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A TEIA DA CORPOREIDADE: ORGANIZANDO OS GRÃOS DA AREIA

2.3 DA LUDICIDADE A LUDOPOIESE

No livro memórias, sonhos e reflexões, Jung (1988) relata que viveu um momento de grande desalento em sua vida, devido a problemas pessoais e profissionais. E conseguiu superar esta fase quando se entregou as lembranças e resgatou a criança brincante que lhe habitava. De acordo com o autor (1988, p.155, grifo do autor) “todos os dias depois do almoço, se o tempo permitia, eu me entregava ao brinquedo da construção. Mal terminada a refeição, brincava”. E esta atividade de brincar possibilitou a ele descobertas importantes sobre si e sobre os outros. O referido autor confessa que se entregou a estas brincadeiras “depois de repulsões infinitas, com um sentimento de extrema resignação e experimentando a dolorosa humilhação de não poder fazer outra coisa senão brincar”.

Importante ressaltar que em nossa sociedade, brincar é coisa de criança. Adultos que se entregam ao lúdico e a brincadeira são vistos com desconfiança. Porém, a palavra latina ludus, da qual deriva lúdico, abrange os jogos infantis, a recreação, as competições, as representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar. O lúdico faz parte

da atividade humana e caracteriza-se por ser espontâneo, funcional e satisfatório (HUIZINGA, 2005).

Pesquisa realizada por Kassab (2010) fez uma análise das estratégias lúdicas utilizadas, pelos primeiros jesuítas, para educar e catequizar os nativos da América portuguesa do século XVI. A autora observou as influências da educação humanística do Renascimento na elaboração e desenvolvimento de uma pedagogia voltada para um aprendizado prazeroso que privilegiava as estratégias lúdicas, tais como o teatro, o coral, o canto, as danças, a música.

Considerado o fundador da Didática Moderna, Comenius (1592 – 1670), propôs um sistema articulado de ensino, reconhecendo o igual direito de todos os homens ao saber. E em sua obra Didática Magna (2001, p. 70) reconhece que o homem deve ter momentos de seu dia para “entregar-se a conversas, brincadeiras, jogos, música e outras coisas semelhantes, onde os sentidos externos e internos encontram repouso e prazer”.

Em seus estudos de Huizinga (2005) propõe a expressão homo ludens para ressaltar que o jogo e a brincadeira são necessidades básicas do ser humano e são intrínsecas a ele. Para o autor, o jogo vem como uma categoria absolutamente primária da vida, tão essencial quando o raciocínio (homo sapiens) e a fabricação de objetos (homo faber). É este homo ludens que se esconde na vida dos adultos e teima em não aparecer, o que faz a vida ficar sem beleza e sem alegria. O ser brincante, presença constante na vida das crianças e até mesmo dos adolescentes, vai adormecendo com a chegada da idade e com as responsabilidades da vida adulta, em que tudo que se faz deve ter um propósito ou uma intenção.

O jogo, quando se apresenta na vida adulta quase sempre, se configura como um jogo de poder, que tem por objetivo o lucro. É um jogo complexo, jogado com seriedade, porém muitas vezes carregado de amargura e solidão, pois, ao se transformar em uma atividade obrigatória, perde sua associação com a ludicidade.

Devemos, portanto, fortalecer a presença do brincar e da brincadeira em todas as etapas de nossas vidas, a partir infância, como afirmam Maturana e Verden-Zöller (2006, p. 170) “se a criança cresce numa aceitação corporal total por sua mãe – ao se encontrar continuamente com ela no brincar – pode transforma-se num adulto afetuoso [...] como ser social”.

Para os referidos autores (2006, p. 144) o brincar na vida diária está relacionado a “uma atividade realizada como plenamente válida em si mesma” e a brincadeira é

“qualquer atividade vivida no presente de sua realização e desempenhada de modo emocional, sem nenhum propósito que lhe seja exterior”. Estas condições são mais facilmente encontradas na infância e devem ser cultivadas na idade adulta.

Em outra linha de análise, Caillois (1986) define a atividade lúdica de acordo com as características de sua prática. É uma atividade livre, sem obrigatoriedade, é delimitada, com espaço e tempo previamente estabelecidos, é uma atividade incerta e improdutiva, uma vez que não matem vínculos com a sociedade de consumo. Também é uma atividade com regras e fundamentada em um contexto de irrealidade perante a vida.

