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A assistência social e as leis fundadoras do sistema de seguridade social

Em lugar de exigir a demonstração de pertença a um território e a dependência das autoridades locais, o sistema de proteção social que tomou forma a partir de 1945 condicionou os direitos sociais à pertença profissional e ao pagamento de contribuições.

Entre 1928-1930, definiu-se um quadro de ação para ambas as formas de proteção. A assistência continuou sendo territorial e o seguro social tendeu a ter uma base setorial: a indústria, o comércio, a função pública, a agricultura. A respeito, Bruno Palier 51apresenta um estudo sobre as mudanças nos critérios de acesso às prestações sociais e aos laços sociais. Esse estudo assinalou que, embora até o século XIX a comuna tenha sido o primeiro lugar de incumbência de responsabilidade da assistência pública, a questão do domicílio como condição de acesso à prestação da assistência não mudou, ainda quando foram definidas leis de caráter nacional de assistência social durante 1893. O caráter nacional do dispositivo de assistência não impediu que o lugar de residência, a base territorial, continuasse sendo o modo principal de aquisição dos benefícios sócio- assistenciais. Foi com as leis de seguros sociais que o critério mudou para a hegemonia da concepção de cotização e a pertença socioprofissional como substrato da proteção social, em vez da residência.

O sistema francês de seguridade social esteve freqüentemente em oposição ao desenvolvimento da assistência pública. Segundo Palier, a seguridade social construiu-se por oposição à assistência social,52 pois os beneficiários previstos foram os trabalhadores, mais que os cidadãos; a pobreza não constituiu a preocupação central desse sistema, os esforços foram orientados ao trabalhador e à sua família.

Nesse cenário, as práticas sócio-assistenciais foram consideradas negativas e retrógradas, sob um horizonte de futuro, em que o pleno emprego e a conseqüente afiliação às proteções derivadas resolveriam os problemas das incertezas da existência. Para essa explicação, a continuidade da assistência pública tornou-se impensável, pois a proteção para os problemas derivados das vicissitudes da vida viria pela via do mundo do trabalho.

51 Bruno PALIER, Gouverner la sécurite social., 2005, cita de Didier RENARD, Une définition instituionnelle du lien social, 1988.

52 Bruno PALIER, Gouverner la sécurité social, Segunda Parte: A progressão histórica da proteção social em França, 2003.

O Decreto n. 45-2258 de 4 de outubro de 1945 é considerado o texto que organiza o sistema de seguridade social francês. Em sua Parte 1 assinala: É instituída uma organização da seguridade social destinada a proteger os trabalhadores e suas famílias contra os riscos de toda natureza susceptíveis de reduzir ou suprimir suas capacidades econômicas, a cobrir as despesas de maternidade e as cargas associadas. 53

Pierre Laroque foi considerado o “pai fundador” da seguridade social francesa. Depois da liberação da França, o ministro de Trabalho do governo provisório, Alexandre Parodi, encomendou-lhe a elaboração do plano francês de seguridade social. 54 Laroque não somente participou da elaboração das primeiras leis de seguros como formulou a principal regulamentação que instaurou esse sistema de seguridade social entre os anos de 1945 e 1946, e algumas das institucionalizações contemporâneas.55

Segundo Palier (2003), ao contrário da sugestão contida no relatório Beveridge, as reformas francesas de 1945 privilegiaram os trabalhadores mais do que os cidadãos. Os fundamentos desse relatório assinalavam que o meio de garantir a universalidade da proteção social seria assegurar um mínimo vital, mediante um sistema universal e único, que garantisse os mesmos direitos sociais a todos os cidadãos, qualquer que fosse sua situação profissional.

Em um sistema de seguridade social construído sobre o princípio da contribuição, o acesso às prestações é baseado em contribuições. O sistema francês de proteção social de 1945 foi arquitetado sobre as contribuições como componente do regime de base e, paralelamente, sobre os conteúdos jurídico-constitucionais da República, que se ampararam no preâmbulo da Constituição de 1946, a qual reconheceu o direito à proteção social para todos os cidadãos. 56

53 Vide : www.legifrance.gouv.fr: Journel Officiel do dia 6 de outubro de 1945 ; Jean-Jacques DUPEROUX, Droit de la sécurité sociale, 1980; Bruno PALIER, Gouverner la sécurite sociale, 2005.

54 A França foi libertada pela ação dos Aliados, e da Resistência Francesa organizada em Londres pelo general Charles de Gaulle. Em 6 de junho de 1944, os Aliados desembarcaram na Normandia e avançaram em direção a Paris, que foi libertada em 25 de agosto. O governo provisório, presidido por De Gaulle, se instalou imediatamente. O período que posterior a esses acontecimentos é considerado como a Quarta República Francesa. Até 1947, a França foi governada por um Governo Provisório. Em desacordo com a maioria da primeira Assembléia Constituinte, o general De Gaulle pediu demissão em janeiro de 1946. Seguiu-se o estabelecimento da Quarta República, com Vincent Auriol como presidente. A Constituição de 1946, adotada por referendo, entrou em vigor em janeiro de 1947.

55 Pierre Laroque foi diretor-geral da Seguridade Social francesa entre 1944 e 1951. 56 Disponível em: www.legifrance.gouv.fr; www.elysee.fr.

O preâmbulo da Constituição de 194657 definiu assim um direito positivo que se garantiria por instituições precisas:

Apenas alcançada pelos povos livres a vitória sobre os regimes que pretenderem subjugar e degradar a pessoa humana, o povo francês proclama, uma vez mais, que todo ser humano, sem distinção de raça, de religião ou de crenças, possui direitos inalienáveis e sagrados. Reafirma solenemente os direitos e liberdades do homem e do cidadão consagrados pela Declaração de Direitos de 1789, e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República.

