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CAPÍTULO 2 A ARBITRAGEM E A ARBITRAGEM COMERCIAL

2.1 Origens e conceito

Não há consenso sobre a origem do instituto da arbitragem. A ideia de um terceiro resolver as diferenças é imemorial nos agrupamentos e civilizações humanas.52 Mesmo nas sociedades mais rudimentares, no sentido de não conhecerem a figura estatal ou mesmo a noção de propriedade, é comum ver os conflitos entre os homens solucionados por um terceiro que detenha a confiança das partes envolvidas.

Há quem aponte a Grécia Antiga como origem do fenômeno. Francisco José Cahali53 é um deles, ao afirmar que “tem-se notícia da

arbitragem até na mitologia grega, quando Zeus nomeou um árbitro para decidir qual das deusas mereceria o pomo de ouro da mais bela”, citando trecho da Ilíada, de Homero:54

[...] e deixou à mesa um pomo de ouro com a inscrição “à mais bela”. As deusas Hera, Atena e Afrodite disputaram o pomo e o título de mais bela. Para não arranjar confusão entre os deuses, Zeus então ordenou que o príncipe troiano Páris, na época sendo criado como um pastor ali perto, resolvesse a disputa. Para ganhar o título de “mais bela”, Átena ofereceu a Páris poder na batalha e sabedoria; Hera, riqueza e poder; e Afrodite o amor da mulher mais bela do mundo. Páris deu o pomo a Afrodite, ganhando assim sua proteção, porém ganhando o ódio das outras duas deusas contra si e contra Tróia.

52

“O princípio da arbitragem está no fato de que, quando duas pessoas disputam a respeito de qualquer assunto e não conseguem chegar a uma solução, elas escolhem um terceiro em quem confiam e ele decidirá a questão” (VERÇOSA, Haroldo Duclerc. Os segredos da

arbitragem. São Paulo. Saraiva, 2013. p. 34.

53 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 3. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 25.

54 HOMERO. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre:

29 Embora a ideia de um terceiro resolver conflitos remonte à mitologia,55 na Grécia não houve um sistema arbitral como o que se desenvolveria no mundo muitos séculos depois. De toda forma, Carlos Alberto Carmona56 menciona que havia, sim, um procedimento arbitral na Grécia, onde

“cada parte pagava uma taxa ao árbitro, e este, se não conseguisse conciliá- las, pronunciava sua sentença, solenizada por um juramento”.

Outros autores, como Grace Xavier,57 apontam para a

história bíblica do Rei Salomão. Na história, o Rei Salomão foi escolhido por duas mães que haviam dado à luz na noite anterior. A que perdeu o bebê clamava pelo bebê da outra, afirmando que, na verdade, era o seu.

Salomão, então, propôs que, não havendo consenso, o correto seria dividir a criança ao meio e entregar uma metade a cada mãe. Uma das mães, então, protestou e disse que melhor seria perder seu bebê a vê-lo morto, momento em que Salomão soube que esta era, na verdade, a mãe do bebê que sobrevivera.58

Cândido Rangel Dinamarco59 aponta a gênese da arbitragem no Direito Romano, quando a figura do judex que, como cidadão romano, decidia algumas questões entre particulares:

Nos períodos iniciais do sistema romano de tutela dos direitos a oferta de solução para os conflitos não era encargo do praetor, um órgão do Estado, mas do judex, um cidadão privado chamado a conduzir a causa e a decidir. [...]. Ao longo de todo esse período, o processo principiava perante o pretor, em sua fase de in jure, passando depois ao judex, responsável pela fase apud judicem, na qual a causa era julgada. E aquele que a julgava, o judex, outra coisa não era senão um árbitro. Era um cidadão privado que o pretor investia de um múnus público de conduzir o processo e proferir julgamento. Essa era uma arbitragem obrigatória e não livremente

55 Haroldo Duclerc Verçosa (Os segredos da arbitragem. São Paulo. Saraiva, 2013. p. 35) bem

aponta que esse mito grego retrata uma arbitragem em que Páris foi um árbitro venal porque interesseiro. Não é essa a arbitragem que é praticada globalmente.

56 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo. São Paulo: Atlas, 2009. p. 34.

57 XAVIER, Grace. Evolution of Arbitration as a Legal Institutional and the Inherent Powers of

the Court. Asian Law Institute. Disponível em: <http://law.nus.edu.sg/asli/pdf/WPS009.pdf>. Acesso em: 27 set. 2014.

