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A TEIA DA CORPOREIDADE: ORGANIZANDO OS GRÃOS DA AREIA

2.2 DO CORPO A CORPOREIDADE

2.2.1 Criando e recriando-se: a autopoiese do ser.

Humberto Maturana e Francisco Varela revolucionam a Biologia e as Ciências Cognitivas com uma nova teoria sobre o funcionamento dos seres vivos, na qual não separam os fenômenos da cognição do próprio processo de viver. E uma das principais linhas do pensamento complexo é a biologia da cognição, que sustenta que a realidade é percebida por um dado indivíduo segundo a estrutura (a configuração bio-psico-social) de seu organismo num dado momento. Essa estrutura muda constantemente de acordo com a interação física e emocional do organismo com o meio (MATURANA E VARELA, 2005).

Estes autores falam que conhecer é uma ação efetiva do ser vivo em seu meio ambiente, que conserva sua organização autônoma levando em conta os fenômenos sociais, domínios linguísticos, linguagem e autoconsciência. Esses conhecimentos se refletem em diferentes contextos e situações na vida.

Conceber a corporeidade no processo educacional é romper com ideias positivistas e investir na construção do saber através da própria experienciação, deixando de lado o olhar direcional e a abordagem linear para um múltiplo olhar, aberto ao novo e às construções coletivas onde a sensibilidade, criatividade e ludicidade estejam presentes. Conforme nos fala Assmann (2004b, p. 34): “é preciso pensar a educação a partir dos nexos corporais entre seres humanos concretos, ou seja, colocando em foco a corporeidade viva, na qual necessidades e desejos formam uma unidade”. Necessitamos de uma educação que leve em conta todas as dimensões do ser humano, seu corpo físico, mente e espírito para que os processos de aprendizagem possam ser efetivos e contribuir para a expansão da educação transformadora (OSTERHOLD; RUBIANO; NICOL, 2007).

Qualquer sistema de qualquer ser vivo é autônomo e cria suas próprias leis e mecanismos, mas conserva suas características de unidade. Esta unidade é denominada de autopoiese. A denominação autopoiese é a fusão de dois termos: “auto” que se refere ao próprio objeto ou sujeito e “poiese” que diz respeito à reprodução/criação. A autopoiese é um termo empregado inicialmente por Maturana e Varela para designar os

elementos característicos de um sistema vivo e de sua estrutura. Essa construção conceitual foi rapidamente difundida e começou a ser empregada em outras áreas do conhecimento (MATURANA; VARELA, 2005) Assim, consideramos a educação como um processo vivencial de dentro para fora, e a aprendizagem como um sistema dinâmico de criação e recriação associado à autopoiese da produção de conhecimento.

Na visão de Assmann (2004b, p. 136), o sistema autopoiético é uma teia de processos que “vão produzindo, ingredientes, componentes e padrões (caóticos e ordenadores) que regeneram continuamente, através de suas transformações e interações, a própria teia que os produz”.

O homem, independentemente de suas condições físicas, é uma unidade complexa capaz de produzir conhecimentos, e esta unidade é afetada em todas as suas instâncias pela corporeidade. Para Gonçalves (2005, p. 104): “a corporeidade afeta o homem como ser inteligente, como ser livre, como ser ético, como ser político, e como ser social, ao mesmo tempo em que ele, como ser corpóreo e sensível, é afetado por essas dimensões”.

Esta visão é reforçada por Santin (1992, p.5) quando afirma que “o ponto de partida do ser humano é a corporeidade. Dela se originam e dela emanam todas as propriedades constitutivas do modo de ser do homem e condição necessária de sua presença e de suas manifestações”.

Assim, é necessário um novo olhar sobre o corpo que rompa com os preconceitos e o insira na sociedade de forma igualitária, como afirma Gonçalves (2005, p.125), que participar conscientemente do processo de humanização do homem “significa, na dimensão social, criar condições concretas de organização da vida comunitária, em que se efetivem valores como liberdade, justiça e verdade [...]”. Essa é a única forma de conceber o corpo nas múltiplas dimensões da existência humana e compreender esse sujeito multidimensional. Para tanto, faz-se necessário que o corpo assuma seu lugar na aprendizagem, a fim de que os sujeitos aprendam a comunicarem- se corporalmente.

