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A reforma jurídica de 1953: a assistência social

Um ponto de inflexão no desenvolvimento das leis de assistência pública na França foram as reformas do ano de 1953, momento no qual as ações e as leis associadas à assistência pública passaram a ser denominadas de “assistência social”.

Essas reformas pretendiam codificar todos os numerosos dispositivos legais e regulamentares existentes, assim como simplificar os procedimentos. Essa mudança implicou uma passagem no tratamento legislativo da noção “insuficiência de recursos”, que fundamentava a maioria das legislações da área, para a noção jurídica de “privação de recursos”, assim como reafirmou o princípio de obrigação da coletividade pública em relação às pessoas em situação de necessidade.

Segundo Amédée Thévenet, o direito à assistência pública ficou bem delimitado na Resolução do Conselho de Estado de 15 de fevereiro de 1909: “a assistência é dada em virtude do direito da lei e não por uma decisão discricional de uma autoridade administrativa”.59 De fato, do ponto de vista do reconhecimento do direito, a função das autoridades administrativas seria apreciar se as condições legais estavam sendo cumpridas. Trata-se de um direito que não é oponível ou não é atribuível por argumentos ligados à indignidade do demandante, à sua falta de responsabilidade ou às suas condições de residência. É um direito subordinado à entrada em uma das categorias definidas.

As reformas de 1953, com modificações, foram inseridas no Código de Ação Social e das Famílias por lei de 3 de abril de 1958. Em sua relação com a seguridade social, o direito de assistência social e da ação social foi se legitimando no sistema jurídico francês.

As mutualidades de previdência, longe de verem seu campo de ação reduzido, desenvolveram-se e organizaram-se de maneira a introduzir o princípio de afiliação obrigatória para propor aos diferentes grupos socioprofissionais uma melhora diferenciada das prestações de seguridade social, somando uma proteção complementar facultativa que significou um retorno – em alguma medida – à previsão individual.

O direito à assistência social não foi absorvido pelos regimes de seguridade social e os seus direitos específicos exprimiram os limites do mesmo sistema de seguridade social. A assistência social, nessa conformação, continuou sendo herdeira da lógica da assistência pública, mas, longe de ser residual, manteve-se como um componente estrutural do sistema de proteção social que, desde o nascimento até os formatos atuais de começo do século XX, passou por um momento de extensão da sua cobertura e momentos de redução de seu campo.60

A extensão do campo da assistência social, nos anos que se seguiram à reforma de 1953, foi dada pela incorporação de categorias e benefícios: assistência social aos vagabundos (1959), centros de abrigo e de reinserção social (1959-1974), alocação para aluguel (1961), alocação para assistência em tarefas domésticas (1962), alocações militares (1964-1973).

Nesse percurso, as ações de assistência social adquiriram características específicas, entre elas, o seu caráter subsidiário à constatação da existência de recursos, embora isso pareça contraditório com relação às características dadas ao direito: as prestações são outorgadas dependendo da constatação da falta de outro tipo de recursos.

A questão dos recursos é um dos aspectos discutido pelas comissões de assistência social. Existem defasagens quando se tratam de pessoas idosas ou deficientes, internadas em instituições, que possuem propriedades pessoais (casa própria), mas não recursos financeiros para complementar o pagamento da sua internação. Nesses casos, as comissões departamentais são as que decidem a respeito. A partir da descentralização político- administrativa houve a conciliação desses critérios e alguns deles foram fixados pelos conselhos gerais dos departamentos.

Outros dois aspectos foram conseqüência da reforma da assistência social ocorrida em 1953. Por um lado, a assistência social teve aumentada sua abrangência, com a

60 Vide : Jean-Jacques DUPEROUX, Droit de la sécurité soclal,1980; Bruno PALIER, Gouverner la sécurité social : les réformes du systéme français de protection sociale depuis 1945, 2003; Michel

BORGETTO ; Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action social, 2004; Lucie PAQUY; Patrice BOURDELAIS (dirs.), “Les systèmes européens de protection sociale : une mise en perspective, 2004.

incorporação de novas necessidades. Por outro lado, foram envolvidas, nessa área, ferramentas de organização administrativa e regulamentações que organizaram o esquema departamental dos estabelecimentos e serviços médico-sociais. Na Figura 2, apresentamos um esquema das prestações de assistência social ordenadas por categoria de usuários.

Figura 2. Assistência social na França, em 2004, por categorias de usuários e por prestações

Fontes: Michel BORGETTO; Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales. 2004 : Amédée THEVENET, L’aide sociale

aujourd´hui: nouvelle étape pour la décentralisation, 2004. (Construção própria) Aide Social ou

Assistência Social

Assistência Social à Infância

Assistência Social aos Adultos Assistência Social às Pessoas Idosas Assistência Social às Pessoas Deficientes Assistência Social de Reinserção Assistência em Domicílio em Forma de Prestações ou em Dinheiro Prestações de Acolhida Alocação Personalizada de Autonomia Alocação de Adultos

Deficientes RMI Renda Mínima de Inserção, atualmente, RMA

Assistência Médica

Alocação Suplementária por

1.5 As discussões sobre a evolução dos Estados-Providência, o caso francês

A partir dos anos 1980, no contexto das reformas dos sistemas nacionais de proteção social europeus, vem se desenvolvendo uma discussão sobre o desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar. Nesses debates, priorizaram-se os estudos sobre a emergência dos modelos de bem-estar nos países industriais; a identificação de tipologias, variáveis explicativas; assim como uma leitura que enfatiza a análise das trajetórias de desmantelamento parcial dos mecanismos de proteção social e sua adaptabilidade relativa às mudanças econômico- sociais e estruturais.

Vale destacar que boa parte da literatura francesa que estuda os sistemas de proteção social refere-se ao Estado-Providência,61 no lugar de welfare state. François Ewald (1986) assinala o nascimento do Estado-Providência a partir da legislação sobre acidentes de trabalho, em 1898. Na concepção atual, o termo refere-se ao papel da intervenção estatal como elemento regulador das situações de risco social e individual. Quando surgiu, o conceito foi cunhado pelos liberais que criticavam a intervenção estatal e consideravam esse modo de agir próprio da intervenção divina, segundo explica Pierre Rosanvallon.

Discute-se, na França, durante os últimos anos, um aspecto da classificação dada por Esping-Andersen que esse país em uma forma conservadora-corporativa. Na tipologia de Esping-Andersen, cada regime de proteção social percorre um objetivo diferente. O regime liberal, associado aos países anglo-saxões, visa lutar contra a pobreza e o desemprego; o regime social-democrata dos países escandinavos tem por objetivo garantir a igualdade, a coesão e a homogeneidade dos grupos sociais, enquanto que o regime conservador- corporativista visa manter a renda dos trabalhadores em caso de risco social. Para dar conta do cumprimento desses objetivos, os países passaram a aplicar técnicas diferentes: na concepção liberal, as prestações funcionam de acordo com a necessidade e submetem-se à condição de recursos; na concepção social-democrata, os direitos sociais derivam da situação de emprego e as prestações são proporcionais às rendas.

61 Vide : François EWALD, L'État providence, 1986 ; Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004; Pierre ROSANVALLON, La nueva cuestión social: repensar el Estado providencia, 1995; Bruno PALIER, Gouverner la sécurité social: les réformes du systéme français de protection sociale depuis 1945, 2003; Lucie PAQUY, Patrice, BOURDELAIS(dirs.) Les systèmes