58 Bíblia Sagrada. Livro dos Reis. 3,16-28. São Paulo: Editora Vida, 1997.

59 DINAMARCO, Cândido Rangel. A arbitragem na teoria geral do processo. São Paulo:

30 pactuada pelas partes, como as de hoje, mas sempre uma arbitragem na qual ou as partes se punham de acordo para a escolha do judex, ou este era escolhido mediante um sorteio ou por ato do pretor. Tanto quanto se dá com os árbitros dos tempos modernos, a investidura do judex terminava no momento mesmo em que a sentença fosse proferida.

Apesar do uso pontual tanto da arbitragem como de sistemas judiciais ligados ao Estado ou ao Reino, durante muito tempo, a força permitia resolver tanto as diferenças entre as pessoas como aquelas entre as nações. Na Europa da Idade Média, reinava o que os alemães chamam de uma expressão curta e cheia de significado: o Faustrecht (que pode ser traduzida com o “direito do punho”).

No Brasil, em alguns rincões mais isolados, tal fenômeno, até recentemente, também era verdadeiro. Quem tinha mais força prevalecia. Após inúmeros abusos, surgiu a ideia de se fixarem regras (leis, regulamentos) que estabelecem os direitos de cada pessoa, e de formar um corpo de juízes estatais que aplicam e fazem cumprir essas leis.

No entanto, a função desse julgador estatal nem sempre existiu ou funcionou bem. Em algumas sociedades protoestatais, como nas tribos ameríndias, a figura do juiz sequer existia. O Pajé e o cacique exerciam a função de líder espiritual, provedor de saúde e solucionador de litígios.60 Não era necessário processo, e as divergências eram solucionadas com base na experiência e sabedoria do líder.

Mesmo nas sociedades mais primitivas, a discórdia parece ser tão inerente ao ser humano quanto a busca pela solução por um terceiro.

60 Para mais informações sobre a forma indígena de solução de conflitos, consultar:

GUARDIOLA, Carolina Llanes. Autoridades, lideranças e administração de conflitos na Aldeia

Indígena Pataxó de Barra Velha, Bahia. 2011. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. Disponível em: <http://www.uff.br/ppga/wp- content/uploads/2013/06/Autoridades-lideran%C3%A7as-e-administra%C3%A7%C3%A3o-de- conflitos-na-aldeia-ind%C3%ADgena-Patax%C3%B3-de-Barra-Velha_Carolina-Llanes- Guardiola.pdf>. Acesso em: 18 set. 2014.

31 Foi em Roma que a base do que seria um dia chamado arbitragem surgiu. A própria palavra árbitro deriva de arbiter, um termo latino. Entretanto, a arbitragem como conhecemos hoje foi desenvolvida sobretudo pelas disputas envolvendo países que, não reconhecendo autoridade no julgador estatal de um dos países litigantes, optavam (e ainda optam) por um árbitro que decidia de forma definitiva seus litígios. Muitas fronteiras foram assim definidas.61

Reparações derivadas da guerra também costumavam ser definidas por arbitragem. Um dos casos arbitrais mais famosos de indenização em Guerra foi o caso Alabama, julgado em 1872 por um tribunal arbitral de cinco membros, dos quais três de nacionalidades diferentes em relação aos Estados-partes. Para muitos, é a primeira arbitragem verdadeiramente internacional.62

O litígio incidia sobre a violação dos deveres de neutralidade por parte do Reino Unido, acusado de equipar e fornecer um navio aos rebeldes sulistas durante a Guerra de Secessão. O tribunal baseou-se numa cláusula arbitral objeto de um tratado bilateral: o Tratado de Washington de 1871.

O tribunal decidiu em Genebra, no dia 14 de setembro de 1872, por meio de uma sentença que condenava a Inglaterra a pagar aos Estados Unidos o montante de 15.500.000 dólares em ouro, com juros, a título de indenizações por todas as reclamações submetidas a sua apreciação. Na decisão, os árbitros reconheciam que a Inglaterra tinha desrespeitado os deveres prescritos por ao menos três regras do Tratado de Washington.

61 Em 1493, o Papa Alexandre VI já decidia sobre o Tratado de Tordesilhas. Em 1570, o Rei da

Espanha e os suíços submeteram a árbitros a questão dos limites de uma região: a Franche-

Comté. No Brasil, Barão do Rio Branco ficou conhecido por suas atuações brilhantes em

procedimentos arbitrais envolvendo a definição de boa parte de nossas fronteiras, como foi o caso da questão de Palmas (Santa Catarina) e da Guiana Francesa. Para mais informações: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-

comunicacoes/outras-autoridades/o-barao-do-rio-branco-no-centenario-de-sua-morte-memoria- inspiracao-legado-brasilia-10-2-2012>.

