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O Estado outorgará: uma interpretação do princípio subsidiário do Estado e as

Bernabé Chirinos, especialista em direito da seguridade social, faz uma análise do princípio de obrigação estatal e a sua relação com os benefícios de seguridade social. Para realizar a análise, parte de uma reflexão sobre o tipo de Estado e o marco constitucional para poder configurar que tipo de papel lhe cabe na seguridade social.

Para Chirinos, a estrutura do Estado argentino com base na divisão de poderes, determina o Estado de direito, no qual a lei é soberana e não a vontade soberana de algumas pessoas. No Estado democrático, vemos duas grandes linhas de ação, que aparecem perfeitamente delineadas em nosso sistema institucional. A primeira linha está dada pelos denominados seguros sociais, no artigo 14 bis, e, a segunda, pela responsabilidade estatal de organizar a assistência social, que emana do princípio inserto no preâmbulo da Constituição Nacional, de promover o bem-estar geral. Ambas as linhas de ação não devem ser competitivas, senão concorrentes. Nas ações que denominamos assistenciais a cargo do Estado, não se deve excluir a atividade responsável dos particulares, seja através de sistemas contributivos ou impositivos.139

Segundo Chirinos, se analisado o princípio “o Estado outorgará os benefícios da seguridade social”, cabe determinar se é o Estado que deve garantir as proteções por meio de atos de gestão direta e prestação de serviços ou, pelo contrário, o termo “outorgará” refere-se só à função de poder de polícia do Estado e, por conseqüência, de controle de acesso à seguridade social.

Da perspectiva da função que cabe ao Estado em relação aos particulares, há uma função subsidiária e supletiva.

A mesma deve ser exercitada, uma vez esgotados os esforços de cada pessoa emergente de sua responsabilidade individual, para amparar ou socorrer suas necessidades se ditos esforços não são suficientes para tal fim. Neste terreno, se encontram as prestações dos serviços assistenciais ou as que se devem prestar quando a atividade privada ou setorial, é insuficiente para cobrir as necessidades emergentes das contingências. (CHIRINOS, 1991: 43-44).

Nessa interpretação, o Estado tem uma função de suplência, e atua em situações excepcionais nas intervenções transitórias justificadas por razões urgentes que incumbam ao bem comum. O termo “outorgará” que surge da Constituição “é o exercício da faculdade legislativa de que está investido o Estado para plasmar em lei os direitos e obrigações do campo da seguridade social, e exercer as funções próprias da assistência social, quando esta deva ser prestada, em função do disposto em relação a prover ao bem- estar geral”. 140

Até aqui foram apresentados os conteúdos medulares do debate sobre o rol do Estado na seguridade e na assistência social, que abalizam as linhas sobre as quais foram se edificando as intervenções sociais na Argentina. Sem dúvida, essas linhas constitucionais devem ser compreendidas na complexidade do regime político argentino e nas alternâncias entre governos civis e militares e conseqüente suspensão das garantias constitucionais. Entre 1930 e 1976 se sucederam seis governos militares: 1930, 1943, 1955, 1962 e 1976, e nem se pôde consolidar a democracia nem se puderam estabilizar no poder os governos militares.

No período de 1949 a 1955 teve vigência a denominada Constituição de 1949, na qual foi incluso o direito ao trabalho como direito social, assim como os direitos dos idosos e da família. Essa Constituição perdeu vigência em 1957, momento a partir do qual voltaram os conteúdos da versão anterior ao ano de 1949, mas com reformas. Sem dúvida, esses condicionantes devem ser levados em conta no acompanhamento da construção das intervenções estatais na área social, embora se deter neles exceda as possibilidades deste trabalho.

A partir da revisão dos elementos que compõem o sistema de proteção social na Argentina, e, particularmente nele, o lugar da assistência social, é possível observar que, na perspectiva constitucional e dos direitos, a assistência social não é contemplada como tal. Nem na Constituição de 1949, que mesmo não vigente, se destaca pelo seu papel na incorporação do direito ao trabalho, dos direitos dos idosos e dos direitos da família - entre outros direitos sociais - no andaime constitucional. Isto também é notado no regime constitucional atual, vigente desde 1994, no qual, a partir da ponderação do texto

constitucional e dos conteúdos das Constituições provinciais, observa-se que se destacam claramente proteções a segmentos específicos: trabalhadores, pessoas com deficiência, idosos, família, mas de um ponto de vista que reforça a noção de um “Estado garantidor” e obrigado em relação à necessidade.