Ao realizar uma pesquisa cruzando as palavras corpo e educação, nas revistas especializadas e nos bancos de teses e dissertações encontra-se uma grande variedade de publicações que trazem o corpo no processo educacional. Porém, observa-se que, na maioria das vezes, o corpo só está presente nas aulas de educação física, permanecendo ainda muito forte, na atualidade, a concepção cartesiana que separa o corpo da mente e do espírito.

Ou seja, há o momento de usar o corpo nas aulas de educação física, nas aulas de dança, de teatro e na recreação, mas durante as aulas de matemática, física, biologia e outras, o corpo é convidado a ficar de fora. Poucos autores tratam do corpo e da corporeidade nas tradicionais aulas, pois ali é o momento de estar sentado, prestando atenção e o máximo de movimento corporal que pode acontecer é a mão escrevendo sobre os cadernos. Para Sampaio (2009), o sentido da corporeidade nas experiências de aprendizagem é um elemento gerador e integrador, que oportuniza ao corpo a incorporação e expansão dos saberes.

Neste trabalho estamos utilizando a metáfora da teia de aranha para trabalhar a corporeidade. Esta metáfora foi proposta por Cavalcanti (2006) em suas pesquisas sobre a corporeidade e a formação do espírito transdisciplinar na educação. Para a autora a teia da corporeidade tem a triangulação central sustentada pelo brincar, o criar e o sentir, ou seja, a ludicidade, a criatividade e a sensibilidade. As bordas que sustentam a teia são representadas pela reflexividade, que lhe dá sustentação epistemológica e metodológica. Os demais raios vão sendo tecidos pelas diferentes áreas do saber que surgem no processo de produção de conhecimento.

Quando pesquisamos sobre a ludicidade e o brincar, o que mais chama a atenção é que as pesquisas são direcionadas para a infância, como se o brincar estivesse restrito a esta faixa etária. Não que o brincar e a ludicidade não sejam importantes para as crianças, mas em uma educação humanescente a ludicidade como capacidade criadora é essencial e deve estar presente em todas as etapas da vida do ser humano. A ludicidade está ligada à criatividade e à sensibilidade onde razão e emoção jogam o jogo da vida possibilitando o desabrochar da alegria, e o conhecer e o fazer na convivência fortalecem o ser sensível e lúdico.

Csikszentmihalyi (1996) investigou o lócus da criatividade na vida de pessoas reconhecidamente criativas e defende que a criatividade não está no sujeito, não é um fenômeno individual. Ou seja, ninguém é criativo sozinho, a criatividade é construída por meio da interação entre o criador e o seu contexto vivencial. Para o autor, mais importante que definir a criatividade é investigar onde ela se encontra.

O autor propõe um modelo onde a criatividade resulta da intersecção de três fatores: a) o indivíduo, com sua bagagem genética, experiências pessoais e história de vida; b) o domínio que se constitui na área de conhecimento onde a criatividade emerge, ou seja, o conhecimento acumulado, estruturado, transmitido e compartilhado em uma sociedade ou por várias sociedades, e; c) o campo que representa o sistema social em

que o sujeito está inserido, uma vez que uma ideia ou produto pode ser considerado criativo em um determinado contexto cultural e temporal e em outros não.

Para Csikszentmihalyi (1996) a criatividade ocorre no momento em que nos entregamos totalmente a uma determinada tarefa sem nos importamos com mais nada a não ser na atividade em que estamos envolvidos, o que caracteriza uma experiência ótima ou uma experiência autotélica. Autotélico refere-se à realização por si mesmo, sem a preocupação com resultados e tendo a experiência como meta. Assim, a criatividade está justamente neste fluxo que as pessoas com características autotélicas experimentam ao realizar uma determinada atividade ou desenvolver uma ideia. Neste sentido, La Torre (2005, p. 15) afirma que a criatividade “tem muito a ver com a decisão pessoal tanto no desenvolvimento de habilidades, como, sobretudo, no grau de implicação e entusiasmo”. Para Ostrower (1993), como processos intuitivos, os processos de criação interligam-se intimamente com nosso ser sensível. Mesmo no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalmente por meio da sensibilidade.

