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CAPÍTULO 5 O INVESTIMENTO DE TERCEIROS EM ARBITRAGENS E O

5.3 É possível financiar arbitragens no direito brasileiro?

5.3.3 O dever de revelação

Um tópico que vem ganhando bastante atenção da doutrina estrangeira sobre financiamento de terceiros na arbitragem internacional é sobre o dever de revelação que a parte financiada teria no sentido de informar à outra parte sobre o fato de que está sendo financiada.

Na verdade, em boa parte dos casos, embora haja um desejo do financiador de monitorar e até mesmo de exercer certo controle sobre o

332 Caso Rompetrol Group NV vs. Romênia. Caso ICSID Arb/06/3. Sentença Arbitral disponível

em: <http://icsidreview.oxfordjournals.org/content/24/1/232.full.pdf+html>. Acesso em: 3 ago. 2014.

333“Absent express provision, the only justification for the tribunal to award itself the power by

extrapolation would be an overriding and undeniable need to safeguard the essential integrity of the entire arbitral process. It plainly follows that a control of that kind would fall to be exercised rarely, and then only in compelling circumstances.” Parágrafo 16 da Decisão do caso Rompetrol.

160 procedimento, há um desejo ainda maior de que o sigilo seja mantido e que o financiamento permaneça desconhecido das outras partes.

Há inúmeras razões para essa obsessão pelo sigilo. Por parte do Fundo financiador, pode-se tratar de uma questão estratégica, pois muitas vezes o mercado financeiro não quer passar informações importantes sobre seus investimentos a terceiros, tais como taxa de retorno, capital investido, entre outros. Na verdade, uma vez que o mercado tem acesso aos números econômicos do contrato, a posição negocial do Fundo fica seriamente comprometida, pois outras partes podem passar a inferir qual o limite do Fundo, o que desequilibra a relação deste com os potencias futuros clientes.

Pela parte financiada, algumas vezes pode-se ver como pouco interessante informar à outra parte sobre sua condição financeira, mesmo em situações em que o investimento se deu não por dificuldades de caixa, mas simplesmente por alocação de risco.

O fato é que, para muitos atores no mercado do investimento de arbitragens, o sigilo da própria operação é essencial.334 Portanto, importante é respondermos se existe ou não um dever de revelação sobre o investimento, para a outra parte e para os árbitros.

Na verdade, como visto, o dever de revelação335 é algo muito caro

ao instituto da arbitragem. Em muitas oportunidades, situações que poderiam ser consideradas como negativas do ponto de vista ético, colocando dúvidas sobre a imparcialidade do árbitro, por exemplo, são resolvidas por meio do exercício do dever de revelação.

334 Segundo nossa experiência, todos os contratos de financiamento de procedimentos arbitrais

e/ou judiciais possuíam uma cláusula de confidencialidade. Alisson Ross, em seu artigo na

Global Arbitration Review 7(1) 2012, também compartilha a mesma impressão.

335 Nos EUA, o padrão do dever de confidencialidade foi estabelecido pela U.S. Court of

Appeals for the Second Circuit case, no caso Morelite Constr. Corp. v. New York City District

Council Carpenters Benefits Funds, 748 F.2d 79 (2dCir. 1984), em que o filho do presidente do

Sindicato, que era parte do procedimento, funcionou como árbitro sem informar tal fato às partes. O argumento da decisão é que há situações em que há evidente parcialidade, identificável por uma pessoa razoável. A falha em informar tais fatos de clara parcialidade traz a presunção de que o árbitro era, de fato, parcial.

161 Entretanto, aqui não se está, a priori, analisando a independência do árbitro, mas sim se as partes devem tomar conhecimento sobre a existência do investimento e se tal informação é de tal modo relevante que deva ser tratada como um dever jurídico em relação àquele que recorrer a tal tipo de financiamento.

É bem verdade que em algumas situações essa revelação ocorrerá de qualquer modo, por exemplo, quando o financiador ou a parte financiada são companhias listadas nos mercados de capitais ou quando, por qualquer motivo, tenham o dever de revelação atrelado a sua situação societária.

