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A Renda Mínima de Inserção e a assistência social: entre a proteção e a inserção

A Renda Mínima de Inserção (RMI) 71 foi instituída pela lei de 1º de dezembro de 1988, no contexto do que se denominou o ressurgimento das discussões sobre a pobreza e o que, nesse momento, se denominou “nova pobreza” ligada à temática da exclusão. Para alguns autores, a explicação dessa categoria aparece associada à recomposição tecnológica e ao desenvolvimento do desemprego de massa. Essa prestação foi se desenvolvendo na tensão proteção-reinserção, pois, ao mesmo tempo em que visa inserir os beneficiários pela via de programas de âmbitos social e profissional, procura manter a sua proteção e integração na sociedade pela via de uma renda.

As formas de implementação da RMI foram objeto de importantes debates, na França, pelo seu caráter complexo, dado pela articulação de direitos de proteção social e obrigações associadas ao mundo do trabalho, tal como esse aspecto foi trabalhado neste capítulo em pontos precedentes.

Quadro 6. Conformação do sistema francês de proteção social, por tipos de regimes, em 2004

Seguridade Social Regimes

Complementares Unedic * Assistência Social

Fornece cobertura de riscos por “doença, invalidez, morte”, “acidentes de trabalho, doenças

profissionais”, “ velhice” e “ família” que correspondem cada um a uma faixa.

É composta por diferentes regimes, segundo o tipo de atividade profissional:

- regime geral: comum. É isso que conduz a situar a RMI em concerne à maior parte dos assalariados, estudantes, beneficiários de certas prestações e residentes;

- regime especial: oferece cobertura aos assalariados que não fazem parte do regime geral (funcionários, agentes da SNCF, d´EDF-GDF) **;

- regime dos não-assalariados não-agrícolas: dá cobertura separadamente aos artesãos, comerciantes ou industriais, profissionais liberais, para o seguro- velhice, risco “enfermidade” e é objeto da gestão comunal;

- regime agrícola: abrange os salários agrícolas. É o único regime de seguridade social que não depende do Ministério do Trabalho e da Solidariedade. Depende do Ministério de Agricultura.

Podem fornecer cobertura suplementária de riscos que são tomados a cargo da seguridade social. Alguns são obrigatórios: regimes complementares de aposentadoria de assalariados do setor privado e outros facultativos (mutualidades de saúde, instituições de previdência). Gera o regime seguro- desemprego. É tarefa do Estado e dos departamentos em termos de aporte aos que apresentam necessidades.

*Union National pour l´emploi dans l´industrie et le commerce. **Système National de Chemins de Fer. Fonte: www.vie-publique.fr (Construção própria)

71 RMI (Revenu Minimun d´Insertion)

A lei definiu uma articulação inédita: por um lado, afirmou a RMI como um direito para toda pessoa sem recursos suficientes, mas, por outro lado, afirmou a inserção profissional dos beneficiários como um imperativo nacional e que os poderes públicos devem organizar e fornecer diversos meios para isso, assim como constitui-se uma obrigação para o beneficiário se comprometer a participar das atividades e ações definidas com ele, com o objetivo de inserí-lo no mundo do trabalho.

A Renda Mínima de Inserção apresenta-se como um direito finalizado, quando é considerada como uma dívida da coletividade, na forma do próprio beneficio RMI e de oferta de serviços de inserção, mas exige, ao mesmo tempo, do beneficiário, o compromisso de participar de uma dinâmica de integração e qualificação profissional para reencontrar seu lugar na sociedade.

Portanto, a RMI exprime-se como uma “cesta de direitos”, pois a lei de luta contra as exclusões o colocou como um dos elementos de um dispositivo global contra a pobreza e toda forma de exclusão, especialmente nos domínios do emprego, da educação, da formação, da saúde, da moradia. A lei deu espaço para anexar um conjunto de direitos associados à vontade de extrair os beneficiários do RMI de sua situação de exclusão a outro conjunto de direitos coligados: os beneficiários da RMI são automaticamente assegurados, a partir da lei do dia 27 de julho de 1999, à proteção universal para doentes (couverture maladie universelle) - que se estende a todos os membros do grupo familiar - e à alocação de moradia social.

