• Nenhum resultado encontrado

A forma correta de se pactuar o financiamento de arbitragens

CAPÍTULO 5 O INVESTIMENTO DE TERCEIROS EM ARBITRAGENS E O

5.3 É possível financiar arbitragens no direito brasileiro?

5.3.4 A forma correta de se pactuar o financiamento de arbitragens

Um aspecto interessante do ponto de vista prático para aqueles que buscam investir em procedimentos arbitrais ou mesmo judiciais é a forma jurídica que devem revestir o ato de investimento/financiamento. Afinal, a

346 LEVY, Laurent; REGIS, Bernard. Third Party Funding. Disclosure, joinder and impact on

international procedures. In: CREMADES, Bernardo; DIMOLITSA, Antonias. Third-party funding

in International Arbitration. Dossiers – ICC, Paris, 2013. p. 85.

347 FERRO, Marcelo Roberto. O financiamento de arbitragens por terceiro e a independência do

árbitro. In: CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; WARDE JR., Walfrido J.; GUERREIRO, Carlina (Coord.). Direito empresarial: direito empresarial e outros estudos em homenagem ao Prof. José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 633.

167 maneira com que contratamos pode interferir no tratamento dado pelas cortes ao investimento.

É evidente que as partes são livres para negociar os termos do seu investimento, embora tenhamos notícias de jurisdições em que tal liberdade encontra limites, especialmente no que se refere ao pactum de quota

litis.

Podem-se pensar em algumas modalidades mais comuns de se contratar: (i) uma cessão de crédito; (ii) uma cessão de posição contratual; (iii) uma estipulação em favor de terceiros; ou uma (iv) cessão fiduciária de créditos. Abordaremos cada uma delas a seguir:

(i) Cessão de crédito

A figura da cessão de crédito tem previsão em nosso ordenamento nos artigos 286 a 298 do Código Civil, e é largamente utilizada no Direito brasileiro.

A cessão de crédito é o negócio jurídico pelo qual o credor de uma obrigação, chamado cedente, transfere a um terceiro, designado cessionário, sua posição ativa na relação obrigacional, independentemente da autorização do devedor, que é denominado cedido. É um modo de transmissão das obrigações, e essa transferência pode se dar onerosa ou gratuitamente.

A cessão de crédito possui duas modalidades: pro soluto ou pro

solvendo. Na cessão pro soluto o cedente responde pela existência e pela

legalidade do crédito, mas não pela solvência do devedor. Situação levemente distinta da modalidade pro solvendo, em que o cedente responde também pela solvência do devedor.

Se as partes optarem por contratar o investimento de terceiros pela modalidade da cessão de crédito pura e simples, acreditamos que esta deve se dar na modalidade pro soluto, uma vez que não há que falar em

168 assunção do risco do demanda exclusivamente pela parte financiada, sob pena de desnaturar a operação, deixando de ser um investimento e se transformando em um financiamento comum, conforme já exposto (Capítulo 5,

item 5.2.2).

Vale lembrar que em algumas oportunidades não será interessante às partes comunicar no procedimento arbitral a existência do Third

Party Funding, de forma que, em um evento falimentar da parte financiada, a

oposição posterior, pelo ente financiador de um crédito sobre o montante da demanda, pode ser mal vista pelo concurso de credores.

A cessão de crédito admite ainda a modalidade parcial,348 possibilitando que apenas uma parte do total do crédito seja cedida, e não sua íntegra. Tal possibilidade atende à prática do Third Party Funding Internacional que costuma cobrar da parte financiada frações menores que a metade do total do crédito.

(ii) Cessão de posição contratual

Outra forma em que se poderia pensar para operacionalizar um investimento de terceiros em um procedimento arbitral seria a cessão de posição contratual.

