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Institucionalização da assistência social e os seguros sociais

Desde meados do século XIX, a cidade de Buenos Aires, os Estados nacional e provinciais desenvolveram obras isoladas de assistência em instituições que a Sociedade de Beneficência havia recebido a seu cargo em 1823. Ambas formavam um significativo conjunto. De acordo com dados de Emilio Coni, em 1916, a cidade capital contava com vários asilos noturnos para desamparados, dois deles municipais. O primeiro Asilo Noturno Municipal foi inaugurado por Coni, em 1892. Esse asilo estava destinado a oferecer hospedagem durante a noite e café pela manhã e planejava estender seu campo de ação “proporcionando-lhes banhos, roupas, cuidados de asseio e até trabalho, como acontece nos asilos franceses”. Em 1880, foi fundado o Departamento Nacional de Higiene, e, em 1883, a Assistência Pública da Capital Federal.93

A assistência social pública e as mutualidades, as medidas de salubridade, higiene pública e social e as incipientes legislações do trabalho constituíram-se nos esboços do sistema de proteção social argentino. Nesse cenário, a assistência social, enquanto ação governamental, passa a ser distribuidora de serviços orientados a segmentos caracterizados como ‘necessitados sociais’, e, paralelamente, vai se conformando o espaço dos assegurados.

Esse desenvolvimento esteve acompanhado por políticas imigratórias, processos de urbanização e emergência de novas forças sociais e políticas. Segundo autores como Ernesto Isuani,94 no contexto do Estado liberal, no qual o movimento trabalhador ainda estava em formação, as políticas de seguro social foram basicamente uma iniciativa estatal. O movimento dos trabalhadores como força social ficou marginalizado do aparato estatal, pois estava composto majoritariamente por imigrantes que não possuíam direitos políticos; também, do ponto de vista político-ideológico, sua conformação era basicamente anarquista e, por isso, rechaçavam os instrumentos eleitorais e parlamentares. Os

93 Emilio CONI, Higiene social: asistencia y previsión social, Buenos Aires caritativo y previsor, 1918. O Doutor Emilio Coni, quando criança, morou na França e, de volta a Buenos Aires, estudou no Colégio Nacional Buenos Aires. Posteriormente, graduou-se na Faculdade de Ciências Médicas e representou o país nas grandes conferências de higiene e medicina que se realizavam na época: em Haia, Genebra, Londres e Washington. Em 1887, publicou em Paris um longo ensaio intitulado “Progès de l’hygiène dans la République Argentine”. Em 1892, foi diretor da Administração Sanitária e Assistência Pública de Buenos Aires.

94 Cf. Ernesto A. ISUANI, Los orígenes conflictivos de la seguridad social argentina, 1985, pp.117-125. Também, se pode consultar Héctor RECALDE, Beneficencia, asistencialismo estatal y previsión social, 1991.

empresários da área industrial, por sua vez, não tiveram maior impacto no Estado, pois grande parte deles era de origem estrangeira e com interesses subordinados aos grupos agrários e mercantis.

O primeiro projeto argentino de legislação sobre os riscos profissionais foi apresentado no Congresso Nacional, em 1902, por Belisario Roldán Filho e Marco M. Avellaneda. Com base em antecedentes europeus, principalmente a lei francesa de 1898 e a lei espanhola de 1900, consagrou o princípio de risco profissional. A lei francesa sobre risques professionels foi uma importante base para a doutrina argentina. Belisario Roldán Filho (1929) citava em seu apoio o debate parlamentar francês sobre o tema: “desde que a indústria substituiu a máquina humana pela máquina de aço, a força inteligente é responsável pela força cega e irresponsável, [...] ao domínio da liberdade do sucedido, o risco; em outros termos, o problema que antes era jurídico, é, hoje, econômico e social”.95 Entre 1902 e 1912, o Estado foi o principal propositor de políticas sobre acidentes de trabalho. Esas medidas estiveram permeadas pelos interesses dos grupos agrário-mercantis representados pelo Partido Autonomista Nacional, que pugnavam pela entrada no mercado internacional, por meio da venda de produtos alimentícios aos países europeus. Alguns congressistas, como é o caso de Avellaneda, Escobar e Roldán, provenientes do campo conservador, foram os propulsores dessas iniciativas. Os conflitos dos trabalhadores estiveram orientados para questões salariais e para a redução da jornada de trabalho, mas, em termos de proteção social, o papel central foi assumido na esfera estatal. A partir de 1919, as poucas iniciativas em matéria de legislação social já estavam ligadas aos reclamos dos trabalhadores, como o projeto de jornada de trabalho de oito horas, as aposentadorias para trabalhadores de bonde e o Código de Trabalho do Presidente Irigoyen.96

