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O comércio na Idade Média e as grandes navegações: o mundo torna-se

CAPÍTULO 1- BREVE HISTÓRIA DO COMÉRCIO INTERNACIONAL E O

1.4 O comércio na Idade Média e as grandes navegações: o mundo torna-se

No auge do Império Romano, uma religião começou a se formar na Palestina, uma das principais províncias romanas, inspirada nos ensinamentos de Jesus Cristo, que trazia como principais novidades a ideia de um único Deus e que a salvação pós-morte independia de condição social. Com isso, conseguiu a adesão de vários pobres e escravos, evidentemente interessados na possibilidade de acesso ao conceito de salvação universal.

31 Sobre a inversão de valores em países em desenvolvimento, buscando primeiro o

desenvolvimento para só após adequar suas instituições, conferir artigo de Anand Giridhadas

no The New York Times. Disponível em:

<http://www.nytimes.com/2014/01/21/world/americas/balancing-private-and-public-needs.html>.

32 Sobre a taxação do comé

rcio internacional em Roma, válida a lição de Dal Ri Junior: “era natural que em decorrência do aumento do volume de tráfico comercial surgisse também uma espécie de direito público econômico. Tal fenômeno vem a acontecer através da instituição de um imposto, a portoria, que atualmente corresponderia a uma de nossas taxas alfandegárias. Mesmo assim, é importante salientar que os romanos nunca tiveram a intenção de se servir de mecanismos aduaneiros para proteger a economia da República ou do Império” (DAL RI JUNIOR, Arno. História do direito internacional: comércio e moeda; cidadania e nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 30).

19 Assim, uma nova religião denominada cristianismo difundiu- se pelo Império Romano. No início, esses cristãos foram perseguidos por se oporem à religião oficial do império. Isso mudaria no governo do Imperador Constantino que acabou por entrar na História como o primeiro imperador romano a professar o cristianismo. Isso porque, segundo relatos, Constantino sonhou com a vitória na Batalha da Ponte Mílvio, em 28 de outubro de 312, e, no referido sonho, teria visto uma cruz, e nela estava escrito em latim: in hoc

signus vinces, algo como “sob este símbolo vencerás”.33

Após esse evento, o Império Romano, mesmo que em decadência, passou a divulgar e converter súditos para essa religião, que se espalharia primeiro pela Europa e, num segundo momento, por todo o mundo quando os europeus partiram para as Grandes Navegações.

A decadência do Império Romano traria como consequência um forte declínio do movimento comercial no mundo, eis que ausentes os pressupostos de segurança jurídico e negocial propiciados pelo Império forte. O ressurgimento de uma atividade comercial mais intensa só se daria durante o reinado de Carlos Magno, iniciado no Natal do ano 800.34 No entanto, um verdadeiro desenvolvimento só se daria com as Cruzadas e o fortalecimento das cidades em relação ao campo, algo que só ocorreria no século XII.

Nesse período da Idade Média, a união de alguns pequenos protoestados em torno da Igreja ficaria conhecida como Respublica

Christiana.35 O comércio entre esses protoestados demoraria a ser retomado. Todavia, no século XV, o comércio havia sido recuperado na Europa e esta já superava os tradicionais comerciantes árabes, tanto comercial como militarmente, tendo logrado sucesso em expulsá-los do seu

33 WARD, Allen; HEICHELHEIM, Fritz; YEO, Cedric. A History of the Roman People. New York:

Pearson, 2013. p. 425.

34 DAL RI JUNIOR, Arno. História do direito internacional: comércio e moeda; cidadania e

nacionalidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 36.

20 continente em 1492, quando caiu o Califado de Córdoba. Entretanto, foi exatamente a troca de informações durante a ocupação moura que viabilizou a expansão marítima europeia.

Estima-se que, quando os mouros foram expulsos do continente, mais de um terço da população europeia era constituída de pessoas de outros continentes. Esse intercâmbio permitiu aos pioneiros portugueses e espanhóis acesso a instrumentos de navegação de alta sofisticação na época, como o astrolábio e a bússola, desenvolvidos na China e trazidos pelos comerciantes árabes que ocuparam a Península Ibérica e chegaram praticamente no Maciço Central francês.36

Interessante destacar que, ao mesmo tempo em que os europeus conseguiam uma verdadeira revolução nos costumes com as Grandes Navegações, a China que forneceu boa parte dos equipamentos técnicos necessários à navegação de longo curso, não obteve o mesmo feito em virtude de proibição expressa do Poder Central representado pela dinastia Ming que proibiu as navegações oceânicas ao desmantelar a construção naval chinesa em 1433 d.C.37

Contudo, no continente europeu, tal limitação não existia e as Grandes Navegações se tornaram realidade. Elas representariam o fim da Idade Média. Os grandes barcos construídos (caravelas e naus) e os instrumentos de navegação para viagens de longo curso mudaram por completo a noção de mundo. Primeiro, descobriu-se que o planeta era redondo. Segundo, a Europa que até então era um continente já em crise de espaço passou a contar com uma extensão considerável para produção de produtos: as Américas.38

36 BELMONTE, Alexandre.

Mundo novo e paraíso terrestre: o “transe dos viajantes” na conquista da América. In: LEMOS, Maria Tereza Toribio Brites. América Latina: identidades em construção: das sociedades tradicionais à globalização. Rio de Janeiro: 7letras, 2008. p. 13.