Alencar (2007) investiga há mais de três décadas o papel da criatividade no contexto educacional e suas pesquisas mostram que, apesar do reconhecimento da importância da criatividade no contexto educacional, há ainda muitas ideias equivocadas a seu respeito. Uma destas é que a criatividade é inerente ao indivíduo, ou seja, a pessoa nasce ou não criativa. Mas os autores que investigam a criatividade, como Maslow, Csikszentmihalyi, La Torre, Alencar e outros, afirmam que a criatividade depende de vários fatores e um dos mais importantes é o contexto vivencial em que a pessoa está envolvida, ou seja, todos os sujeitos têm o potencial criativo, mas sem o apoio do ambiente dificilmente o potencial para criar que a pessoa traz dentro de si, se expressará (ALENCAR; FLEITH, 2003).

Outro pesquisador que dedicou mais de três décadas ao estudo da criatividade é Saturnino de La Torre, que traz contribuições importantes ao estudo da criatividade. Para o autor, uma pessoa criativa pensa com o coração e com quatro eixos: Ser, Saber, Fazer e Querer (LA TORRE, 2005). Ele ressalta ainda que um professor criativo é capaz de despertar a criatividade dos alunos adotando praticas criativas que possibilitem a comunicação, o intercâmbio e a ajuda e, principalmente, o professor deve ser o exemplo, pois os alunos se espelham nele e uma importante missão do professor criativo é “criar o clima adequado na sala de aula” (LA TORRE, 2008, p. 83).

Neste sentido ressaltamos o importante papel da pedagogia vivencial humanescente, que estimula o ato criativo, o sensitivo, o intelectivo e o contemplativo do educador e do educando, desenvolvendo a multidimensionalidade do ser cognoscente, associada à pedagogia simbólica, que estimula o imaginário dos alunos.

Importante contribuição para o estudo da criatividade foi dada por Gardner, pesquisador da inteligência e responsável pela descoberta da teoria das inteligências múltiplas. A teoria de Gardner traz uma visão nova e esclarecedora sobre a relação entre criatividade e inteligência e como podemos aprimorar nossas habilidades criativas.

Para o autor, a criatividade floresce quando há paixão pelo trabalho, e somente há paixão quando temos a oportunidade de seguir nossa vocação e aplicar nossos talentos (GARDNER, 1996). O autor distingue dois tipos de criatividade. Uma com a letra C maiúscula que ele relaciona à criatividade de grandes gênios da humanidade como Einstein, Picasso e Freud, porque eles provocam mudanças importantes no domínio que estão trabalhando em um grande número de pessoas. Eles criam sem se ater ao número de pessoas que vão ser afetados por suas criações. E a maioria de nós tem uma criatividade com C minúsculo, nos preocupando com a mudança das representações mentais daqueles por quem somos responsáveis (GARDNER, 2005).

Na pedagogia vivencial humanescente a criatividade e o ato de criar permeiam a prática pedagógica, possibilitando a expansão da capacidade inventiva e criativa, levando ao prazer, uma vez que prazer e criatividade estão intimamente relacionados, como afirma Lowen (1984, 207) “o prazer fornece a motivação e a energia ao processo criativo que, por sua vez, aumenta o prazer e a alegria de viver”.

Neste estudo, entendemos a sensibilidade como um fenômeno energético dos seres vivos que os possibilita o ser e estar no mundo, vivenciando-o emocionalmente, captando e expressando sentimentos e permitindo sentir e ser sentido por todos os seres do universo (SCHILLER, 2002a; DAMÁSIO, 2004).