No entanto, permanece a dúvida sobre a existência desse dever ou não nas situações em que ele não decorre de outra obrigação legal ou contratual.

Pode-se afirmar que não há ainda na prática arbitral internacional um dever de revelar como uma parte se financiou para o litígio.336 Essa, ao menos, é a opinião de importantes doutrinadores internacionais sobre o tema.337

Contudo, o dever de revelação não deve residir apenas nas regras de procedimento que uma Câmara desenvolve para administrar seus processos. Afinal, tais regras são mais voltadas às dificuldades quotidianas do procedimento em uma arbitragem institucional e, na maioria dos casos, o financiamento por terceiros pode não ter adquirido tamanha relevância em

336

“In fact, institutional rules does not seem to consider how a party will fund its claim” (LEVY, Laurent; REGIS, Bernard. Third Party Funding. Disclosure, joinder and impact on international procedures. In: CREMADES, Bernardo; DIMOLITSA, Antonias. Third-party funding in

International Arbitration. Dossiers – ICC, Paris, 2013. p. 79).

337

Ver também a opinião de Susanna Khouri, Kate Hurford e Clide Bowman: “There appear to be no relevant rules of the leading arbitral institutions requiring a party to disclose if it is being funded” (KHOURI, Susanna; HURFORD, Kate; BOWMAN, Clide. Third party funding in international commercial and treaty arbitration – a panacea or a plage? A discussion of the risks and benefits of third party funding. Transnational Dispute Management 8 (4), p. 9, 2011. Disponível em: <http://www.transnational-dispute-management.com/article.asp?key=1747>. Acesso em: 25 jul. 2014).

162 termos quantitativos a ponto de justificar uma alteração das regras procedimentais da instituição.

O dever de revelação está umbilicalmente ligado ao dever geral de boa-fé que, embora tenha diversas acepções ao redor do planeta, engloba o dever de revelar aos futuros julgadores fatos que potencialmente possam impactar sua independência.

E isso nos leva à inevitável pergunta: existe um dever de revelação à parte contrária e aos árbitros de que uma das partes está recorrendo ao financiamento de terceiros para enfrentar o procedimento arbitral?

De forma muito similar a um segurador não sub-rogado nos direitos do segurado, o financiador de procedimentos arbitrais em regra não passa a ser parte no procedimento. Na verdade, é bastante comum que o financiador prefira ficar mais nos bastidores do que efetivamente assumir um papel de protagonista na arbitragem.

Isso se dá por alguns motivos. Entre eles, porque a exposição do financiamento pode passar à parte adversa uma ideia de fragilidade financeira que nem sempre é verdadeira. Afinal, como exposto, o financiamento por terceiros é uma opção para muitas empresas capitalizadas, mas, por uma questão de alocação de risco, optam pelo financiamento.

Sem que haja um disclosure voluntário, os demais envolvidos no procedimento provavelmente sequer saberão que o financiamento por um terceiro ocorreu. E isso faz com que voltemos à dúvida: existiria um dever de revelação do financiamento na arbitragem, seja ela nacional ou internacional?

163 Laurent Levy e Regis Bonnan338 enfrentaram a questão e assim se posicionam:

Funding legal proceedings is a private matter and may give rise to issues of contractual confidentiality given that most funding agreements contain confidentiality provisions. Sensistive information such as the economic terms of the agreement could be revealed, and this might enable other parties to know or predict the funded party’s settlement value. Importantly, funding legal proceedings should not constitute a circumstance that is directly or sufficiently relevant to the case or material to its outcome. This assertion does not mean that third-party funding agreement will not influence the funded party’s conduct in the arbitration [...] What it does mean is that funding should have no impact on the merits of the case. Perhaps this explains (at least partly) why no generally accepted rules or practice in international arbitration require that a party disclose the way in which it is funding its claim or defence.339

