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moradia, saúde pública e criminalidade urbana. Esses assuntos tornaram-se os vetores principais dos debates sobre a questão social. No momento de instituição da beneficência, a concepção de pobreza era explicada com base em dois argumentos: o azar (doença, morte ou acidente), ou falta de moral e ausência de virtude. A ação da beneficência foi uma iniciativa do poder público sob um tom moralizador e não se constituiu em resposta a uma demanda ou exigência na qual se impõe uma visão da sociedade organizada em estratos com deveres e obrigações.

2.2 A construção de um saber sobre o social

Esse período assinalou um espaço de tempo no qual a relação entre Estado e Sociedade, e as instituições políticas e sociais em que essa relação se exprimiu, foi debatida por várias vertentes reformistas: católica, socialista e liberal, não só do ponto de vista estatístico, social e econômico, como também um desafio intelectual e fator de ponderação para a elaboração de um projeto de transformações políticas e ideológicas.90 Surgem os esquemas e as classificações explícitas e sistemáticas dos pobres, em consonância com a expansão de serviços sociais, e, notadamente nos hospitais que dependem da Assistência Pública da Municipalidade de Buenos Aires, estabelecem-se regulamentos nos quais se exige um atestado de pobreza dos pacientes.

O desenvolvimento de uma nova legislação social e das instituições que deveriam tratar os novos problemas sociais exigia um novo tipo de conhecimento, que economistas, sociólogos e juristas podiam proporcionar. Eduardo Zimerman (1992) assinala que esses intelectuais se manifestaram como um grupo nitidamente diferenciado e manifestadamente comprometido em levar adiante a transformação institucional do país. O autor distingue três distinções nessa geração de intelectuais que constituiu o reformismo liberal:

• quanto à sua base social, foram os profissionais advogados e médicos, com vocação para a vida intelectual e ativa participação no mundo acadêmico;

90 Para aprofundar o tema, pode-se consultar: Eduardo ZIMMERMAN, Los intelectuales, las ciencias sociales y el reformismo liberal: 1890-1916, 1992; Mirta LOBATO, Nueva historia Argentina: el progreso,

la modernización y sus límites (1880-1916), 2000; José Luis ROMERO e Luis Alberto ROMERO, Buenos Aires: historia de cuatro siglos, 2000; Alfredo CARBALLEDA, Del desorden de los cuerpos al desorden de la sociedad, 2004; Margarita ROZAS, Las modificaciones de la intervención profesional en relación a la

• ideologicamente, foram os liberais com convicções ligadas à idéia de progresso, freqüentemente com marcada oposição ao clero. Suas posturas quanto à solução da questão social dirigiram-se à busca de um caminho intermediário entre o modo de fazer (laissez-faire) ortodoxo e o socialismo de Estado;

• as posturas reformistas no social basearam-se na legalidade, ou na convicção de que a política parlamentar era a instância própria para a busca de soluções, a partir de um olhar científico que acentuará a importância das ciências sociais como guias da política estatal na matéria. Esse olhar baseado na ciência inspirava-se nas produções científicas que estreavam no panorama internacional, e procurava adaptar às condições locais os precedentes estrangeiros. A partir do exame do período pode-se distinguir uma nova linguagem política, centrada no “social”:91Aqueles que advogavam por uma extensão das atividades estatais em matéria social, não estavam introduzindo um conceito revolucionário no discurso político do momento. De fato, na mudança do século, havia suficientes instâncias de intervenção estatal em matéria econômica e social para tornarem difícil a categorização das políticas oficiais como um estrito laissez-faire;

• não obstante o reconhecimento da situação prévia, não há dúvida de que a nova linguagem do “social” introduzida no debate político a partir das ciências sociais significou um forte impulso ao movimento reformista. O surgimento da sociologia como ciência ‘total’ da sociedade, a substituição de postulados individualistas da economia política clássica pela nova “economia social”, desenvolvimentos de teoria jurídica que introduziram conceitos como “defesa social” em direito criminal ou “risco social” e “obrigação social” em matéria civil deram nova forma à noção tradicional de responsabilidade. A medicina social obteve alto grau de prestígio acadêmico e acompanhou a fundação de instituições como o Museu Social Argentino. Essas feições foram alguns dos sinais do impacto que essa nova

91 Em anos recentes, os historiadores das idéias argumentaram que o objeto próprio da disciplina deveria ser não a repetida encadeação de idéias ou grandes textos que conformam o princípio geral do pensamento político ocidental, mas, pelo contrário, o estudo do surgimento de novas linguagens políticas, e das formas de inserção dessas novas linguagens no contexto social e intelectual do período em estudo. Pode-se aprofundar essas idéias em Eduardo ZIMMERMAN,Los intelectuales, las ciencias sociales y el reformismo liberal: 1890-1916, 1992, p. 563, cita: J.G. POCOCK, Languages and their implications: the transformation of the study of the political thought”, In: Politics, language and time: essays on political and history, (Londres, Methuen, 1972). pp. 3-41, SKINNER, “Some problems in the analysis of political thought and action” (In:

linguagem política do “social” produz na sociedade argentina no começo do século XX;

• a introdução da corrente reformista social modificou profundamente a definição das relações entre o Estado e a sociedade, fato nem sempre reconhecido na historiografia do período. Contudo, isso não produziu o abandono dos fundamentos liberais na política, na economia e na cultura. Os mesmos reformistas reconheciam os princípios liberais como ainda vigentes nesse momento. Foi a chegada do radicalismo ao poder que abalou a confluência entre liberalismo e reforma social. Em definitivo, seria nos anos de entre-guerras que o nacionalismo e as novas correntes ideológicas afetariam de maneira dramática o debate político argentino e que o demarcaram entre o Estado e a questão social com forte influência nas décadas que se seguiram.

Uma das caraterísticas da corrente acadêmica ligada ao reformismo social, político e moral foi orientar as incipientes ciências sociais argentinas para o estudo de problemas práticos, numa perspectiva que ponderava os limites da intervenção estatal na sociedade, sem esquecer a necessidade de efetivar uma reforma moral, social e política. Muitos deles consideram como parte do seu dever pôr em prática suas idéias por meio da criação de novas instituições estatais orientadas para distintas áreas da reforma, situando seus argumentos em um ponto eqüidistante entre a concepção de Estado não intervencionista, a concepção de laissez-faire ortodoxa, e o socialismo de Estado.

Eduardo Wilde e Guillermo Rawson, reconhecidos médicos ligados à corrente higienista, foram os primeiros a argumentar a favor da ampliação de um conceito de saúde pública que envolvesse a idia da saúde física e moral da população. Assim, na medida em que a pauperização da população foi reconhecida como um problema colectivo e não individual, reclamaram pela institucionalização de serviços que, por um lado, satisfariam às necessidades da população e, por outro, melhorariam as condições gerais de acesso ao trabalho.92

92 Desde o governo de Bernardino Rivadavia, os médicos desempenharam funções no Estado para as quais apenas eles tinham habilitação. Durante a segunda metade do século XIX, organizados em associações, reorganizaram velhas faculdades ou recriaram outras; criaram a Academia de Medicina e deram vida a numerosas publicações médico-profissionais. Por múltiplos caminhos, ofereceram à sociedade uma imagem de si mesmos caritativa e científica e foi por isso que assumiram funções destinadas a preservar a saúde pública e manter as repartições de assistência pública municipal.