Para falar de sensibilidade devemos nos remeter a Friedrich Schiller, poeta, filósofo e dramaturgo alemão que se interessou principalmente pela educação estética, que para ele era uma educação primordial para o desenvolvimento pleno do homem, em suas capacidades intelectuais e sensíveis. Para Schiller (2002a, p. 13, grifos do autor) o homem em seu sentido pleno, que ele denomina de homem lúdico, “não busca apenas retirar-se à clausura de sua moralidade, mas empenha-se exatamente em dar vida às coisas que o cercam, em libertar os objetos que habitam sua sensibilidade”.

A preocupação central de Schiller era a relação entre razão e sensibilidade, entre o dever que nos é indicado pela razão, e as nossas inclinações naturais que nos torna sujeitos sensíveis. Como afirma o autor sobre nossa natureza sensível-racional “a primeira exige realidade absoluta; deve tornar mundo tudo o que é mera forma [...] a segunda exige a formalidade absoluta: ela deve aniquilar em si mesma tudo o que é apenas mundo e introduzir coerência em todas as suas modificações” (SCHILLER, 2002a, p. 61, grifos do autor).

O argumento é que na experiência estética, de acordo com Schiller, nos tornamos conscientes de aspectos de nós mesmos que revelam uma inteireza (ou plenitude) que de outro modo poderíamos não saber existente.

Assmann e Mo Sung (2000, p. 98, grifo dos autores) ao discutirem a educação para a esperança e se referirem à sensibilidade solidária, afirmam que “é preciso valorizar a sensibilidade no sentido da sensibilidade humana, a capacidade de sentir a empatia e a compaixão, de se deixar tocar pelas vidas, sofrimentos, alegrias, esperanças e desejos das outras pessoas”.

Ostrower (1993) afirma que a sensibilidade é inerente à constituição do homem, sendo patrimônio de todos os seres humanos. Ainda que em diferentes graus ou talvez em áreas sensíveis diferentes, todo ser humano nasce com um potencial de sensibilidade. Para o autor a sensibilidade é uma porta de entrada das sensações, sendo que parte dela é vinculada ao inconsciente e outra ao consciente e representa uma abertura constante ao mundo que vivenciamos e experienciamos com nossa corporeidade, intermediada por nosso corpo físico, ou seja, uma educação estética.

Uma educação estética se refere à percepção, à sensação, ou ao sensível e perceptível, portanto a uma educação da sensibilidade, como afirmam Moraes e La Torre (2004, p. 22), “nossas maneiras de observar o mundo, o modo como nos relacionamos uns com os outros, a nossa maneira de viver/conviver, de ser, de perceber [...] determinam as nossas realizações e a qualidade do conhecimento que construímos”, portanto, é através da sensibilidade que despertamos nosso ser belo, livre, criativo e sensível capaz de viver harmoniosamente consigo e com o entorno, vivenciando sua corporeidade.

A borda que sustenta a teia da corporeidade é formada pela reflexividade, que é a capacidade humana de construção e reconstrução de sua atuação emocional, cognitiva e psico-social no mundo, onde pensamentos, emoções, intuições e sentimentos estejam em constante diálogo. Isto permite a evolução do Ser enquanto sujeito atuante em seu

contexto vivencial, com abertura para a experienciação vivencial, criativa, lúdica e sensível, capaz de sair de seu contexto, distanciando-se dele para ficar com ele, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação, sabendo-se e reconhecendo-se como um ser histórico (FREIRE 2006).

Assim, independentemente de sermos um corpo natural, um corpo transformado, tatuado, com próteses ou não, somos um corpo físico e estamos aptos a desenvolver e vivenciar nossa corporeidade no campo educacional e em todos os outros campos de nossa vida, pois, como afirma Pierrakos (1990, p. 18), “a substância básica da pessoa é a energia. O movimento da energia é a vida. Quanto mais livre o movimento da energia no interior de cada componente para manter sua própria integridade e coesão [...] mais intensa é a vida”.

Neste sentido, percebe-se que as concepções sobre o corpo e a corporeidade influenciam diretamente no processo educacional, uma vez que adotamos, neste estudo, a corporeidade como sendo o campo energético dos seres vivos com capacidade de irradiar sentimentos e emoções para si e de si, no viver e conviver no mundo.