A cessão da posição contratual é uma modalidade de transmissão das obrigações que traz a substituição subjetiva de um dos contratantes por outra pessoa, que assume integralmente a condição jurídica no mesmo status que aquele ocupava na relação contratual. É a mudança ou a substituição de titularidade jurídica contratual, sem alteração do conteúdo jurídico da avença (substituição subjetiva do contrato).349

348 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 2. ed. São

Paulo: Saraiva, 2006. v. 2, p. 225.

349 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos

169 Na cessão da posição contratual, uma pessoa estranha à relação contratual ingressa nesta e substitui uma de suas partes que inicialmente lá estavam, ficando investido nos direitos e obrigações da parte que substituiu.

Sílvio de Salvo Venosa350 assim define o escopo da cessão de

posição contratual: “Não se trata pura e simplesmente de conceituar uma dívida, ou um conjunto de dívidas, ou um crédito, ou um conjunto de créditos; a posição contratual é tudo isso e muito mais”.

Essa modalidade de contratação, porém, não nos parece a mais apropriada para as situações de investimento mais comuns nesse mercado. Com efeito, embora não haja vedação legal, na maioria das vezes a parte cedida ao investidor é uma fração (em geral menor que a metade) do totum em disputa.

É fácil perceber a diferença para a cessão de créditos. Nesta, ocorre a transmissão do simples crédito que o cedente detém em face de outrem. Em outras palavras, são transferidos ao cessionário apenas os

elementos ativos do contrato total ou parcialmente, “mantendo-se inalterado o lado passivo da relação obrigacional”.351

Na cessão de posição contratual, ocorre a transmissão da integralidade da posição contratual, que é composta de elementos ativos e passivos. Daí a sua inadequação, a nosso ver, para a maioria dos casos de investimento/financiamento em arbitragens.

(iii) Estipulação em favor de terceiros

Essa modalidade de negócio jurídico está prevista no artigo 436 do Código Civil.352 Trata-se de modalidade de contratação muito comum na

350 Idem, ibidem, p. 357.

351 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Do contrato: teoria geral. 3. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 1987. p. 233.

170 indústria dos seguros por consistir em uma das poucas exceções ao princípio da relatividade dos contratos.353

O contrato de seguro de vida é o exemplo clássico de estipulação em favor de terceiro. O segurado firma com a seguradora uma prestação que deve ser entregue a terceiro em caso de sua morte. O segurado figura como estipulante, a seguradora como promitente e o terceiro como beneficiário, podendo exigir o cumprimento do contrato, sem que a ele seja atribuída qualquer obrigação.

Ou seja, temos três personagens claros na estipulação em favor de terceiros: o estipulante, o promitente e o beneficiário. Tal fato, em geral, não ocorre nos acordos de investimento em arbitragens, eis que firmados apenas entre um dos polos do procedimento arbitral (em geral o polo ativo) e o agente financiador.

Além disso, o agente financiador tem deveres a cumprir no contrato (custear o procedimento arbitral), sendo clara sua natureza sinalagmática. Na estipulação em favor de terceiros, o terceiro nada tem a fazer, apenas a exigir.

Assim, essa modalidade de contratação não nos parece apropriada para o investimento de terceiros em arbitragem.

(iv) Cessão fiduciária de créditos

O negócio fiduciário nos parece a forma mais apropriada para a efetivação de um investimento em procedimentos arbitrais. No Brasil, a propriedade fiduciária é reconhecida em concomitância com a propriedade que se pode dizer convencional.

Parágrafo único. Ao terceiro, em favor de quem se estipulou a obrigação, também é permitido exigi-la, ficando, todavia, sujeito às condições e normas do contrato, se a ele anuir, e o estipulante não o inovar nos termos do art. 438.

171 André Carvalho Nogueira354 afirma que o instituto da propriedade fiduciária já se sedimentou no Brasil e nos países de tradição romanística:

[...] a despeito do que diz a grande maioria da doutrina brasileira, a aceitação expressa da propriedade fiduciária em garantia em nosso sistema legal, na forma como é normatizada e aplicada no país atualmente, pressupõe a existência de dois direitos de propriedade distintos e simultâneos, em moldes muito semelhantes ao que ocorre nos sistemas de common law, e que, diferentemente do que se tem

defendido, tal dicotomia não é em si algo que ofende a lógica dos sistemas jurídicos de base romanística.

