• Nenhum resultado encontrado

Uma das formas desse estudo parte de um enfoque que prioriza o processo de institucionalização de intervenções estatais orientadas para a atenção das necessidades sociais. O trabalho de Emilio Tenti, “Políticas de assistência e promoção social na Argentina”, resgata um estudo pormenorizado de como o Estado moderno instala instituições especializadas na intervenção sobre necessidades específicas dos setores tipificados como pobres, privilegiando uma abordagem que o autor denominou de “análise das políticas assistenciais e de promoção”.

A Sociedade de Beneficência foi criada em 2 de janeiro de 1823 e constitui uma das primeiras formas de intervenção orgânica em assuntos sociais do Estado Argentino, na tentativa de se deslocar dos padrões básicos da caridade cristã da qual herdou alguns ritos e formas.

Cabe destacar que essa forma assistencial, anterior à Constituição Argentina de 1853,87 que é considerada o primeiro ordenamento constitucional sobre o qual se assentaram as bases do Estado moderno, traz três décadas de disputas entre as províncias.88

87

Inicia-se com um preâmbulo que sintetiza o programa legislativo e político dos constituintes. “Nós, os representantes do povo da Nação Argentina, reunidos em Congresso Geral Constituinte por vontade e eleição das províncias que a compõem, em cumprimento dos pactos preexistentes, com o objeto de constituir a união

A Sociedade de Beneficência expandiu suas atividades na atenção às crianças órfãs, idosos, mães desamparadas e pessoas em situação de pobreza geral ao ritmo do crescimento e institucionalização do aparelho estatal argentino. Sob sua égide, difundiu-se e empregou-se a categoria do “pobre envergonhado” e indecoroso, que tem uma larga tradição na Argentina e fez parte do discurso das estratégias de beneficência até quase 1940. Correspondem nesse momento àqueles que padeceram de um descenso social consideram- os como “merecedores” da ajuda social.

Emilio Tenti (1989) e Estela Grassi (1989) 89 coincidem em assinalar que, apesar dos reiterados discursos comemorando a iniciativa privada, a maior parte dos fundos da instituição provinham do orçamento nacional; situação que contrasta com o uso discricionário que fizeram deles as damas que compunham sua direção. As damas da beneficência da Capital provinham dos estratos mais altos da estrutura social da época, todas foram recrutadas entre esposas e parentes próximos dos grandes latifundiários, comerciantes e proprietários significativos da cidade e da província de Buenos Aires.

nacional, afiançar a justiça, consolidar a paz interior, prover à defesa comum, promover o bem-estar geral, e assegurar os benefícios da liberdade para nós, para nossa posteridade e para todos os homens do mundo que querem habitar no solo argentino; invocando a proteção de Deus, fonte de toda razão e justiça: ordenamos, decretamos e estabelecemos esta Constituição para a Nação Argentina.” Esse Preâmbulo teve valor interpretativo para a doutrina constitucional argentina, tanto que a Corte Suprema de Justiça da Nação explicou que a idéia de promover o bem-estar geral é sinônimo de bem comum.

88

O conteúdo do texto recebeu a inspiração da Constituição estadunidense, ao adotar o modelo presidencialista e o federalismo, componente essencial da ordem constitucional norte-americana. A Constituição foi aprovada com o apoio dos governos provinciais, com exceção de Buenos Aires, que se separou da Confederação Argentina até 1859, quando negociou sua reincorporarão à condição de modificar o texto constitucional.

89 Cf. Emilio TENTI, Estado y pobreza: estrategias típicas de intervención, 1989, p. 41-44.Também se pode consultar Estela GRASSI, La mujer y la profesión de asistente social, 1989. A autora faz um percurso pela história da assistência social na Argentina, para conciliar os conteúdos da sua hipótese, que apontava que as condições que justificavam a presença de mulheres para o exercício da beneficência se mantinhamvigentes como atitude necessária para o desempenho de trabalho social ao fim da década de 1980. Claudia KRMPOTIC, La protección social pre-mercantilizada: la experiencia argentina desde la sociedad colonial hasta la caída de Rosas (1515-1852), 2002.

Quadro 8. Fundamentos e ações da beneficência na constituição do Estado moderno argentino Beneficência

• Constitui-se na instituição típica de intervenção no social no momento constitutivo do Estado moderno.

• Inscreve-se no processo de consolidação da laicização de intervenção social, a qual, em uma etapa anterior, pertenceu a outras corporações: igreja, congregações, etnias, etc.

• O Estado intervém por delegação, embora os recursos sejam públicos, aleatórios e descontínuos.

• Exprime-se por meio de ações exemplares dirigidas aos beneficiários que exaltaram a moral dos atos de vida.