Em uma abordagem pedagógica, Piaget (1998) acreditava que o jogo era essencial na vida da criança e próprio da infância. O autor não elaborou uma teoria do jogo, mas definiu algumas fases que ocorrem ao longo da vida da criança: uma que vai do nascimento até por volta dos dois anos, em que se joga pelo simples prazer; posteriormente entre dois e seis anos ocorrem os jogos simbólicos que satisfazem a necessidade da criança de relembrar mentalmente o acontecido e executar a representação e finalmente chegam os jogos de regras que são transmitidos socialmente de criança para criança. Para o autor, portanto, o jogo se constitui em expressão e condição para o desenvolvimento infantil, já que as crianças quando jogam assimilam e podem transformar a realidade. É brincando que a criança se torna um adulto capaz de vivenciar sua vida com mais plenitude e alegria, jogando o jogo mágico da vida.

Winnicott (1975, p. 93), um importante pediatra e psicanalista britânico que teorizou sobre o brincar, afirma que “é com base no brincar, que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem”, ou seja, o brincar possibilita a plenitude do ser humano e se processa da mesma forma nos adultos e nas crianças, como ele reforça “o que quer que se diga sobre o brincar de crianças aplica-se também aos adultos; apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente aparece principalmente em termos de comunicação verbal” (WINNICOTT, 1975, p. 61).

Não brincamos mais, pois nossas atividades diárias não nos permitem e a nossa cultura nega o brincar. Nosso tempo é muito curto e a ênfase da vida está centrada no Ter e não no Ser. Precisamos reverter esta situação com urgência para garantir uma vida plena na beleza de viver e conviver e, neste sentido, afirmam Maturana e Verden-Zöller (2006, p. 245): “devemos devolver ao brincar o seu papel central na vida humana”.

Para Huizinga (2005, p. 16, grifo do autor) o jogo deve ser “uma atividade livre, conscientemente tomada como não-séria e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total”. Esta forma de jogo pode

ser vivenciada, jogada ou observada em muitos lugares, com muitos parceiros e também de forma solitária, para tanto basta lapidar o olhar e os sentimentos, já que depende do próprio sujeito que a vivencia.

Tal constatação nos remete a Csikszentmihalyi (1992, p. 20) quando descreve a experiência do fluir como sendo um estado mental que as pessoas experimentam no qual “a consciência está organizada de forma harmoniosa, e desejam continuar a atividade pela satisfação que sentem”. Viver a ludicidade no jogo da vida é experienciar o fluxo e querer perpetuar o momento, não necessariamente no espaço-tempo do viver, mas no espaço-tempo do emocionar.

Em uma pesquisa realizada em sessões de julgamento de homicídio em tribunais Schritzmeyer (2002) afirma que nelas estão presentes as principais características de qualquer jogo e têm, portanto, um caráter lúdico. Trata-se de uma atividade consciente, exterior à vida habitual e que, enquanto ocorre, absorve os jogadores de maneira intensa. É praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo certas regras. Geralmente, promove a formação de grupos que tendem a rodear-se de segredo e a sublinhar sua diferença em relação ao resto do mundo.

Apesar de ser um tipo de jogo que possibilita a vivência do lúdico, o ambiente onde se instala e ocorre este jogo tem o peso da dor de outros, como a própria autora afirma “as sessões relatam, metaforicamente, a violência de viver e morrer e as tentativas de se lidar com esse drama” (2002, p. 15). Para corroborar com o exposto observamos nos estudos de Oliveira e Francischini (2009) como as crianças em situação de trabalho vivenciam o brincar e a ludicidade em seu cotidiano. As autoras observaram que as crianças conseguem viver, mesmo que seja de forma parcial, a sua ludicidade, com brincadeiras e jogos solitários ou em grupo.

Nesta mesma linha, Silva (2002) investigou da vida cotidiana das meninas- mulheres e das mulheres-meninas da Zona da Mata Canavieira Pernambucana e observou que apesar da alienação e o conformismo que se expressam na dura e perversa vida de trabalho precoce dessas meninas e mulheres, ainda assim elas conseguem, com seus jogos e brincadeiras, vivenciar o lúdico em suas vidas.

E ainda Santos (2010) que realizou um estudo em uma comunidade quilombola, que a exemplo de outras comunidades de negros no Brasil, carregam em si a história da escravidão de seus ancestrais. Nesta comunidade a autora investigou os brinquedos, brincadeiras, jogos e outras manifestações lúdicas como festividades, que são praticadas ou fazem parte da memória do grupo.