O direito à RMI pareceria quase universal, em relação a outras prestações especializadas, ou por categorias, tais como a Alocação de Adulto Deficiente ou a Alocação Monoparental. O artigo 2 da Lei 88-1088 de 1º de dezembro de 1988 indica que “toda pessoa residente na França cujos recursos não atinjam o montante do RMI tem direito ao RMI”.72 Portanto, assim expressado, é um direito que tem validade em todo o território francês e em outros departamentos das colônias francesas.

No campo individual, a RMI atinge várias categorias: ex-assalariados, artesãos, etc. Em princípio, a alocação não apresenta restrições e sua universalidade pode ser interpretada

seguindo o argumento de que se trata de uma prestação não relacionada a uma necessidade determinada e cujo objetivo é fornecer um recurso básico aos indivíduos ou às famílias potencialmente beneficiárias. Embora assim expressado, é possível assinalar que há exceções:

• Os beneficiários devem ter 25 anos, mas essa condição pode ser alterada, no caso de terem menos que essa idade e serem responsáveis por crianças. Nessa situação, a idade para acessar o RMI é fixada em 18 anos. Para amenizar os impedimentos ao acesso de jovens na faixa de 18 a 25 anos, instituiu-se um fundo de ajuda aos que estiverem em dificuldades, que é coordenado e financiado por departamento e coordenado por um comitê local, e implementado com ajudas financeiras diretas durante um tempo determinado que permita a inserção dos beneficiários. Esses auxílios são subsidiários a outros dispositivos relacionados aos jovens;73

• A segunda exceção concerne aos estrangeiros, pois devem residir em França de forma regular, isto é, dispor de título de estada (titre de sejour) e residir ao menos há três anos, mas essa última condição está parcialmente descartada em virtude de convenções internacionais subscritas pela França;

• No mesmo sentido, as pessoas que têm a qualidade de aluno, estudante ou estagiário, não podem se beneficiar da RMI, salvo se a condição estiver ligada a uma atividade de inserção relacionada ao quadro da RMI;

• O benefício é unicamente ligado a recursos objetivamente definidos, que devem ser menores do que certo piso definido por decreto. A diferença entre a RMI e as ajudas sociais legais, próprias do universo da assistência social, não está condicionada por um estado de necessidade; é somente a situação econômica objetiva o critério considerado.

Segundo Borgetto, a RMI fica na esfera do modelo assistencial. Os debates parlamentares demonstraram que o RMI não deve desorganizar o mercado de trabalho, os dispositivos de formação para o emprego e nem perturbar os mecanismos de proteção social existentes; trata-se de uma ajuda orientada às carências dos mecanismos de proteção existentes e

profissionais do direito comum. É isso que conduz a situar a RMI em um umbral relativamente baixo de sobrevivência, no qual a conservação psíquica mínima das pessoas se torna problemática. Nesse sentido, o SMIC (Salaire Mininum Interprofessional de Croissance), o Salário Mínimo,74 representou um papel considerável, sendo que a RMI não deve ser fixada em um montante tal que desanime o exercício de uma atividade profissional.75

O montante do auxílio é determinado por decreto, uma vez por ano,76 tendo em conta a evolução dos preços e aumenta conforme o número de pessoas que compõem o lar, considerando os jovens menores de 25 anos. A soma efetivamente depositada para o beneficiário é resultado da diferença entre o montante máximo fixado por decreto, levando em conta o número de pessoas ao seu encargo, e os recursos que o conjunto de pessoas que compõem o lar possam ter (renda por trabalho, outras alocações, etc.). A alocação RMI foi estabelecida, a partir de 1º de janeiro de 2004, em 417,88 euros, por mês, para uma pessoa só e 626,82 euros para um casal sem filhos; um casal com um filho passa para 752,18 euros; um casal com dois filhos, para 877,54 euros, e, a partir desse ponto, cada criança ou pessoa suplementar terá direito a 167,15 euros a mais.77