A ideia de propriedade fiduciária, desde sua consolidação no Código Civil brasileiro, tornou-se a modalidade mais utilizada por aqueles que buscam garantir a efetivação de um negócio jurídico. Curiosamente, na propriedade fiduciária, não há a simples oferta de garantia para o cumprimento e inadimplemento de dada obrigação, mas a efetiva transferência de propriedade ao credor.

É que na alienação fiduciária o fiduciário, recebendo do fiduciante a propriedade de um bem, assume a obrigação de dar a ele destinação e de restituí-lo a este uma vez atingido o objetivo enunciado da convenção.

Há um efeito dúplice produzido pelo negócio fiduciário. O primeiro efeito diz respeito à transferência da propriedade ao credor fiduciário. O segundo concerne à obrigação do fiduciário em emancipar os bens adquiridos pelo cumprimento das finalidades do negócio.355

Pode-se alegar que a alienação fiduciária só se dá em relação a bens imóveis. Entretanto, tal entendimento não mais prospera em

354 NOGUEIRA, André Carvalho. Propriedade fiduciária em garantia: o sistema dicotômico da

propriedade no Brasil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, ano 11, n. 39, p. 57, jan.-mar. 2008.

355 FIUZA, César. Alienação fiduciária em garantia. 1.ª tiragem. Rio de Janeiro: Aide, 2000. p.

172 nosso ordenamento, eis que desde 2004 há expressa previsão da possibilidade de créditos também serem objeto de alienação fiduciária em garantia.

Com a vigência da Lei 10.931/2004, que reformou a Lei 4.728/1965, permitiu-se a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e a indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito são atribuídas ao credor e se consolidam na pessoa do credor fiduciário.

Ressalte-se que, embora a lei modificada se refira a instituições financeiras, a alienação fiduciária está prevista no Código Civil, podendo ser executada por entes não financeiros. Todavia, como o Third Party

Funding é realizado em regra por Fundos de Investimentos, tal fato tende a ser

irrelevante na prática.

O fato é que a lei passou a entender que os créditos alienados fiduciariamente estão enquadrados pela lei na classificação de bens móveis, consoante disposição expressa do art. 83, inciso III, do Código Civil, o qual estabelece que são bens móveis os direitos pessoais de caráter patrimonial.

Na alienação fiduciária há a importante figura da propriedade resolúvel. Conforme ensinam Christiano Chaves e Nelson Rosenvald,356

[...] o proprietário resolúvel age como qualquer proprietário, enquanto não se verifica o evento futuro ou incerto, já que a limitação de seu direito subjetivo é apenas de ordem temporal. Ou seja, exercitará todos os poderes dominiais sobre o bem: poderá usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa em face de terceiros, concentrando em si a plenitude das faculdades.

No caso de um acordo de investimento em arbitragem, a parte investida seria o devedor fiduciante, e o investidor, o credor fiduciário. O investido permaneceria na propriedade dos créditos, mas com condição

356 FARIAS, Christiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4. ed. Rio de Janeiro:

173 resolutiva (término do procedimento arbitral ou qualquer outra pactuada no contrato de investimento).

Ao término do procedimento (ou quando da efetivação da condição resolutiva), a propriedade sobre os créditos pactuados na arbitragem se resolveria e recairia sobre o investidor, na qualidade de credor fiduciário.

Assim, parece-nos que a cessão fiduciária de créditos, que nada mais é que uma cessão de crédito acrescida e revestida da figura da alienação fiduciária, é a forma mais apropriada de se pactuar o investimento em arbitragem, sobretudo pela garantia que essa modalidade traz em relação a uma eventual falência.

5.4 O financiamento de arbitragens e a Lei de Falências e Recuperação