62 Para mais informações sobre o caso Alabama, consultar:

32 A sentença foi assinada por somente quatro árbitros: o conde Sciopis, nomeado pelo rei da Itália, Jacques Staempfli, apontado pelo presidente da Confederação Suíça, o Barão d’Itajubá, designado pelo Império do Brasil, Charles Adams, escolhido pelos Estados Unidos. Sir Alexandre

Cockburn, indicado pela Inglaterra, recusou-se a assinar. A Inglaterra, depois

de recriminações sobre a interpretação dada às três regras do tratado, aceitou a sentença que pôs termo ao conflito.

A arbitragem, de maneira geral, pode ser definida como “a instituição pela qual as pessoas capazes de contratar confiam a árbitros, por elas indicados ou não, o julgamento de seus litígios relativos a direitos transigíveis”.63 Com algumas variações, esse conceito de arbitragem é

largamente aceito pela doutrina especializada no Brasil e no mundo.64-65

Embora ganhasse cada vez mais espaço no plano das divergências entre as nações, a arbitragem perdia espaço como forma de solução de litígios entre particulares. Afinal, a solução por um terceiro, chamada heterocompositiva, foi monopolizada pela figura do Estado, após sua formação, deixando a figura da arbitragem um pouco de lado em várias sociedades. Contudo, em um determinado meio da economia, ela renasceria como modelo para a solução de litígios: no comércio internacional.

Com efeito, diante da estatização das justiças locais, o comerciante internacional, sujeito que, por natureza, é desprovido de um local único de negócios, passou a enfrentar um dilema. Ao realizar seus contratos, teria de optar por um juízo que, provavelmente, estaria vinculado de alguma forma a um dos lados do litígio. Afinal, é muito comum que se escolha entre o juízo da sede do vendedor ou o juízo da sede do comprador. Ambas as

63 CARREIRA ALVIM, J. E. Tratado geral da arbitragem. Belo Horizonte: Mandamento, 2005. p.

14.

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“Arbitration is a process by which parties agree to the binding resolution of their disputes by adjudicators, known as arbitrators who are selected by the parties, either directly or indirectly via a mechanism chosen by the parties” (MCILWRATH, Michael; SAVAGE, John. International

Arbitration and Mediation. A Practical Guide. Holanda: Wolters Kluwer, 2010. p. 5. 65

“L’arbitrage est l’institution par laquelle un tiers, régle le differend qui oppose deux ou plusieurs parties, en exerçant la mission jurisdictionelle qui lui a été confiée par celles-ci” (JARRONSON, Charles. La notion d’arbitrage. Paris: LGDJ, 1987. p. 372.

33 escolhas trazem consigo uma carga de desconfiança por parte do lado contrário.

Nesse contexto, ressurge a ideia de escolher um terceiro imparcial que não se vinculasse a nenhum dos envolvidos no litígio e que, eventualmente, pudesse inclusive decidir a partir de um país igualmente desvinculado ao negócio jurídico em questão. Ressurgia, assim, a figura da arbitragem, agora em sua faceta comercial e internacional.

Embora possam se localizar iniciativas isoladas em outras localidades,66 devemos esse ressurgimento à Câmara de Comércio Internacional de Paris, cuja história narramos anteriormente (Capítulo 1, item 1.4).

A CCI (ou ICC, usando-se o acrônimo em inglês), com o intuito de buscar estimular o comércio internacional, passou a administrar os conflitos entre os comerciantes, conferindo credibilidade ao sistema de solução de controvérsias e, com o tempo, um pouco de previsibilidade, pois os árbitros, em geral, eram os próprios atores do comércio internacional, e não os juízes estatais sem qualquer experiência na área.

A arbitragem deixa de ser método de exceção e passa a ser a regra no comércio internacional. Outros centros arbitrais se desenvolvem no mundo, quase sempre ligados ao comércio internacional, ao menos em suas origens.

Em Londres, em 1903, surge a London Court of International Arbitration (LCIA), mais voltada a litígios financeiros, dada a sua origem na City.67 Em Estocolmo, em 1917, a Stockholm Chamber of Commerce (SCC)

66 Há notícias de Tribunais Arbitrais nas Corporações de Ofício na Idade Média Europeia e de

que até o Presidente George Washington funcionava como árbitro de disputas comerciais privadas nos Estados Unidos pré-revolução. Conferir: NOUSSIA, Kyriaki. Confidentiality in

Internatiobnal Commercial Arbitration. New York: Springer, 2010. p. 11-12.

