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A assistência social e os desafios das mudanças nas formas de administração e gestão

A partir de 1990, a economia e a administração do Estado passaram por reformas estruturais que envolveram a privatização de empresas públicas, abertura financeira e comercial com taxa de câmbio fixa, passagem de serviços públicos ao setor privado, desregulação de mercados internos e igual tratamento para o capital estrangeiro e local. Do ponto de vista do desenho institucional, redefiniu as normas no denominado “processo de modernização do Estado” como imperativo para consolidar a estabilidade econômica e as mudanças institucionais. Em segundo lugar, foi reformulada a Constituição Nacional, e começou a ter vigência a Constituição de 1994, que foi tratada neste capítulo. Cabe lembrar que, na tradição latino-americana, a Constituição é considerada uma fonte relevante de legitimidade dos atos do poder político, um argumento importante dos atos dos governos e partidos políticos, enfatizando direitos e garantias. Na área social, se descentralizou a educação primária e a secundária; foi instituída uma nova lei nacional para o regimento do sistema educativo: a Lei Federal de Educação. Houve mudanças no sistema de saúde e de obras sociais, foi reorganizado o sistema da previdência e reformado o regime de acidentes de trabalho e doenças profissionais.

Até meados da década de 1970, acreditava-se que as oscilações próprias da economia compunham o processo de crescimento e desenvolvimento. A idéia dos bloqueios ao desenvolvimento era meramente circunstancial e os arranjos institucionais do Estado de Bem-Estar se construíram como prolongamento do suposto funcionamento positivo da economia. Pode-se falar de crise do Estado de Bem-Estar na América Latina desde a década de 1980, quando a recuperação do Estado de direito na ordem política foi

acompanhada por ações tendentes à desregulacão normativa das instituições públicas em favor da “regulação” automática das forças do mercado.

As reformas implementadas na Argentina, a partir de algumas medidas tomadas durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), mais amplamente aprofundadas durante o governo de Carlos Menem (1989-2000), são consideradas como uma fundação dos novos desenhos institucionais no âmbito social e na economia da Argentina. Para alguns autores, deixou de ser um modelo híbrido para se assemelhar a um regime residual de tipo liberal. 143

A descentralização constitui-se, na Argentina, em uma idéia-chave das reformas sociais do governo de Carlos Menem. Foi considerada como a principal solução para superar as falhas de decisão e gestão concentradas que tinham caracterizado a política social dos serviços de caráter universal: saúde, educação e fundos sociais da área da moradia e de política alimentar, durante o século XX. O processo de descentralização teve caráter setorial administrativo, feito por meio da transferência de poderes ao âmbito local – as províncias –, como a decisão e a gestão de serviços públicos. O mecanismo que caracterizou o processo foi a transferência de estruturas organizacionais e recursos humanos para um esquema de certa autonomia política (“descentralização política”) aumentando o protagonismo das províncias e diminuindo, ao mesmo tempo, o protagonismo dos municípios, com exceção de alguns casos pontuais.144

A partir desse diferencial, as políticas de assistência enfrentam dois desafios, se considerados sob a análise da conformação do desenho institucional argentino a partir da reforma:

• o federalismo, que é um marco institucional de referência: desde suas origens, o funcionamento e financiamento do Estado caracterizaram-se pela separação de responsabilidades e funções constitucionais entre os diferentes níveis de governo, o nacional e o provincial, tal como foi apresentado nos primeiros parágrafos. As atribuições e a capacidade de arrecadar impostos do governo nacional prevalecem

143 Alberto BARBEITO e Rubén LO VUOLO, La nueva oscuridad de la política social: del estado

populista al neoconservador. 1998.

144 Para esse processo, pode-se consultar o trabalho de Fabián REPETTO e Guillermo ALONSO, La economía política de la política social argentina, 2004, item III. “La descentralización de los servicios

sobre os governos provinciais e ambos os governos estão articulados pelo regime de co-participação federal de impostos, permanentemente sujeito a uma disputa pela distribuição de recursos entre o governo nacional e as províncias;

• a fragmentação institucional: em diversos acordos institucionais, vem se tentando articular políticas de proteção social entre o governo nacional e as províncias. O processo de transferência de responsabilidades nas áreas de saúde, educação e execução de programas sociais às jurisdições provinciais, a partir da reforma de 1990, demandou a criação de conselhos coordenadores, entre os quais se destacam os “conselhos federais”: Conselho Federal de Saúde, o Conselho Federal de Educação, o Conselho Federal do Trabalho e o Conselho Federal de Previdência Social.