Zimmerman (1992) analisa como fato destacado a influência dos intelectuais na formulação de um projeto de reforma política, sendo organizado, no ano de 1916, pelo

95 Diario de Sesiones de la Cámara de Diputados, 1902, vol. I, pp. 118-123; Belisario ROLDÁN (filho),

Discursos Completos, (El Ateneo, 1929); cita de Eduardo ZIMMERMANem Los intelectuales, las ciencias sociales y el reformismo liberal: 1890-1916, 1992, p. 560.

96 Para aprofundar este esse período, pode-se consultar: Alberto BARBEITO, Rubén LO VUOLO, La modernización excluyente, 1995, VII, 2: “Construção e maduração do sistema de políticas sociais

argentino”; José PANETTIERI, Las primeras leyes obreras, 1984; Guillermo ALONSO, Política y

seguridad social en la Argentina de los ’90, 2000, capítulo I e capítulo II; Margarita, ROZAS, “Las

modificaciones de la intervención profesional en relación a la cuestión social en el contexto del Estado argentino: el caso del trabajo social”, 2001.

governo, o Congresso Americano de Ciências Sociais,97 atividade que fez parte das festividades do Centenário da Declaração da Independência.

O comitê organizador foi integrado por nomes representativos, associados ao desenvolvimento das incipientes ciências sociais argentinas, entre eles: Gregorio Aráoz Alfaro, Carlos O. Bunge, Joaquin V. González, Alfredo Palacios.

Na seção do congresso denominada de Trabalho, Previsão e Assistência Social, reuniram- se representantes das distintas correntes reformistas ocupadas com a questão social do período: o Círculo de Trabalhadores Católicos, o Museu Social Argentino, a União Industrial Argentina, o Departamento do Trabalho, o Movimento Social Católico e o Socialismo Argentino.

A comissão dedicou-se ao estudo da legislação social destinada a melhorar o nível de vida das classes trabalhadoras. A ênfase foi colocada sobre a necessidade de sancionar legislação do trabalho e social, assim como na criação de instituições estatais que deram uma resposta científica aos novos problemas sociais. Nesse ponto, surgiram grandes similitudes com outros movimentos reformistas liberais da Europa e dos Estados Unidos.98

Gregorio Aráoz Alfaro, precursor da higiene e da medicina social argentina, insistia na necessidade de que o ensino universitário fosse orientado para as necessidades básicas, destacando, como exemplos, as doenças do trabalho, a organização da assistência social e da higiene industrial, entre outros. Augusto Bunge e José Ingenieros dirigiram a Seção de Higiene Industrial do Departamento Nacional de Higiene e o Instituto de Criminologia.

Nesse período, as instituições de assistência social foram todas de caráter oficial e, em grande número, estavam subsidiadas pelo Estado. Esses subsídios correspondiam a um

97 O congresso foi organizado em 11 seções que abrangeram: o direito civil, direito criminal, direito comercial, a economia, as finanças públicas, as relações internacionais, a imigração, a história, a sociologia, a higiene, a medicina social, a moral pública, o trabalho e a assistência pública. Eduardo Zimmerman destaca que a realização desse Congresso não era um fato novo, pois, desde 1898, quando aconteceu o primeiro Congresso Científico Latino-americano na cidade de Buenos Aires, as elites intelectuais argentinas haviam exteriorizado sua inclinação para esse tipo de encontro. O Congresso Científico Pan-americano (com a participação dos Estados Unidos) celebrado em Santiago de Chile, em 1908, colocou várias resoluções concernentes à questão social e, em particular, à organização e regulação das relações industriais.