Não negamos a dor ou a tristeza na vida, mas optamos por olhá-la com outro olhar: o da ludicidade. Embora saibamos que, como afirma Lukesi (1998), nem sempre uma atividade lúdica é uma atividade divertida, que nos proporciona alegria. Isto é reforçado por Bruhns (1989, p. 9) que afirma “na própria atividade lúdica observa-se sentimentos desagradáveis com a anulação do próprio prazer, através de inseguranças, temores excessivos”. Para Lukesi (1998, p. 9) a principal característica da ludicidade é “a experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia em seus atos”.

Nesse sentido o nosso recorte é no Jogo de Areia que precisa ser jogado com beleza e alegria, fortalecendo o homem em sua inteireza, como afirma Schiller (2002a, p. 80, grifos do autor) “o homem deve jogar com a beleza, e somente com a beleza deve jogar”.

Huizinga (2005.) aponta ainda que o jogo só é jogo se contar com a ludicidade e a imprevisibilidade. Para o autor, quanto maior forem as exigências e cobranças externas, menor é a ludicidade.

É esta sensibilidade e pureza na leitura de mundo que faz a beleza da vida e reforça o lúdico como elemento da cultura como afirma Schiller (2002a, p. 91) “pela beleza, o homem sensível é conduzido à forma e ao pensamento; pela beleza, o homem espiritual é reconduzido à matéria e entregue de volta ao mundo sensível”.

Ao discutiram o fenômeno lúdico nas práticas esportivas, Filho et. al. (2002, p. 7) afirmam que “o ser humano se desenvolve e se transforma pelo impulso lúdico e adota uma nova postura existencial, que afirma sua corporeidade com dimensões criativas que expressam o ser pleno”. Assim, a ludicidade está ligada à criatividade e à sensibilidade, onde razão e emoção jogam o jogo da vida possibilitando o desabrochar da alegria, e o conhecer e o fazer na convivência fortalecem o ser sensível e lúdico.

Quando nos remetemos ao ambiente escolar é muito comum se ouvir que as brincadeiras são para a hora do intervalo e que a sala de aula é local para estudar, ou seja, estudar e aprender não combina com brincar. No sentido amplo da formação da pessoa em fase escolar, Dumazedier (1994, p.92) revela que “nada é, portanto mais importante que preparar longamente para o desejo e para a capacidade de se autoformar [...]”. O autor preocupa-se com o futuro do jovem e adolescente no processo permanente de autoformação que se dá fora do contexto escolar, uma vez que pouco se faz para se reverter tal situação dentro das instituições de ensino.

Nesse caminhar podemos afirmar que o potencial lúdico do Jogo de Areia como abordagem pedagógica, está centrado nas construções coletivas, em uma mesma

caixa de areia ou em caixas individuais, mas na coletividade de uma sala de aula, livres de comparações estéticas, sem o receio de que o cenário construído esteja certo ou errado, mais bonito ou mais criativo que o outro, ou seja, todas as construções são válidas, portanto, aceitas, e assim todos têm curiosidade em saber o que representa a construção do outro, criando um jogo de trocas e manifestações espontâneas de alegria e ludicidade, no ir e vir no espaço físico da sala de aula, na escolha das miniaturas, na montagem dos cenários e na interação com a areia (MUSSE, 2007; FRANCO, 2008; SAMPAIO, 2009).

O Jogo de Areia é uma técnica/método que favorece a conscientização da condição do ser, retoma histórias de vida, proporcionando a construção do conhecimento de forma significativa e contextual. Promove ainda o desenvolvimento dos diferentes sentidos. O participante vê suas histórias, por meio de construções simbólicas, pode perceber suas emoções, degusta sensações e troca conhecimentos, reconstruindo conceitos. Passa por um processo intenso de reflexão e emoção que permite uma reorganização de suas estruturas corporais e vibracionais abrindo-se às novas experiencialidades que valorizam a ludicidade, a criatividade e a sensibilidade para o fluir da humanescência.

Como afirma Cavalcanti (2008, p. 3) sobre o Jogo de Areia “que cria e que recria a vida a partir de imagens, de cenários vivos e vividos pela imaginação [...] como um jogo que permite a ludopoiese na sua organização fundamental”.