Apesar de respeitar e concordar em parte com a opinião dos ilustres acadêmicos e advogados mencionados, entendemos que deve sim haver algum dever de revelação. O dever de revelação é algo derivado da prática arbitral internacional e foi regulado pela International Bar Association (IBA) que, ao editar suas Regras sobre Conflitos de Interesse,340 não descurou de inserir um artigo de alcance suficientemente amplo para proteger situações onde o dever não é tão claro. Trata-se do art. 7 (a) das referidas regras:

338 LEVY, Laurent; REGIS, Bernard. Third Party Funding. Disclosure, joinder and impact on

international procedures. In: CREMADES, Bernardo; DIMOLITSA, Antonias. Third-party funding

in International Arbitration. Dossiers – ICC, Paris, 2013.

339 Tradução livre:

“Financiar processos legais é uma questão privada e pode dar origem a situações problemáticas relativas à confidencialidade contratual, dado que a maioria dos acordos de financiamento contém disposições de confidencialidade. Informações mais sensíveis, tais como os termos econômicos do acordo, poderiam ser reveladas, e isso pode permitir que a parte adversa saiba o valor que a outra aceitaria para um acordo. É importante notar que o Financiamento do Procedimento não deveria constituir uma circunstância que seja suficientemente relevante para o resultado do mérito do processo. Essa afirmação não significa que contrato de financiamento de terceiros financiado não afetará a conduta da parte financiada na arbitragem [...] O que ela quer dizer é que o financiamento não deve produzir nenhum impacto sobre os méritos da demanda. Talvez isso explique (pelo menos parcialmente) por que não há regras ou práticas genericamente aceitas em arbitragem internacional que exigem que uma parte revele como está financiando sua reivindicação”.

340 As regras da IBA sobre Conflito de Interesse têm sido adotadas mundialmente quando o

tema versa sobre conflitos éticos no procedimento arbitral. Embora não seja uma lei ou um tratado internacional, sua produção por uma associação formada por juristas de quase todos os países do planeta e seu caráter didático, com exemplos classificados por cores lhe conferiram um status de costume internacional quando se debate comportamento ético em arbitragem.

Disponível em:

<http://www.ibanet.org/ENews_Archive/IBA_July_2008_ENews_ArbitrationMultipleLang.aspx>. Acesso em: 20 set. 2014.

164

(7) Duty of Arbitrator and Parties

(a) A party shall inform an arbitrator, the Arbitral Tribunal, the other parties and the arbitration institution or other appointing authority (if any) about any direct or indirect relationship between it (or another company of the same group of companies) and the arbitrator. The party shall do so on its own initiative before the beginning of the proceeding or as soon as it becomes aware of such relationship.341

Ora, pode-se arguir que tal provisão se refere a grupos econômicos (Group of Companies) e que não se aplica especificamente ao financiamento por terceiros em geral, quando há um ente completamente externo que realiza o investimento.

No entanto, o fundamento da própria doutrina do Group of

Companies é a existência de uma união indissociável de interesses entre

algumas empresas.342 Quando, por questões societárias ou mesmo contratuais, duas ou mais empresas constituem uma única e indivisível realidade econômica, aplica-se a Teoria do Grupo Econômico.343 Foi exatamente isso que ocorreu no leading case sobre o tema, o já internacionalmente famoso caso Dow Chemical.344

Evidentemente que não há que falar em Grupo Econômico entre um financiador e uma empresa financiada, simplesmente por estes terem realizado um contrato para o investimento em uma demanda. Contudo, no caso do investimento por terceiros de um procedimento arbitral, é evidente que os interesses do financiador e do financiado são de tal forma semelhantes que há

341 Tradução livre: (7) Dever de Árbitro e Partes

(A) Tradução livre: “A parte informará ao árbitro, ao Tribunal Arbitral, à outra parte, à instituição de arbitragem ou a outra autoridade designadora (se houver) sobre qualquer relação, direta ou indireta, entre ela (ou outra companhia do mesmo grupo) e o árbitro. A parte deve tomar tal iniciativa antes do início do processo ou assim que tomar conhecimento de tal relação”.

