A partir dos anos 1980, no contexto das reformas dos sistemas nacionais de proteção social europeus, vem se desenvolvendo uma discussão sobre o desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar. Nesses debates, priorizaram-se os estudos sobre a emergência dos modelos de bem-estar nos países industriais; a identificação de tipologias, variáveis explicativas; assim como uma leitura que enfatiza a análise das trajetórias de desmantelamento parcial dos mecanismos de proteção social e sua adaptabilidade relativa às mudanças econômico- sociais e estruturais.
Vale destacar que boa parte da literatura francesa que estuda os sistemas de proteção social refere-se ao Estado-Providência,61 no lugar de welfare state. François Ewald (1986) assinala o nascimento do Estado-Providência a partir da legislação sobre acidentes de trabalho, em 1898. Na concepção atual, o termo refere-se ao papel da intervenção estatal como elemento regulador das situações de risco social e individual. Quando surgiu, o conceito foi cunhado pelos liberais que criticavam a intervenção estatal e consideravam esse modo de agir próprio da intervenção divina, segundo explica Pierre Rosanvallon.
Discute-se, na França, durante os últimos anos, um aspecto da classificação dada por Esping-Andersen que esse país em uma forma conservadora-corporativa. Na tipologia de Esping-Andersen, cada regime de proteção social percorre um objetivo diferente. O regime liberal, associado aos países anglo-saxões, visa lutar contra a pobreza e o desemprego; o regime social-democrata dos países escandinavos tem por objetivo garantir a igualdade, a coesão e a homogeneidade dos grupos sociais, enquanto que o regime conservador- corporativista visa manter a renda dos trabalhadores em caso de risco social. Para dar conta do cumprimento desses objetivos, os países passaram a aplicar técnicas diferentes: na concepção liberal, as prestações funcionam de acordo com a necessidade e submetem-se à condição de recursos; na concepção social-democrata, os direitos sociais derivam da situação de emprego e as prestações são proporcionais às rendas.
61 Vide : François EWALD, L'État providence, 1986 ; Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004; Pierre ROSANVALLON, La nueva cuestión social: repensar el Estado providencia, 1995; Bruno PALIER, Gouverner la sécurité social: les réformes du systéme français de protection sociale depuis 1945, 2003; Lucie PAQUY, Patrice, BOURDELAIS(dirs.) Les systèmes
As críticas francesas recentes em relação a essa tipologia centram-se em defender que a construção de Esping-Andersen reforça só o modelo assegurador obrigatório e ignora o modelo herdeiro da Revolução Francesa, que reconhece o direito dos pobres na sociedade, assim como o papel do modelo republicano no desenvolvimento da assistência pública da Terceira República. Essas argumentações defendem a análise das trajetórias do Estado e dos sistemas de proteção social sob uma perspectiva dinâmica. Nesse contexto, enquadram-se os trabalhos recentes de Bruno Palier, entre outros.62 Um esquema da conformação atual que contempla esses argumentos é apresentado a seguir.
Quadro 2. Caracterização do sistema de proteção social francês em 2004 na perspectiva dos modelos clássicos de proteção social
Modelo bismarckiano Modelo beveridgiano Características dos modelos
por natureza dos riscos
Perda de renda Princípio universalista
Objetivos Assegurar renda de substituição Assegurar mínimo vital
Condições de acesso às
prestações Pertença profissional e exercício profissional presente ou passado
Existência de necessidade
Tipo de prestação Contributiva (para ter o direito
é necessário cotizar) Não contributiva
Contribuições Proporcionais à renda Uniforme
Financiamento Contribuições Impostos para todos (mesmo para aqueles que não trabalham)
Natureza da redistribuição Horizontal (os que estão bem
pagam pelos que estão mal) Vertical (dos ricos em direção aos pobres)
Fonte: Discussão da disciplina Mondialisation et régulation sociale, 2005, Professora Chantal EUZEBY. (Construção própria)
Da análise do sistema contemporâneo de proteção social francês a partir do seu funcionamento, destaca-se que:63
62 Vide: Michel BORGETTO, Robert LAFORE, Droit de l'aide et de l'action sociales, 2004; Lucie PAQUY ; Patrice BOURDELAIS (dirs.), Les systèmes européens de protection social: une mise en perspective, 2004; Bruno PALIER,Gouverner la sécurité social : les réformes du systéme français de
protection sociale depuis 1945, 2003.
• É categorial. A proteção social foi se construindo por profissões e pouco a pouco se unificou em nome da universalidade. O sistema prevê a individualização das categorias de beneficiários, demandando de cada indivíduo a pertença a certo grupo.
• É centralizado e unificado. Na tradição francesa, os riscos foram e são definidos em nível nacional, do mesmo modo que as categorias e as modalidades de intervenção. A descentralização político-administrativa não mudou essa lógica. Mudou-se a forma de intervir, a partir da transferência das intervenções locais, mas manteve-se a definição dos riscos, que continua sendo elaborada pelo aspecto nacional. Um exemplo recente é a Renda Mínima de Inserção (RMI). Amédée Thévenet (2004) refere-se ao sistema francês como um mix entre desconcentração e descentralização. Por um lado, o sistema é desconcentrado, porque o Estado continua “proprietário” do poder, mas exerce esse poder localmente, por meio de seus representantes. A descentralização do Estado transferiu apenas algumas de suas competências para as comunidades locais.
• Apóia-se no princípio da justiça comutativa: cada um recebe segundo seu aporte. Essas três tradições, longe de ser uma simples coabitação com a organização de relatórios mútuos, tenderam a se sobrepor e constituíram uma arquitetura complexa; em alguns casos, com escassas diferenças, como demonstra a relação entre a ação social e a assistência social.