Enquanto a RMI teve por finalidade imediata pôr fim às situações de extrema precariedade, os circuitos administrativos de depósito da demanda são vários: os serviços departamentais de ação social (DDAS), os Centros de Coordenação de Ação Social (CCAS), as associações e os organismos reconhecidos pelo presidente do Conselho Geral (Caisse d´Allocations Familiales - CAF) e MSA (Caisse de Mutualité Sociale Agricole). Os organismos que recebem a demanda efetuam a “instrução administrativa e social”, que consiste na ajuda no preenchimento dos formulários e fornecimento de justificativas relativas ao estabelecimento dos recursos. As pessoas sem domicílio devem fixá-lo em um dos organismos orientados para esse fim. 78

74 O valor do SMIC foi definido, durante 2005, em 1.217,91 euros/mês, baseado em um contrato equivalente a 35 horas de trabalho.

75 Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004, p. 478.

76 Até 2003, o montante da RMI era fixado duas vezes ao ano. A lei de 18 de dezembro de 2003 previu que a fixação fosse feita uma vez. (Code Action Social et des Familles - Casf, L. 262-2)

77 Segundo o CASF (Code Action Social et des Familles, L. 262-2) o montante é maior do que 50% para a primeira pessoa beneficiária do RMI; de 30% para cada pessoa complementária; e de 40% a partir do terceiro filho. Disciplina Mondialisation et régulation sociale, Professora: Madame Chantal Euzeby, 2005. Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004, p. 478.

A demanda do RMI não é um “instrutivo”, no sentido da assistência social francesa, pois o organismo que recebe a demanda não é obrigado a apreciar o estado de necessidade social do demandante e também não verifica as declarações dele.79 A demanda é transmitida aos organismos que pagam essa prestação (CAF e MAS). A escolha destas duas instituições pode parecer curiosa, pois faz intervir duas estruturas relevantes da seguridade social para uma gestão que não é da seguridade social, com o intuito de tornar a prestação o mais eficaz possível. São ditas instituições que calculam o montante e fazem proposições relativas à dispensa ou à neutralização de rendas após verificação. A decisão de outorgar a prestação pertence ao presidente do Conselho Geral. 80

A alocação é inicialmente atribuída por três meses, prazo considerado indispensável para estabelecer, com os serviços correspondentes, um “contrato de inserção”. Assim, a RMI só pode ser atribuída pelo presidente do Conselho Geral por um período que varia de 3 a 12 meses. E pode estar sujeito a apreciações da Comissão Local de Inserção (CLI), em caso de requisitória, na hipótese de suspensão do benefício. 81

Se consideradas a assistência social e a RMI, no universo da proteção social, a lógica assistencial, longe de se fechar na assistência social e na ação social, se inseriu na lógica da seguridade social com as prestações sociais não contributivas que começaram a funcionar como mínimos sociais.

A RMI incorporou-se à assistência social a partir de 1988, como um dispositivo diferenciado tanto em sua concepção, que está baseada na inserção, quanto em sua organização, já que tem um papel fundamental como última possibilidade de proteção para todos aqueles que não entram na proteção do direito comum; e, ao mesmo tempo, com o imperativo de inserção no mundo do trabalho.

Em segundo lugar, a seguridade social, no sentido estrito, por um lado, manteve junto com o regime geral de salários, os regimes autônomos e especiais, porém, algumas de suas agências são encarregadas de efetivar o pagamento do RMI, indicando que existe uma superposição de lógicas baseadas nas diversas tradições da proteção social.