Proclama, como particularmente necessários para nossa época, os seguintes princípios políticos, econômicos e sociais:

A lei garante à mulher, em todas as esferas, direitos iguais aos do homem.

Todo homem perseguido por causa das suas ações em favor da liberdade goza do direito de asilo nos territórios da República.

Todos têm o dever de trabalhar e o direito de obter um emprego. Ninguém pode ser prejudicado em seu trabalho ou em seu emprego por causa de suas origens, de suas opiniões ou de suas crenças. Todo homem pode defender seus diretos e seus interesses mediante a ação sindical e aderir ao sindicato da sua eleição.

O direito à greve exerce-se com arranjo às leis que o regulamentam.

Todo trabalhador participa, através dos seus delegados, da determinação coletiva das condições de trabalho e gestão das empresas.

Todo bem e toda empresa cuja exploração possua ou adquira os caracteres de um serviço público nacional ou de um monopólio de fato deve passar a ser propriedade da coletividade.

A Nação proporciona ao indivíduo e à família as condições necessárias para seu desenvolvimento. Garante a todos, em especial às crianças, à mãe e aos trabalhadores idosos, a proteção da sua saúde, de sua seguridade material, de seu descanso e de seu tempo livre. Todo ser humano que, em razão da sua idade, de seu estado físico ou mental ou da situação econômica, encontre-se incapacitado para trabalhar, tem direito a obter da coletividade meios de existência decorosos.

A Nação proclama a solidariedade e a igualdade de todos os franceses ante os gravames resultantes de calamidades nacionais.

Alguns autores58 consideram que o modelo francês de proteção social instituído em 1945 definiu um objetivo de cobertura universal para toda a população - todo indivíduo tem

57Henri HATZFELD, Du paupérisme à la sécurité sociale : essai sur les origines de la sécurité sociale en Franc, 1850-1940, 1971, p. 27, citando o preâmbulo: “ A Nação garante a todos, particularmente às crianças,

as mães e aos trabalhadores, a proteção da saúde, a seguridade material, o repouso e o lazer. Todo ser humano que, em razão da sua idade, se encontre sem capacidade de trabalhar, tem o direito a obter da coletividade os meios convenientes para sua existência”.

58 Jean-Jacques DUPEROUX, Droit de la sécurité sociale, 1980; Bruno PALIER, Gouverner la sécurité social: les réformes du systéme français de protection sociale depuis 1945, 2003; Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004; Amédée THÉVENET, L’aide sociale aujourd’hui: nouvelle étape pour la décentralisation, 2004.

direito, por pertencer ao grupo social, de adquirir benefícios de cobertura -, próprio a uma concepção beveridgiana. Mas, ao mesmo tempo, esse modelo conservou técnicas bismarckianas de seguros, que se associaram essencialmente ao status salarial, se assentaram na inserção no processo de trabalho e se ampliaram com os direitos derivados.

Sob uma lógica bismarckiana, o sistema de seguridade social, hipoteticamente, deveria ter se estendido, e a assistência social tenderia a desaparecer progressivamente, na medida em que se ampliassem as proteções. Mas, de fato, isso não aconteceu no caso francês.

Por um lado, multiplicaram-se os regimes autônomos de proteção provenientes de profissionais não-assalariados que não se incorporaram ao regime geral de seguridade social e que criaram suas próprias condições de proteção. Permaneceram integrados e colaboraram na extensão da proteção social geral, mas não como parte de um sistema único de seguridade social.

A assistência pública continuou incorporando as categorias que o sistema de seguridade social, ou o regime autônomo, não tinha condição de incorporar, seja pela idade do interessado ou pela condição física. A maioria dos autores que estudou a assistência pública neste período – Amédée Thévenet, Borguetto e Lafore, Duperoux, Palier – afirma que as despesas com assistência pública aumentaram, os processos de generalização da seguridade social foram lentos, as despesas hospitalares cresceram e os seguros não cobriam todos os gastos associados.

Ainda com a introdução da seguridade social como um dos componentes da proteção social francesa, a assistência social manteve o papel que vinha sendo construído. Mas, ao mesmo tempo, a institucionalização da seguridade social deu andamento a uma complexidade crescente no conjunto do sistema que alcançou níveis de superposição e interpenetração de lógicas diferenciadas.

Os princípios de fraternidade e de solidariedade foram os eixos constitutivos das principais linhas dessa política e sustentaram um esquema que contemplava, naquele momento, três tradições:

• os dispositivos da assistência pública chamados “socorros públicos”, do tempo da Revolução Francesa, que mobilizavam o Estado enquanto devedor de prestações e eram orientados a todos aqueles que estavam impossibilitados de cuidar de si mesmos;

• por outro lado, a previdência, que se apoiava nos princípios do mutualismo, compreendendo a associação de diferentes grupos socioprofissionais, através dos princípios da divisão dos riscos, ofereciam seguridade econômica aos assalariados dessas categorias;

• por último, a seguridade social, longe de ser uma simples extensão da previdência, concebeu, com as primeiras leis sociais, entre o fim do século XIX e o começo do século XX, uma proteção social ampliada, em termos de direitos e obrigações, que contribuiu para estabelecer o princípio da solidariedade na sociedade salarial.

Figura 1. As três lógicas do sistema francês de proteção social: assistência, previdência, seguridade social

Fonte : www.vie-publique.fr. (construção própria)

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