• Prioriza a internação e a segregação.

• Não é responsabilidade de “especialistas” nem de um corpo de funcionários do Estado, mas sim de pessoas dotadas de tempo, riqueza e condições morais consideradas superiores. • Estabelece-se uma relação de tutela entre o

que da e o que se recebe.

• É um dever para aquele que dá e não um direito para quem recebe.

Fontes: Norberto ALAYON, Hacia la historia del trabajo social en la Argentina, 1980; Emilio TENTI, Estado y

pobreza: estrategias típicas de intervención, 1989; Estela GRASSI, La mujer y la profesión de asistente social, 1989.

Embora surgissem nesses anos outras entidades privadas laicas e religiosas, a Sociedade de Beneficência foi hegemônica nessa área, até que começaram a se perfilar os argumentos provenientes do campo da medicina social e da higiene públicas, que fundamentaram a intervenção do Estado no social. Na fase constitutiva do Estado argentino, as intervenções estatais atendiam a diferentes níveis de necessidades: educação, saúde, abandono, velhice, etc., e foram feitas de forma indistinta até, progressivamente, se constituírem em políticas especializadas: educação e saúde. A política de assistência foi se ancorando naquelas pessoas que não eram atendidas pelos sistemas formais de prestação em formação nas quais o incipiente Estado argentino delegou o controle e a expansão da beneficência e, por sinal, a educação primária esteve em mãos de uma sociedade privada que foi subsidiada e constituída, como tal, pelo poder público.

Em 1880, foi criado o Departamento Nacional de Higiene e seu diretor, Dr. Juan Gil, formulou um anteprojeto de lei sanitária, de higiene e beneficência públicas, pelo qual a Sociedade de Beneficência passou a depender do Governo Nacional. Essa direção nacional seria a encarregada de administrar economicamente todos os estabelecimentos públicos de caridade ou beneficência custeados ou subvencionados com recursos nacionais ou municipais.

No início do século XX, com o processo de expansão da vida urbana e a imigração em massa, a dádiva e o prêmio, que exemplificavam e moralizavam, não constituíram mais os

recursos eficazes para resolver os desafios modernos que envolviam os problemas de moradia, saúde pública e criminalidade urbana. Esses assuntos tornaram-se os vetores principais dos debates sobre a questão social. No momento de instituição da beneficência, a concepção de pobreza era explicada com base em dois argumentos: o azar (doença, morte ou acidente), ou falta de moral e ausência de virtude. A ação da beneficência foi uma iniciativa do poder público sob um tom moralizador e não se constituiu em resposta a uma demanda ou exigência na qual se impõe uma visão da sociedade organizada em estratos com deveres e obrigações.

2.2 A construção de um saber sobre o social

Esse período assinalou um espaço de tempo no qual a relação entre Estado e Sociedade, e as instituições políticas e sociais em que essa relação se exprimiu, foi debatida por várias vertentes reformistas: católica, socialista e liberal, não só do ponto de vista estatístico, social e econômico, como também um desafio intelectual e fator de ponderação para a elaboração de um projeto de transformações políticas e ideológicas.90 Surgem os esquemas e as classificações explícitas e sistemáticas dos pobres, em consonância com a expansão de serviços sociais, e, notadamente nos hospitais que dependem da Assistência Pública da Municipalidade de Buenos Aires, estabelecem-se regulamentos nos quais se exige um atestado de pobreza dos pacientes.

O desenvolvimento de uma nova legislação social e das instituições que deveriam tratar os novos problemas sociais exigia um novo tipo de conhecimento, que economistas, sociólogos e juristas podiam proporcionar. Eduardo Zimerman (1992) assinala que esses intelectuais se manifestaram como um grupo nitidamente diferenciado e manifestadamente comprometido em levar adiante a transformação institucional do país. O autor distingue três distinções nessa geração de intelectuais que constituiu o reformismo liberal:

• quanto à sua base social, foram os profissionais advogados e médicos, com vocação para a vida intelectual e ativa participação no mundo acadêmico;

90 Para aprofundar o tema, pode-se consultar: Eduardo ZIMMERMAN, Los intelectuales, las ciencias sociales y el reformismo liberal: 1890-1916, 1992; Mirta LOBATO, Nueva historia Argentina: el progreso,

la modernización y sus límites (1880-1916), 2000; José Luis ROMERO e Luis Alberto ROMERO, Buenos Aires: historia de cuatro siglos, 2000; Alfredo CARBALLEDA, Del desorden de los cuerpos al desorden de la sociedad, 2004; Margarita ROZAS, Las modificaciones de la intervención profesional en relación a la