37 LYRIO, Maurício Carvalho. A ascensão da China como potência: fundamentos políticos

internos. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010. p. 22.

38 Para mais informações sobre o período das Grandes Navegações, consultar

BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti N. História da expansão portuguesa. A formação do Império (1415-1570). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998.

21 Os portugueses, seguidos pelos espanhóis, investiram pesadamente na criação e manutenção de esquadras para conquistar novas regiões em territórios inexplorados na época, com um claro objetivo: estabelecer novas rotas comerciais.

No início, o investimento era praticamente exercido apenas pelo Estado, dado o seu elevado risco. Contudo, outros Estados mais ao Norte, como Inglaterra, França e Holanda, embora tenham saído atrás na corrida das Grandes Navegações, perceberam uma boa janela de oportunidade para o setor privado e, replicando uma ideia surgida na Itália, criaram as Companhias de Navegação, sociedades anônimas que atraíam investidores privados e, com isso, mitigavam o risco da empreitada.

Entre tais companhias, podemos destacar três:

- Companhia Britânica das Índias Orientais, fundada em 1600; - Companhia Holandesa das Índias Orientais (Vereenigde Oost

Indische Compagnie – VOC), fundada em 1602;

- Companhia Francesa das Índias Orientais, fundada em 1664.39

No século XVII, a VOC era a mais rica companhia privada do mundo, com mais de 150 navios mercantes, 50.000 funcionários, um exército privado com 40 navios de guerra, 20.000 marinheiros, 10.000 soldados e uma distribuição de dividendos de 40% aos seus acionistas.40

No final do século XIX e inicio do século XX, intensificou-se a criação de acordos comerciais, em sua maioria bilaterais. Tal fato não é exclusivo desses tempos, pois já desde a Idade Antiga era comum a realização de tratados comerciais, porém o que difere é sua expressão e abrangência. Tais tratados têm por finalidade pacificar e ordenar as relações comerciais

39 SARNA, David. History of Greed: Financial Fraud from Tulip Mania to Bernie Madoff. New

Jersey: John Wiley & Sons Publishers, 2010. p. 13.

40 SARNA, David. History of Greed: Financial Fraud from Tulip Mania to Bernie Madoff. New

22 entre dois ou mais países, com o objetivo de manter a soberania de cada um dos participantes em seu território.

Apenas no final do século XIX e início do século XX é que os países iniciariam o processo de reconhecimento da necessidade de regras únicas para a solução das divergências sobre o comércio internacional.

Em 1919, foi fundada a Associação Internacional de Empresas (posteriormente mais conhecida como Câmara Internacional do Comércio – CCI) com sede em Paris, e que visava

[...] promover o comércio internacional, o investimento, o mercado livre de bens e serviços e o livre trânsito de capitais, através da defesa dos interesses dos seus associados junto das organizações internacionais e das entidades reguladoras dos diferentes estados, bem como estabelecer regras comuns a todos os seus associados.

Era basicamente um grupo de industriais, comerciantes e banqueiros que estava determinado a trazer prosperidade econômica a um mundo que estava ainda em frangalhos após a Primeira Guerra Mundial. Eles fundaram a Câmara Internacional de Comércio e se autodenominaram os “comerciantes da paz”.41

A CCI se notabilizaria pela criação de regras que, por aceitação voluntária, regem a maior parte das relações econômicas e comerciais internacionais.

Foi a CCI quem emitiu, em 1933, a primeira versão dos

Uniform Customs and Practice for Documentary Credits, que ainda são usados

pelos bancos no mundo para reger as regras de troca de créditos.

Além disso, em 1936, a CCI criou os International

Commercial Terms – Incoterms (Termos Internacionais de Comércio), siglas

que representam padrões de contratação e assunção de riscos que, desde

41 RIDGEWAY, George. The Merchants of Peace: twenty years of business diplomacy through

23 então, são utilizados em praticamente todas as transações comerciais internacionais, facilitando enormemente as negociações.

Apesar de não saberem na época, os pioneiros estavam criando uma organização que se tornaria essencial à economia global. Ao longo dos anos, a Câmara assumiu uma função central no comércio internacional, forjando regras internacionais, mecanismos e padrões que são usados todos os dias por meio de um mundo ainda mais complexo do qual era em 1919.

O núcleo original de empresários de origem de apenas cinco países expandiu para se tornar uma organização de comércio global com milhares de membros empresariais em mais de 120 países.

E, por mais que fatos como os Incoterms ou UCC tenham mais notoriedade quando se estuda o comércio internacional, uma iniciativa da CCI foi muito relevante para o fomento do intercâmbio de mercadorias transfronteiriço: a criação, em 1923, de uma Câmara de Arbitragem para as disputas entre os comerciantes.