos, que são verdadeiras continuidades ou complementações das cláusulas compromissórias, tornando o processo algo bem distinto do que se verifica no processo estatal, regido pelo Código de Processo Civil e tradicionalmente dominado por dogmas.

Registre-se que, no tocante ao fechamento operacional, entendemos ser até mais fácil concluir que a arbitragem é um sistema em si, do que chegar à mesma conclusão sobre o processo civil, por exemplo.

130 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p.

53.

131 Eduardo Parente (Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p. 50) critica a

expressão “flexibilizar” usada para se referir ao procedimento arbitral. Segundo ele, “no processo arbitral, embora também integrante de teoria geral do processo, como o estatal, consideramos que ‘flexibilizar’ talvez não seja a melhor expressão a ser empregada. Em razão certamente de princípios que o informam, parece-nos mais adequado falar de uma natural flexibilidade do processo arbitral. É uma característica inerente, nata, uma marca clara. Algo que decorre do fechamento operacional do sistema arbitral”.

60 Com efeito, no processo civil estatal os instrumentos são produzidos pelo sistema legislativo estatal. O processo civil, mesmo sendo um microssistema do sistema legislativo, com ele não se confunde. O processo estatal nos parece muito mais atrelado à lei do que o arbitral, o que o torna menos autônomo.

No que diz respeito à arbitragem internacional, esta é ainda mais autônoma, havendo uma clara necessidade de ser completamente desvinculada dos sistemas processuais nacionais, de forma a garantir a sua independência de ordenamentos locais, um de seus fundamentos mais elementares.

Irineu Strenger,132 ao falar da arbitragem internacional, leciona:

[...] juízes profissionais não estatais e sanções não estatais, têm os componentes de um sistema de direito próprio, distinto e diferente do sistema nacional, mas a sua imagem enquanto sistema, quer dizer, do ponto de vista daquele que caracteriza todo sistema de direito. No exterior, a opinião da doutrina mais avalizada é no mesmo sentido, com Jean-Baptiste Racine133 afirmando que:

Que signifie l’autonomie de l’arbitrage commercial international? Il est possible d’expliquer cette autonomie par l’existance d’un ordre juridique arbitral. L’arbitrage commercial international est un effet un système de justice qui se pense et qui se pratique de manière autonome.134

Um dos autores que trata do tema, Jonathan Vita,135 chega a

inserir a arbitragem internacional em um contexto não jurisdicional, sustentando que:

132 STRENGER, Irineu. A arbitragem como modo de inserção de normas da lex mercatoria na

ordem estatal. Revista Brasileira de Arbitragem, n. 3, p. 9, 2004.

133 RACINE, Jean-Baptiste. Réflexions sur l’autonomie de l’arbitrage commercial international. Revue de L’arbitrage, Paris, n. 2, p. 305, 2005.

134 Tradução livre:

“O que significa a autonomia da arbitragem comercial internacional? É possível explicar essa autonomia pela existência de uma ordem jurídica arbitral. A arbitragem comercial internacional é na verdade um sistema de justiça que se pensa e se pratica de maneira autônoma”.

135 VITA, Jonathan Barros. Os conflitos entre as estruturas normativas nas arbitragens

internacionais. In: ––––––; FINKELSTEIN, Claudio; CASADO FILHO, Napoleão. Arbitragem

61 O segundo elemento (que aflora da natureza não natureza jurídica de jurisdição da arbitragem) é a capacidade da arbitragem de não se vincular diretamente a uma ordem jurídica, pela não atração da soberania, isolando-se, em um outro giro, das pressões do sistema político nacional.

Em resumo, o modo como se desenha o procedimento arbitral se coaduna com o conceito de fechamento operacional típico da teoria dos sistemas.136

O fato de as partes poderem praticamente “montar” o procedimento com alto grau de autonomia, podendo até alterar os ritos prefixados pela lei ou pelo regulamento escolhido, mostra que a arbitragem tem um ferramental próprio, caracterizador do tal fechamento operacional. Além disso, na arbitragem internacional, essa autonomia é ainda maior, apresentando clara distinção e afastamento dos procedimentos nacionais.

No que concerne à abertura cognitiva, esta também se faz presente na arbitragem. A arbitragem possui capacidade de se comunicar com os outros sistemas, trocando mútuos influxos. Eis o que assevera Eduardo Parente:137

Embora dotado de todo um aparato personalíssimo, que o distingue sobremaneira do modelo estatal, o processo arbitral não sobrevive sozinho. Ele troca mútuas influências com outros sistemas, tanto de direito processual quanto material.

Assim, a arbitragem dialoga com vários outros sistemas jurídicos. Quando as partes (ou os árbitros) escolhem a lei aplicável ao mérito, por exemplo, podem remeter o processo a uma troca de fluxos com o sistema de direito civil, por exemplo. Na arbitragem internacional, ao escolherem a aplicação da lex mercatoria, as partes vão para um sistema de autorregulação comercial do comércio internacional.

136 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p.

57.

137 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p.

62 Por seu turno, nas situações em que as partes redigem cláusula vazia,138 o diálogo se dá com o sistema do direito processual civil, uma vez que é necessário ajuizar a ação judicial prevista no art. 7.o da nossa Lei de Arbitragem para que o procedimento arbitral se inicie.

Igual troca de influxos ocorre quando o sistema arbitral busca no processo civil alguns princípios e quando, depois de concluído o procedimento, a parte procura o Judiciário para imprimir força à sentença arbitral. Fica, assim, pois, caracterizada a abertura cognitiva do processo arbitral.

Sobre o caráter sistêmico da Arbitragem, Eduardo Parente,139 concluindo seu trabalho, afirma que:

[O processo arbitral] funciona como um sistema tal qual concebido pela teoria dos sistemas. A verificação dessa assertiva fica clara em inúmeros momentos de sua evolução, ao caminhar pelo seu procedimento. Embora tenha macroestruturas semelhantes às do processo estatal, os mecanismos que o processo arbitral utiliza são bem típicos. Na maioria dos casos, ausentes no processo judicial. Mas mesmo os institutos equivalentes do processo judicial, quando presentes no processo arbitral, funcionam de maneira bastante diversa.

Enfim, dada a limitação que temos no presente trabalho em virtude do seu corte metodológico, entendemos ser bastante razoável entender que a arbitragem, nacional ou internacional, se constitui em um sistema. Tomaremos essa premissa teórica como verdadeira.

138 Cláusula vazia é aquela em que a arbitragem não consegue ser instituída sem a intervenção

do Judiciário. Sobre o tema, leciona José Emílio Nunes Pinto: “Ocorre que, não raro, nos defrontamos com situações em que, por defeitos em sua concepção original, a cláusula compromissória, ou seja, o ajuste contratual por meio do qual as partes num contrato elegem a arbitragem como meio de solução de suas controvérsias, não permite que se possa usufruir, integralmente e da forma acordada, de todos aqueles benefícios atrelados à opção pela solução arbitral. Referimo-nos à existência das denominadas cláusulas vazias e das cláusulas patológicas” (Cláusula arbitral patológica: esse mal tem cura. Disponível em: <http://ccbc.org.br/download/clausulas_arbitrais_patologicas_jenp.pdf>. Acesso em: 18 out. 2014).

139 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e sistema. São Paulo: Atlas, 2012. p.

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