Repetto e Alonso (2004) observam que as províncias receptoras de serviços e programas sociais correspondem a um “heterogêneo mosaico de realidades”. Naquelas províncias que já tinham uma estratégia própria de política social que incorporava aspectos da descentralização ou que tiveram capacidade para construí-la rapidamente durante o processo, a transferência do nível central de serviços e programas e recursos resultou positiva, pois permitiu potenciar uma ação própria e coerente de uma perspectiva territorial. Nas províncias que careciam de estratégias próprias, a descentralização promovida a partir do plano nacional acentuou a falta de projetos autônomos. Contudo, os processos de descentralização derivaram numa marcada dispersão e fragmentação do modo de decidir, desenhar, financiar, implementar e avaliar a política social argentina. O problema não é a coexistência de múltiplos desenhos institucionais, mas a dispersão e fragmentação, a baixa qualidade institucional formal e informal e a falta de acordos básicos e sustentáveis para definir quem faz o que (e com que recursos).

Pela profundidade da crise durante o ano de 2001, criou-se o Conselho Nacional de Coordenação de Políticas Sociais (CNCPS), cujas funções são:

• a coordenação horizontal entre os distintos executores das políticas setoriais no território nacional, a fim de integrar e orientar algumas intervenções;

• a busca de atenuar e resolver as desigualdades entre os atores da área das políticas sociais: um governo nacional relativamente forte e governos provinciais frágeis e muito heterogêneos;

• a busca de outorgar legitimidade aos programas nacionais e aos organismos financeiros internacionais.

A relação entre direitos, legislação e políticas é fundamental para definir um modelo de país, pois determina, entre outros aspectos, o marco institucional medular a partir do qual se exprimem as políticas sociais. Este exercício, acredito que pode contribuir para reparar, no valor do nível jurídico-normativo, na definição, elaboração e implementação de políticas sociais, em particular, as de assistência social. Nos últimos anos, as “formalidades” jurídicas foram se deslocando de um raciocínio que exalta a discordância entre o direito formal e a realidade social, fato que não nego, mas, ao mesmo tempo, há um aumento e multiplicidade de normas organizativas que se incorporam à estrutura institucional estatal. Contudo, um Estado que procure garantir integração e bem-estar ao conjunto dos cidadãos, é compelido a incorporar o direito como mediação entre o Estado e a Sociedade, para o logro desses fins. Trata-se de fins do Estado que estão além do direito, mas que se realizam por meio dele. Sua ação vai ser mensurável pelo cumprimento de normas jurídicas e também pela aplicação de objetivos éticos, sociais, econômicos e interesses políticos. Conclui-se que é nesse contexto que se deve pensar os processos de reorganização político-institucional e um novo debate que incorpore o direito à assistência social nos processos de concepção jurídico-legislativa das políticas sociais argentinas.

CAPITULO 3

BRASIL. A ASSISTÊNCIA SOCIAL NO SISTEMA DE PROTEÇÃO SOCIAL

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, introduziu a seguridade social, integrando nela as políticas de saúde, previdência e assistência social. O caráter social do texto constitucional constituiu-se no ponto de partida para redirecionar o papel do Estado na redução das desigualdades sociais e na busca de um novo padrão de relações entre Estado-Sociedade.

A Carta Magna, ainda que não respondesse a todos os anseios dos vários segmentos da sociedade, sem dúvida nenhuma é a garantia jurídico-formal das liberdades e direitos básicos dos cidadãos brasileiros. Elevou o nível dos direitos sociais e responsabilizou o Estado pela direção de mais justiça social. Reabriu o espaço para o reencontro do Estado de direito, fincando-o em modernos princípios liberais.

