• Nenhum resultado encontrado

A EMERGÊNCIA DA TATILIDADE NO JOGO DE AREIA

5.4 A AUTO-ORGANIZALIDADE DAS AÇÕES VIVENCIAIS

O Princípio etnofenomenológico da auto-organizalidade foi adotado pela BACOR, em substituição ao termo “relatabilidade” utilizado na etnometodologia. A auto-organizalidade, assim como a relatabilidade refere-se à forma como os atores vivenciam e descrevem seu mundo social. O termo relatabilidade (accountability) está associado aos relatos que os atores sociais efetuam sobre sua forma de organizar suas tarefas práticas de maneira adequada. Porém, entende-se que não se trata somente de relatar seu mundo vivencial, mas sim de vivenciar o fenômeno e, neste vivenciar, vai-se organizando emocionalmente o Ser e Estar no mundo. Assim, adotamos o termo auto-

organizalidade uma vez que mais que relatar, há o descrever o mundo pelas palavras, pela maneira organizativa das ações e pelos sentimentos.

Esta descrição do mundo é a forma de torná-lo visível, como afirma Coulon (1995, p. 46) “tornar o mundo visível significa tornar a minha ação compreensível, descrevendo-a, pois eu mostro o seu sentido pela revelação a outrem dos processos pelos quais eu a relato”.

A auto-organizalidade está ligada à reflexibilidade que está ligada à capacidade que o indivíduo tem para descrever e construir a realidade, e a auto-organizalidade é a materialização dessa capacidade (COULON, 1995).

Podemos observar esta relação no relato de Turmalina (2009) sobre a representação de si: “a flor pequena simboliza meus medos, meus anseios, questionamentos desde a minha chegada [...] com a entrada na academia, com a experiência de trabalhar, fui percebendo um crescimento pessoal e profissional da minha pessoa”. Este relato evidencia a forma como a participante descreve sua realidade e seus sentimentos diante da vida. Ela usa a flor de tamanho pequeno para simbolizar um estado de desequilíbrio diante da vida, no momento em que ela está chegando a um lugar diferente e novo. As mudanças ficam evidenciadas pela entrada na academia e pelo trabalho, e assim, a flor que era pequena, transforma-se em uma flor maior, simbolizando o crescimento pessoal como ela enfatiza: “a flor grande representa uma Turmalina feliz, com metas realizadas, mais segura, verdadeiramente uma mulher” (TURMALINA, 2009).

O relato deixa claro o fluxo emocional que acompanha o crescimento destaque a representa e que sofre a interferência do meio ao qual ela está inserida, e a forma como ela flui de um sentimento de medo e de anseios para outro de felicidade. Moraes (2004, p. 54) afirma que “fluímos de uma emoção a outra de acordo com as circunstâncias que nos envolvem, ou seja, de acordo com o campo energético e vibratório que nos envolve”. Este processo faz parte da autoformação humanescente, uma vez que a comparação de si com uma flor demonstram um espírito aberto, alegre, amoroso, que faz da vida uma festa, onde as emoções são vividas com intensidade, encarando os medos como desafios a serem superados e não como obstáculos para retroceder.

Esta é uma característica necessária aos atores educacionais para que ocorra uma evolução da consciência humana e, para isto, em consonância com Moraes (2008, p. 16/17) “precisamos de mentes mais abertas, de escutas mais sensíveis e de corações

mais amorosos, para desenvolver pensamentos e ações que possam realmente fazer a diferença neste momento evolutivo da humanidade”.

Esse crescimento pessoal faz parte do processo vivencial de cada indivíduo, demonstrando a forma como ele vai organizando sua vida e interagindo com o mundo que o cerca e ao campo vibracional que o envolve, configurando assim um acoplamento estrutural que se caracteriza pelas interações vivenciais do sistema vivo com o seu meio, ocasionando mudanças estruturais no sistema (MATURANA, 2001).

Ao discutirmos o cuidado consigo, com o outro e com o espaço vivencial, Topázio (2009) faz um relato sobre o cativar e o cuidar em uma abordagem ampla e humanescente:

[...] para mim o cativar, cuidar, envolve muitas coisas [...] Porque engloba muitas coisas, eu coloquei aqui a questão da família, a questão dos amigos ou do cuidado com o próprio corpo [...] algumas palavras que são chave que é amor, perdão e vida. Então eu acho que cuidado mais está relacionada nesse sentido de complexidade [...]