342 Caso CCI 6519.

343 Sobre a Teoria do Grupo de empresas: CAPRASSE, Olivier. Arbitragem e os grupos de

sociedades. Revista de Direito anc rio e do ercado de Capitais, v. 21, p. 339, jul. 2003;

MUNHOZ, Eduardo. Arbitragem e grupos de sociedades. In: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa (Org.). Aspectos da arbitragem institucional: 12 anos da Lei 9.307/1996. São Paulo: Malheiros, 1998; TEPEDINO, Gustavo. Consensualismo na arbitragem e teoria do grupo de sociedades. Revista dos Tribunais, v. 903, p. 9, jan. 2011.

344 Conferir ainda os casos CCI 7604/1995; CCI 7610/1995; CCI 10510/2000;

165 de se entender que existe um interesse comum, uma realidade econômica razoavelmente semelhante no que se refere àquele caso específico, de modo a atrair para o caso as regras éticas aplicáveis aos grupos econômicos.

E tal interpretação tem um motivo. Afinal, o advento de um terceiro em um procedimento traz consequências claras concernentes à formação do Tribunal Arbitral e pode, inclusive, constituir um impedimento ulterior de algum árbitro ou mesmo do painel inteiro, algo absolutamente indesejável em um procedimento que tem por objetivo a celeridade e a eficiência.

Com efeito, o advento do terceiro financiador pode trazer uma série de conflitos de interesse que precisam ser analisados pelo Tribunal. A título de exemplo, um árbitro pode ser um investidor do próprio fundo ou pode trabalhar em um escritório de advocacia que representa os interesses do fundo.

Tais fatos, meramente exemplificativos, podem ou não afetar a independência do árbitro, mas certamente precisam ser divulgados pela parte para que o próprio árbitro e a parte contrária possam analisar se existe (ou não) fato relevante a afetar a independência e a confiança necessárias ao prosseguimento do procedimento.345

Entendemos que colocar essa análise apenas na parte que está recebendo o financiamento é inapropriado. O teste de independência do árbitro pertence, primeiramente, ao próprio árbitro e, em seguida, às partes que, depois de ouvirem a declaração de independência e terem conhecimento de todos os fatos relevantes, devem decidir se confiam ou não no julgador. Portanto, não deve essa informação ficar apenas na posse da parte financiada, e sim ser compartilhada com todos os que participam do procedimento.

345 No mesmo sentido, a opinião de Maxi Scherer em

<http://www.wilmerhale.com/uploadedfiles/wilmerhale_shared_content/files/editorial/publication/ cdr-9-expert-view-wilmerhale.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2014.

166 Na verdade, diferentemente da opinião dos respeitados advogados Laurent Lévy e Régis Bonnan,346 consideramos que o dever de revelação recai sobre a parte financiada e que deve ocorrer no início do procedimento ou assim que o financiamento acontecer. Afinal, a constituição do próprio tribunal, com consequências sobre sua validade e sobre a própria exequibilidade do laudo arbitral, é que está em jogo.

Marcelo Roberto Ferro, ao analisar a situação da independência do árbitro em relação a um investidor em arbitragens, assim se posicionou: “a parte não tem o direito de esconder do árbitro a participação efetiva e direta de um terceiro no resultado da demanda”.347

Assim, compreendemos que, em casos de financiamento por terceiros, a regra da confidencialidade deve ser relativizada e o dever de revelação deve ser privilegiado. No entanto, tal revelação deve recair apenas sobre as informações essenciais para a análise de uma eventual influência no Tribunal Arbitral.

De forma mais sucinta, deve a parte financiada informar que possui um parceiro financeiro no procedimento e identificá-lo. Detalhes sobre a precificação do financiamento e outras cláusulas devem ser preservados, dado o caráter estratégico para o financiado e irrelevante para a parte adversa e o tribunal analisarem um eventual conflito de interesses.