98 Eduardo ZIMMERMANem Los intelectuales, las ciencias sociales y el reformismo liberal: 1890-1916, 1992, pp. 561-562.

anexo do orçamento da Nação, denominado Assistência Social.99 Duas linhas aparecem constantemente, confrontadas com a problemática da moralidade dos pobres e a resignação: o tronco assistencial, ligado à velha Sociedade de Beneficência, que negava que o Estado se imiscuísse em suas ações, e os higienistas, que propunham estratégias mais eficientes nas intervenções assistenciais do Estado.

As oposições de discurso e de ação, entre ambas as linhas, centravam-se notavelmente na forma de outorgar subsídios, por parte do Estado, para obras privadas de assistência social, ainda atendidas pela obra da beneficência, e na falta de coordenação dos recursos (instituições e subsídios) para obras de assistência social que atendessem a um formato eficiente, racional, centralizado e aos padrões internacionais.

Os fatos históricos aqui resgatados denotam um ponto de inflexão para a área da assistência social, e para a forma de conceber a proteção social durante esse período. Ele é seguido por um período de forte atividade estatal, orientado para tarefas centralizadoras e técnico-organizativas, na área de assistência social.

99 Estela GRASSI, La mujer y la profesión de asistente social, 1989, em citação de Francisco José MARTONE, Medicina preventiva, asistencia social, servicio social, ed. Cesaria, Buenos Aires, 1956.

Quadro 9. Aspectos relevantes para o estudo da assistência social na proteção social na Argentina, período colonial - 1930

Ano Aspectos relevantes para o estudo da proteção social na Argentina Aspectos relevantes da evolução política

Século

XVII Criação de “hospitalitos” para o atendimento de urgências Colonização de terras Dependência da Coroa Espanhola

1789 Revolução Francesa

1810 1820

25 de maio: processo de independência da coroa espanhola

Nascimento do incipiente Estado argentino

Primeira Junta de Governo. Etapa revolucionária

1823 Criação da Sociedade de Beneficência Beneficência

Pública Unitários (partidários do poder central em Buenos Aires) e Federais (partidários das autonomias provinciais). Governo de Bernardino Rivadavia (1826-1827)

1853 Congresso Constituinte de Santa Fé Constituição de

1853 Estado de Buenos Aires e Federação Governo de Justo José de Urquiza (1854-1860)

1857 Sociedade Tipográfica Período de organização nacional

1880 Criação do Departamento Nacional de Higiene Buenos Aires passa a formar parte da Federação. Governo de Julio A. Roca (1880-1886). Incorporação da Argentina ao mercado mundial como exportadora de matérias-primas 1884 Lei 1.420: educação pública, gratuita, laica, comum a

todos e graduada Ocupação do território nacional e organização institucional: economia, imigração, comunicações, ferrovias 1889 Congresso Internacional de Assistência Social na

França Governo de Miguel Juárez Celman (1886-1890)

1895 População total: 4.044.911.

População urbana: 37,4%. Governo de José Uriburu (1895-1898)

1907 Criação do Departamento Nacional do Trabalho

Governo de José Figueroa Alcorta (1906-1910)

1911 Criação do Museu Social Argentino Governo de Roque Sáenz Peña (1910-1914)

1914 Projeto de Seguro Social

1915 Primeira Lei de Acidentes de Trabalho. Primeira Lei de Seguridade Social Argentina

Lei sobre Descanso Dominical

Lei sobre Trabalho de Mulheres e Menores

Lei de Aposentadorias para Trabalhadores Ferroviários

Primeira Guerra Mundial (1914- 1918). População total: 7.903.662 habitantes. População urbana: 52,7% Governo de Victorino de la Plaza (1914-1916)

1916 Centenário da Declaração da Independência Congresso Americano de Ciências Sociais

Governo de Hipólito Yrigoyen (1916-1922)

União Cívica Radical (UCR)

1923 Lei de Aposentadorias Governo de Marcelo Torcuato de

Alvear (1922-1928)

Fontes: Norberto ALAYON, Hacia la historia del trabajo social en la Argentina, 1980; Ernesto ISUANI, Los orígenes conflictivos de la seguridad social argentina, 1985; Estela GRASSI, La mujer y la profesión de asistente social: el control de la vida cotidiana, 1989; Emilio TENTI, “Estado y pobreza: estrategias típicas de intervención”, 1989; Fabio BERTRANOU, Damián BONARI (coords.),

Protección Social en Argentina: financiamento, cobertura y desempeño, 2005. Os dados referentes à população correspondem a dados