Da conexão entre a Teia da Corporeidade de Cavalcanti (2008) e a teoria da autopoiese de Maturana e Varela (1997), surge a ludopoiese, concebendo a ludicidade como sistema autopoiético, cujo fenômeno emergente corresponde à dinâmica das respectivas propriedades que constituem a sua organização específica.

Como sistema ludopoiético, foi concebido metaforicamente como uma flor de cinco pétalas, representando cada uma delas uma propriedade específica do sistema ludopoiético: autotelia; autoterritorialidade; autoconectividade; autovalia e autofruição (CAVALCANTI, 2008), tendo em seu centro a humanescência e a energia do elemento fogo que expande sua luz e calor para as pétalas e todo o entorno.

Esta é uma flor diferenciada, peculiar, distinta daquelas flores que tem suas pétalas de tamanhos e desenhos iguais como por ex. as margaridas. Ao contrário, a flor que representa o sistema ludopoiético tem suas pétalas de tamanhos e desenhos diferentes. Cada pétala representa uma propriedade e dependendo do processo em que estamos envolvidos, estas pétalas adquirem configurações e exalam cheiros distintos,

umas se sobressaindo às outras, mas como uma flor, todas as suas pétalas estão presentes (figura 1). A flor pode estar flutuando como uma vitória-régia ou sustentada no ar como um girassol. Pode ocorrer sozinha ou em um campo com outras flores. Cavalcanti (2008) define cada pétala do sistema ludopoiético como:

A pétala da autotelia representa a propriedade do sistema ludopoiético que considera a ludicidade humana como uma vivência que tem um fim em si mesmo, voltada para a construção e auto-organização da subjetividade, traduzindo escolhas, desejos que refletem autonomia e autodeterminação de uma expressividade humana no tempo presente.

A Pétala da autoterritorialidade refere-se à propriedade de ocorrer em espaço- tempo autodelimitado, constituindo assim o campo de jogo que propicia concretizar desejos vivenciais de criação e expressão de si mesmo por si mesmo.

Figura 1 – Desenho esquemático do sistema ludopoiético, concebido metaforicamente como uma flor de cinco pétalas, representando cada uma delas uma propriedade específica: autotelia; autoterritorialidade; autoconectividade; autovalia e autofruição, tendo em seu centro a humanescência e a energia do elemento fogo que expande sua luz e calor para as pétalas e todo o entorno.

Fonte: Musse (2011).

A pétala da autoconectividade representa a propriedade do envolvimento e da implicabilidade do ser consigo mesmo para poder se conectar como personalidade criadora com os outros e com o mundo. Isto significa reconhecer o papel fundamental da autoconsciência e da corporeidade no mundo das relações ecopoiéticas, ou seja, refere-se à capacidade de conexão com os outros sistemas autopoiéticos.

A pétala da autovalia diz respeito à gratuidade, ao valor atribuído pelo sujeito às suas escolhas lúdicas. É a criação e recriação da subjetividade humana responsável por determinar o valor das vivências lúdicas para a criação e a recriação de si mesmo, para a sua alegria de viver.

A pétala da autofruição representa o estado vivencial de prazer e alegria como meta a ser alcançada pelo sujeito na realização de seus desejos ludopoiéticos de expressão de si mesmo por si mesmo como vivência plena da alegria de viver.

A Ludopoiese representa o processo de autocriação e recriação humana da ludicidade e suas propriedades revelam aspectos desse processo de autocriação. É o fenômeno do brincar consigo, com o outro de forma espontânea, despreocupada e sem restrição, ou seja, como seres ludopoiéticos que, no jogo da vida, criam e recriam sua ludopoiese ao vivenciar as emoções, os sentimentos e a imaginação.

Esta vida criativa emerge quando nos permitimos brincar como crianças, como revela Nietzsche (2008, p. 38) a criança é “a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira por si mesma, um primeiro movimento” que emerge e nos abre as portas para a ludopoiese. Devemos resgatar a criança brincante que nos habita, assim como o fez Jung (1988, p. 154), que se entregou ao deleite de brincar, construir castelos e viver de forma prazerosa: “o garoto anda por perto e possui uma vida criativa que me falta. Mas como chegar a ela? Parecia-me impossível que o homem adulto transpusesse a distância entre o presente e o décimo primeiro ano de vida”.

A ludopoiese é, portanto, um processo humano de construção e reconstrução de si próprio através da alegria, brincadeira e amorosidade, possibilitando um constante fluxo de transformação do criar, do sentir e do emocionar.