79 CASF (Code Action Social et des Familles L. 262-37)

80 Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004, p. 482. 81 CASF (Code Action Social et des Familles L. 262-41)

Em um dos extremos, há mecanismos facultativos que se tornam obrigatórios para completar prestações insuficientes e, ao mesmo tempo, a lógica iniciada em 1945, que não conseguiu unificar as prestações asseguradas na seguridade social a torna segmentada em múltiplos regimes, fundados nas solidariedades socioprofissionais; no outro extremo, introduzem-se, na seguridade social, prestações não contributivas, que são próprias da lógica assistencial.

A assistência bifurcou-se. A RMI constitui-se no principal dispositivo de proteção social, ao lado de prestações legais antigas que se mantêm. Em conseqüência, em 2004, coexistiam, no sistema francês de proteção social, um pólo claramente assistencial, constituído pela RMI e a assistência social, até mecanismos de seguridade muito próximos de dispositivos institucionais autônomos e associados numa lógica complementária e de substituição recíproca, segundo apresenta o quadro. 82

Quadro 7. Aspectos relevantes para o estudo da assistência social na proteção social na França, período de 1945 a 2002

Ano Aspectos relevantes para o estudo da proteção social na

França Aspectos relevantes da evolução política

1945 Instituição da Seguridade Social Libération. Início da

Quarta República

1946 Constituição de 27 de outubro Governo de Vincent

Auriol (1947-1954) 1947 Criação do Regime de Aposentadoria Complementar de

Executivos Quarta República (1946-1958)

1953 Reformas na área da assistência social

1956 Assistência social (passagem do nome assistance para aide sociale)

1957 Criação de uma caixa de aposentadoria complementar para os não

executivos (UNIRS) Governo de René Coty (1954-1959)

1958 Constituição de 4 de outubro

Criação do regime de desemprego Quinta República

1959 Centros de Abrigo e Reinserção Social

Assistência social aos vagabundos Governo de Charles de Gaulle (1959-1969) 1961 Alocação para aluguel

1962 Alocações para tarefas domésticas

1967 Passagem de uma caixa única de seguridade social a três caixas

nacionais autônomas População total: 50 milhões de habitantes 1971 Lei Boulin: pensão geral representa 50% dos dez melhores anos,

aposentadoria aos 65 anos e 37,5 anos de contribuição Governo de Georges Pompidou (1969-1974)

1975 Alocação para Adulto Deficiente Governo de Giscard

d´Estaing (1974-1981) 1976 Alocação Monoparental (Alocation Adulte Isole - API)

1978 Generalização das prestações familiares. Suprime-se o critério de atividade

1982 Aposentadoria aos 60 anos 1986 Novo Código da Seguridade Social

Governo de François Miterrand (1981-1995) População total: 55 milhões de habitantes População rural: 26.6% População urbana: 73,4 % 1988 Criação da Renda Mínima de Inserção (RMI)

1991 Implantação da Contribuição Social (CSG) (Contribution Sociale Généralisée)

1992 Substituição da Comunidade Européia pela União Européia Tratado de Maastricht 1993 Reforma Balladur do sistema geral de aposentadorias: passagem

progressiva a 40 anos de contribuição e 25 melhores salários 1995 Plano de Reforma Juppé: leis de financiamento da seguridade

social Governo de Jacques Chirac (1995-2007)

1998 Lei de luta contra a exclusão

1999 Cobertura Universal de Saúde. (CMU) (Couverture Maladie

Universelle) População total: 61 milhões de habitantes

2002 Lei de Renovação da Ação Médico-Social

Fontes: DUPEROUX, Jean-Jacques. Droit de la sécurité sociale, 1980. BORGETTO, Michel; LAFORE, Robert, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004. Aulas da disciplina Mundialisation et regulation sociale. Professora Chantal Euzeby. Aulas da disciplina Politiques sociales et performances économiques. Professor Alain Euzeby. (Construção própria)