Os questionamentos sobre o papel do Estado na seguridade social e na assistência social foram tratados a partir da análise de alguns especialistas do campo do direito, das quais se desprende o caráter transitório, desse ponto de vista do direito, das prestações de assistência social. Pareceria estar inclusa na seguridade social, mas com a característica de estar sujeita à legalidade, e à afirmação das prestações do seguro social já legalizadas.

Autores relevantes da área da proteção social na Argentina, como é o caso de Aldo Isuani (2006),141 insistem em colocar no debate atual a revisão do caráter deste Estado e de suas

obrigações no desenvolvimento e amadurecimento do Estado-Nação e do Estado de Bem- Estar. Para esse autor, há três princípios sobre os quais se estruturou a política social na Argentina. Por um lado, o princípio discricionário, pelo qual quem dá não tem obrigação de dar e quem recebe não tem direito a receber; esse modelo se correlaciona com a beneficência e se mantém até o presente momento nas políticas públicas argentinas.

Isuani coloca como exemplos recentes os programas de subsídios, as políticas alimentares e o plano de chefas e chefes de lar desempregados; baseados em que não existe obrigação de continuidade, os programas são montados ou desmontados e podem ser mudados por outros. Um segundo princípio no andaime das políticas públicas é a contribuição, na qual estão inclusos: o seguro social, as obras sociais e as aposentadorias. E o terceiro princípio corresponde à cidadania, que se adquiriu e se defendeu, nas políticas de saúde e educação e que, como acompanhamos de forma breve, no momento das avaliações ex post do Estado de Bem-Estar na Argentina, teve uma trajetória diferente, no sentido das bases legislativas e constitucionais constitutivas.

Na Argentina, as primeiras políticas foram as discricionárias, desde o século XIX, desde a Sociedade de Beneficência, passando pela Fundação Eva Perón até o atual Ministério de Desenvolvimento Social. Há toda uma linha de políticas que se administram segundo o princípio de discricionariedade. O seguro social nasce no século XX e se desenvolve até

agora. Logo se desenvolveram os sistemas de cidadania, que são o sistema educativo, implementado desde começos do século XX, e o sistema púublico de saúde, desde meados do século XX. Então, temos hoje uma camada geológica, uma política social que mantém três subsistemas com princípios diferentes. Se observados os gastos, a metade dos recursos é utilizada em educação pública e saúde pública. Isto significa que a cidadania leva a metade dos recursos das políticas sociais, o resto, praticamente, leva o seguro social. Resta uma pequena proporção, que é destinada a planos assistenciais e programas de caráter discricionário que conhecemos.142

Contudo, é necessário considerar que, no imaginário argentino, embora já entrado o século XXI, com menor força, primou um discurso ligado à idéia do direito muito forte. Tal como foi assinalado, no item consagrado à ação assistencial da Fundação Eva Perón e aos governos peronistas da metade de século XX, a racionalidade ideológico-política, das ações desenvolvidas pela Fundação, foi acompanhada por um discurso que apresentava as ações assistenciais como orientadas para transferir um “direito”, direito dos trabalhadores, dos idosos, das crianças, e já não como um dever dos membros mais privilegiados da sociedade. Essa representação - segundo este autor - foi relevante porque assumida pelos setores vinculados à classe trabalhadora e àqueles que não estavam incorporados ao mercado de trabalho, os quais começaram a traduzir suas necessidades em interesses explícitos e demandas pontuais ante as instâncias nas quais se decidem as políticas públicas.

A tendência a perceber o benefício como exclusivamente vinculado com um direito, independentemente de outras considerações (oportunidade, recursos, etc.), constitui uma característica básica da ideologia dos setores populares argentinos que subsiste até a atualidade e se entronca com esse rasgo da cultura nacional que constitui o Estado como depositário de todas as esperanças e dono das soluções de todos os problemas que apresenta a sociedade (TENTI, E. 1989: 82).

Talvez esta trajetória, construída a partir da metade do século XX, em disputa com os fundamentos legais das políticas, seja uns dos caminhos em que repousa a confusão que acompanha as práticas no campo das políticas assistenciais. Além disso, se analisadas as

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políticas assistenciais do ponto de vista da institucionalização, merece se considerar que houve momentos de marcada importância nessa trajetória, tais como no início do século XX, em que se fixaram as bases institucionais e de centralização da assistência social, inclusive incorporando consistentemente as noções e os princípios da experiência francesa, que acabaram dando forma ao aparelho institucional argentino, ainda que, devemos admitir, essas idéias fossem legisladas na construção de uma arquitetura institucional, e não pelos princípios constitucionais e legislativos.

2.11 A assistência social e os desafios das mudanças nas formas de administração e