Há, para o participante, uma distinção do cuidado com a família, com os amigos e também o cuidado consigo próprio, evidenciado pelo corpo. Mas o que é ressaltado no relato são as palavras que ele utiliza para mostrar o cuidado e o cativar. Uma destas palavras é amor, que expressa um sentimento muito importante nas relações sociais e pouco lembrado em nosso contexto educacional, e muitos menos quando se trata das ciências, como relata Maturana (2001, p. 183) que, ao falar de amor para diferentes plateias, percebe logo uma inquietação, uma vez que “parece que normalmente pensamos que o amor é humano demais para ser acessível ás reflexões de um cientista”. Mas o autor discute a biologia do amor e seu papel nas relações humanas e afirma que:

O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social. Sem a aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social (MATURANA, 2009, p. 22/ 23).

Portanto, o amor é a emoção que vai fundamentar o fenômeno da socialização. O autor afirma ainda que “As interações recorrentes no amor ampliam e estabilizam a

convivência; as interações recorrentes na agressão interferem e rompem a convivência” (MATURANA, 2009, p. 22).

Sobre o amor, Paulo Freire (2006, p. 45), ao declarar que é “um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens”. E se é compromisso com o outro, então envolve o cuidado. A convivência com o outro fertiliza o fenômeno do cuidado, mobilizando sentimentos e as emoções favoráveis ao cuidado consigo e com o outro. E um dos sentimentos mais presentes na convivência é o amor, como também observamos no relato da participante Jade (2009): “aqui tem uma frase: eu amo o mundo e tem uma garotinha abraçando o mundo então isto me remeteu a uma frase que eu ouvi, acho que na oitava série e diz assim: sou coletivo, tenho o mundo inteiro dentro de mim”.

Neste sentido, Maturana e Verden-Zöller (2006, p. 45), afirmam que “a emoção que estrutura a coexistência social é o amor [...] e nós humanos, nos tornamos seres sociais desde nossa primeira infância, na intimidade da coexistência social com nossas mães”. E, mais uma vez, o amor se revela no cenário construído pelo participante Rutilo (2009, grifo do autor):

Eu tentei representar assim, o comum, de representação [...] que é o coração, e a gente vai notar aqui, que são as duas partes que se completam e da necessidade de compreensão, que todos temos uns com os outros. E esses “frufrus”21 aqui do lado, são exatamente para

representar, que não está isolado, mas está imerso dentro de uma situação, que os outros todos busquem esta mesma situação de compartilhamento, de confraternização.

Fica evidente pelo desenho representado na areia (figura 19) e no depoimento do participante que há a necessidade da complementação do outro no processo amoroso que surge por meio da convivência e da partilha, que não é um processo fácil e que muitas vezes causa dificuldades. Isto é corroborado pelos limites indefinidos do lado direito do desenho, que se mescla com a areia mostrando também a incompletude que ocorre nas relações. Essa dificuldade na convivência é explicada por Maturana e Rezepka (2003, p. 34) quando afirmam que parte de nossas dificuldades na convivência “surge do fato de que não aceitamos que nosso ser é relacional e fluido, e queremos

21 Frufru significa um ligeiro barulho de vestidos de seda em movimento. Serve também para

conservar uma identidade como se fosse estática, sem reconhecer o seu caráter dinâmico, sistêmico”.

Figura 19 - Representação na areia, da emoção amor, evidenciando a complementação de duas partes na convivência com o outro. Do lado direito do desenho observa-se a indefinição dos limites do coração que se mescla com a areia do entorno.

Fonte: Musse (2010).

É pela linguagem que identificamos a auto-organizalidade, uma vez que por ela os atores descrevem sua vida cotidiana, sua forma de ver o mundo. E o Jogo de Areia é uma estratégia eficaz de linguagem que se revela nos cenários, na sua descrição e principalmente na forma como o corpo demonstra sua linguagem e atua de forma a proporcionar a interação energética para o aprimoramento do sentipensar.