A partir do estudo produzido pela Universidade de Georgetown, em parceria com a Organzação dos Estados Americanos (OEA) e a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais do Chile (Flacso), que compara as Constituições de países latino-americanos, pode- se ponderar que apenas as Constituições da Bolívia e a de Cuba fazem menção à assistência social, embora com nuanças de proteção ou amparo social. Honduras e Panamá comprometem-se a institucionalizar a assistência social. O México promulgou recentemente uma lei de assistência social, mas não detalha em sua Carta Magna referência à assistência social. A inclusão do direito à assistência social nos conteúdos constitucionais de 1988 coloca o Brasil em posição avançada, pela adesão a um conceito amplo de cidadania, que responsabiliza prioritariamente o poder público pelas políticas sociais, situadas em um patamar de destaque e harmonizadas com uma política ampla de proteção social. 145

145 A Base de Dados Políticos das Américas é um projeto do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Georgetown em colaboração com a Subsecretária de Assuntos Políticos da Organização dos Estados Americanos e a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais do Chile. Oferece informação sistematizada sobre instituições e processos políticos, constituições nacionais, poderes do Estado, eleições, estudos político-constitucionais e outros temas vinculados à democracia, para os seguintes países: Antiga and Barbuda; Argentina; Bahamas; Barbados; Belize; Bolívia; Brasil; Canadá; Chile; Colômbia; Costa Rica; Cuba; Dominica; Equador; El Salvador; Estados Unidos da América; Granada; Guatemala; Guiana; Haiti;

A introdução da assistência social na seguridade social apresentou, nos anos posteriores a 1988, várias inquietações. Por um lado, o conceito de seguridade social, sistematizado em 1942 pelo I Relatório de Lord Beveridge, já exprimira uma postura com relação à pobreza, estabelecendo o reconhecimento do cidadão, atribuindo-lhe direitos sociais, propondo a universalização dos programas de saúde, educação e assistência social e sustentando a concepção de Estado de Bem-Estar Social. A Constituição de 1988 surge quando o Brasil se encontra no estágio de ter que levar o Estado a assumir suas responsabilidades na área social e responsabilizá-lo por esta política de atenção - embora em parceria com toda a sociedade civil -, com quem devia assumir o custeio e a sua construção. Na mesma época, nos países capitalistas desenvolvidos, ocorrem discussões a respeito da crise do Estado de Bem-Estar Social, revendo-se a proteção estatal conquistada no pós-guerra sob a égide da seguridade social e colocando-se como fundamental a cooperação subsidiária da sociedade.

Além do mais, iniciava-se no país um vasto percurso reflexivo da prática da assistência social, e desta como política pública - nunca antes considerada pela tradição constitucional -, visando desvendar uma retórica que avança no sentido da democracia e da conquista de direitos sociais, mas que, ao mesmo tempo, encontra raízes em práticas e fundamentos teórico-ideológicos conservadores.

Este capítulo propõe retomar esses conteúdos sobre a assistência social e examinar os fundamentos teórico-ideológicos, as faces da regulamentação estatal das formas assistenciais e da assistência social a partir da perspectiva que incorpora os conteúdos constitucionais e as formas assumidas por essas regulações no contexto da configuração assumida pela proteção social. A constituição da assistência social é parte de um processo complexo, no qual o Estado têm objetivos diversos, que se exprimem em uma política e construção de uma arquitetura institucional para implementá-la. A exposição parte das questões propostas pelos trabalhos de Aldaíza Sposati (1987 e 1988) e Maria Luiza Mestriner (1992 e 2001), utilizando-os como fontes, e sugere um análise que procura recuperar as relações entre a conformação do Estado e a assistência social, com ênfase nos conteúdos constitucionais, no período da passagem das formas assistenciais do Brasil

Honduras; Jamaica; México; Nicarágua; Panamá; Paraguai; Peru; República Dominicana; San Kits e Nevis; Santa Luzia; San Vincent e as Granadinas; Suriname; Trindade e Tobago; Uruguai; Venezuela. (Anexo I)

Imperial à Velha República e na constituição do Estado de Bem- Estar, para finalizar com a abordagem da configuração recente.