67 Disponível em:

34 desenvolve um centro de muito respeito.68 Em Nova York, a American Arbitration Association (AAA) também cria seu centro arbitral, em 1926. A arbitragem ganhava corpo e volume, mas faltava-lhe uma Convenção para dar maior efetividade às suas decisões.

Nesse sentido, as Nações Unidas, percebendo a utilidade do instituto para o estímulo do comércio internacional e para a pacificação social internacional, providencia, em 1958, a mundialmente conhecida Convenção de

Nova York para o Reconhecimento e Execução das sentenças arbitrais estrangeiras.69

Era uma época na qual os sonhos de paz universal, que inspiraram a criação da própria ONU, encontravam sérios obstáculos nas relações entre países de formação histórica, cultural e ideológica diferentes, em relação aos quais era preciso intensificar o comércio, criando, assim, interesses comuns.

A arbitragem internacional ganha, a partir de então, o novo fôlego necessário para dar-lhe a indispensável eficácia.

A Convenção, ao proibir qualquer discriminação entre decisões nacionais e estrangeiras, desburocratizar a homologação das sentenças arbitrais que precisavam ser executadas em um país diferente daquele em que foram proferidas e ao equiparar a decisão arbitral à sentença judicial, abriu novos caminhos para que os litígios internacionais pudessem ter soluções rápidas e eficazes.70

No entanto, o texto da Convenção iria mais além no aspecto formal, ao estabelecer que as cláusulas compromissórias incluídas em

68 Nos anos 1970, em plena Guerra Fria, a SCC foi escolhida como centro para as disputas

envolvendo partes americanas e soviéticas. Disponível em: <http://swedisharbitration.se/about- arbitration-in-sweden/>. Acesso em: 5 set. 2014.

69 Decreto 4.311 de 2002. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4311.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.

70 Para melhor compreensão dos efeitos da Convenção de Nova York e sua interpretação na

jurisprudência global, recomendamos o site do Prof. Albert Jan van den Berg: <http://www.newyorkconvention.org/>.

35 qualquer documento obrigavam as partes a se submeter à arbitragem, independentemente da assinatura de termos de compromisso.

A Convenção ainda limitou os casos de impugnação da homologação das sentenças arbitrais estrangeiras, presumindo a validade delas e fazendo pesar sobre o impugnante o encargo de provar as eventuais ilegalidades. A Convenção também determinou que, na homologação de sentenças estrangeiras, não cabia ao tribunal examinar o mérito das decisões arbitrais, mas tão somente a regularidade do processo. Finalmente, considerou que apenas havendo violação da ordem pública é que as sentenças arbitrais estrangeiras não deveriam ser homologadas.

Enfim, entre as décadas de 1980 e 2000, quase todos os países relevantes do globo entenderam que a ratificação da Convenção era fundamental para proporcionar um ambiente de segurança jurídica capaz de estimular o comércio e o investimento internacionais. Atualmente, são 152 Estados em todo o globo.71

Os tribunais brasileiros têm aplicado a Convenção de Nova York e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem salientando, em vários acórdãos, a importância crescente da arbitragem no comércio internacional, admitindo a prova da existência de cláusula compromissória por todos os meios e até por referência às regras estabelecidas em certo mercados, como o de algodão, na decisão que foi a primeira daquela Corte a aplicar a Convenção.72

Enfim, a arbitragem como método de solução de controvérsias, sobretudo internacionais, evoluiu e muito nos últimos tempos. Trata-se de um grande fenômeno global. Arnoldo Wald chegou, inclusive, a

71 Disponível em: <http://www.newyorkconvention.org/contracting-states/list-of-contracting-

states>. Acesso em: 19 out. 2014.

72 SEC 856, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. Disponível em:

<http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19274304/sentenca-estrangeira-contestada-sec-856- gb-2005-0031430-2/inteiro-teor-19274305>. Acesso em: 22 ago. 2014.

36 equipará-la a fenômenos como o cartão de crédito em importância para a ocorrência da globalização.73

Claudio Finkelstein,74 por sua vez, aponta que, “para os

operadores do comércio internacional, a arbitragem é, certamente, o meio mais propício para a solução de controvérsias”.

É esse fenômeno, com suas características e problemas, que estudaremos neste capítulo.