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CAPÍTULO 3 A ARBITRAGEM, TEORIA DOS SISTEMAS E ACESSO À

3.3 Arbitragem e o acesso à ordem jurídica justa

3.3.1 O princípio do acesso à justiça

O princípio do acesso à justiça é um direito fundamental previsto no art. 5.o, XXXV, da Constituição Federal e nas principais

Convenções Internacionais de Direitos Humanos.140 Tal princípio também é

conhecido como princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado na expressão constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito”.

Interpretando o texto constitucional, observamos que todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativa a um direito. O conteúdo do princípio contempla não só direitos individuais, como também os difusos e coletivos. A Constituição achou por bem tutelar não só a lesão de direito, mas também a ameaça de lesão, englobando aí a tutela preventiva.

O direito de todos acessarem o mecanismo judicial de solução de litígios terminou por se materializar em princípio geral do direito, que vem sendo muito estudado, sobretudo por processualistas. Diversas são as interpretações possíveis para o referido princípio. Mauro Cappelletti e Bryant Garth141 assim definem o princípio:

A expressão “acesso à justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos.

140 Cf. art. 6.º da Convenção Europeia de Direitos Humanos e art. 8.1 da Convenção Americana

da Direitos Humanos.

141 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie

64 A interpretação que se dá a esse princípio vem sofrendo grande debate no mundo inteiro, e a obra dos professores Cappelletti e Garth, cujo lançamento data de 1978 e se insere no denominado Projeto de Florença, foi seminal nesse sentido. A partir desse estudo, do qual o Brasil não participou, o tema passou a atrair a atenção de uma grande quantidade de estudiosos no mundo.

Cappelletti e Garth sustentam que:

Nos estados liberais “burgueses” dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. [...] O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática. [...] A justiça, como outros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva.142

Essa ideia de que o Estado deveria assegurar o acesso a uma ordem jurídica justa143 a todos os seus cidadãos, independentemente da condição financeira, é que fomentou a consolidação das Defensorias Públicas e a universalização da gratuidade processual para aqueles que declaram não poder arcar com as custas sem prejuízo do seu próprio sustento. Tal fenômeno se deu nos Judiciários nacionais, sobretudo ao longo da segunda metade do século XX.144

Após o Movimento de Florença, vários países passaram a analisar o princípio do acesso à justiça como algo essencial à garantia de uma ordem jurídica justa. A partir desse princípio, decorreu outro direito fundamental

142 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie

Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 10.

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“A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites dos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa” (WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. Participação e processo. São Paulo: RT, 1988. p. 128).

144 BORGE, Felipe Dezorzi. Defensoria Pública: uma breve história. Disponível em:

<http://jus.com.br/artigos/14699/defensoria-publica-uma-breve-historia>. Acesso em: 5 out. 2014.

65 em nossa Constituição: o da assistência jurídica, previsto no inciso LXXIV da Carta Magna.

Há, inclusive, quem entenda que a substituição da expressão “assistência judiciária”, presente na Constituição de 1967, por “assistência jurídica”, opção do constituinte de 1988, implicou a extensão desse direito não apenas a um auxílio no acesso ao Poder Judiciário, mas também a serviços de consultoria jurídica e mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos.145

Hoje, parece-nos que a interpretação extremamente benevolente que o Judiciário tem do princípio acesso à justiça precisa de uma maior reflexão. Analisar tal princípio como um direito ilimitado de provocar o Judiciário, sem custos, para todo e qualquer desentendimento entre particulares é um dos principais motivos que tem provocado a impressionante marca brasileira de ser campeão de litigiosidade no mundo.146

A garantia do acesso à justiça não significa que o processo deva ser necessariamente gratuito. Na verdade, o exercício de todo direito fundamental requer limites, sob pena de se inviabilizar sua efetivação.

É essencial que o Estado continue com mecanismos de facilitação ao acesso ao Judiciário. Contudo, controles no exercício desse direito fundamental são absolutamente necessários. Parece-nos que o exercício do acesso à justiça precisa vir acompanhado das respectivas responsabilidades que tal acesso traz consigo.

Um desses instrumentos de controle tem sido extremamente negligenciado pelo Judiciário brasileiro: as penas pela litigância de má-fé. Com efeito, são cada vez mais raras sanções ao litigante que claramente deduz

145 Observe-

se que “o termo assistência judiciária da Constituição anterior foi substituído pelo termo assistência jurídica, que é gênero daquela espécie por ser mais amplo e abranger a consultoria e atividade jurídica extrajudicial” (TORRES, Ana Flávia Melo. Acesso à Justiça.

Disponível em: <http://www.ambito-

juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4592>. Acesso em: 19 out. 2014).

146 Notícia veiculada no site da OAB/RJ: <http://www.oabrj.org.br/noticia/63113-Brasil-e-

66 pretensão desconectada da realidade, em mera aventura jurídica que busca tão somente a obtenção de vantagens indevidas e de enriquecimento ilícito.

Um desses casos de aparente abuso do direito de petição e de acesso à justiça foi noticiado recentemente:147 um engenheiro é autor de cerca

de 980 ações como autor, e réu em outras 1.000. Em quase todas, figura como beneficiário da gratuidade processual.

Além disso, a possibilidade de desistência, após iniciado o processo, sem qualquer punição (embora a máquina pública tenha sido utilizada em vão) é outro elemento que estimula o exercício inconsequente do direito fundamental de petição.

No entanto, em virtude do nosso corte metodológico, uma análise mais detida dos problemas do Judiciário brasileiro e das consequências trazidas ao princípio do acesso à justiça resta impossível no presente trabalho.

Entendemos que, embora mereça reflexão e uma aplicação mais efetiva pelos magistrados, o princípio do acesso à justiça é um dos pilares da democracia brasileira e precisa continuar assim. Cabe, de fato, ao Estado custear o serviço público de solução de litígios e assegurar que seus cidadãos menos privilegiados tenham um acesso minimamente semelhante ao dos cidadãos mais abastados.

Não há dúvidas de que a gratuidade no acesso à justiça estatal é uma conquista histórica e irreversível, fundamental ao Estado Democrático de Direito brasileiro. Contudo, é necessário repensar a forma como esta tem sido aplicada, de modo a evitar que, em demandas frívolas, ou no caso de demandas habituais, possa haver algum tipo de abuso do direito de ação.148

147 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-03/milhares-acoes-engenheiro-bottura-

testa-tolerancia-justica>. Acesso em: 10 out. 2014.

148 Uma boa análise sobre os efeitos econômicos dessa interpretação ampliativa do princípio do

acesso à justiça é feita por: MARCELLINO JUNIOR, Julio César. O direito de acesso à justiça e

a análise econômica da litigância: a maximização do acesso na busca pela efetividade. 2014.

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3.3.2 O princípio do acesso à justiça dentro do sistema da