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A EMERGÊNCIA DA TATILIDADE NO JOGO DE AREIA

5.2. A INDICIALIDADE NO TOCAR

Muitas vezes nos deparamos com a incompletude da frase falada ou escrita. As reticências e os silêncios que antecedem ou finalizam uma ideia ou uma situação podem nos levar a leituras importantes sobre a subjetividade, o contexto social e emocional dos sujeitos. Gonzaléz Rey (2003, p. 266) afirma que a subjetividade representa “uma realidade que não é acessível de forma direta ao investigador [...] pois as expressões de cada sujeito [...] estão implicadas em sistemas de sentidos diferentes [...] e têm de ser descobertos no contexto em que são produzidos”.

Coulon (1995, p. 32) afirma que “a vida social se constitui através da linguagem: não a dos gramáticos e dos linguistas, mas a da vida de todos os dias”. É a linguagem que caracteriza o princípio etnofenomenológico da indicialidade, que em

nosso estudo caracteriza as entrelinhas das vivências ocorridas e registradas no Jogo de Areia e a expressão da tatilidade nos momentos de socialização dos cenários e em outros momentos em que os participantes foram chamados a socializar suas vivências. Guesser (2003, p. 159) afirma que “para se capturar o mundo social nas análises sociológicas, é necessário estar atento e levar em conta as redes de significações que são estabelecidas pelo uso da linguagem”.

É a linguagem que nos possibilita as interações com o mundo e é por ela que a comunicação se instala. Guesser (2003) afirma ainda que compreender o mundo é antes de tudo compreender a forma como se instala a comunicação por meio da linguagem. Neste sentido Gonçalves (2005, p. 96) reforça que “a linguagem é articulação de sentido, e o sentido diz respeito ao homem como uma totalidade”. É por meio da linguagem que melhor evidenciamos o princípio etnofenomenológico da indicialidade.

No contexto pesquisado, o Jogo de Areia se apresentou como uma linguagem simbólica e proporcionou a oralidade, pois é na socialização oral dos cenários que se revela o mundo social dos atores envolvidos no jogo, assim como se articulam novas linguagens no fazer e no conviver.

Paulo Freire defende que a educação deve ser capaz de possibilitar a ampliação da visão de mundo por meio de uma relação dialógica, não em uma simples transferência de conhecimento, mas antes de tudo em uma produção de conhecimento, como uma efetiva prática de liberdade. Para Freire (2005, p. 25), educar no diálogo “é tarefa daqueles que sabem que poucos sabem – por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem”.

E assim, na linguagem e no diálogo, nem sempre explícitos e claros, ocorridos durante as vivências no Jogo de Areia, observamos a importância do processo da oralidade para os atores que, construindo seus cenários, dialogavam simbolicamente e, ao socializar estes cenários, criaram abertura para que novos diálogos se instalassem por meio da linguagem.

Na abordagem do Jogo de Areia, adotada nesta pesquisa o cenário não fala por si só, como acontece no processo terapêutico, onde a construção da subjetividade daquele que constrói o cenário é interpretada pelo terapeuta. Aqui, é o construtor do cenário que o revela na oralidade e na linguagem corporal.

No cenário apresentado na figura 18 observa-se, na parte superior do lado esquerdo, um boneco enterrado na areia com as pernas para cima. A areia encontra-se

mexidas. Elaboramos distintas leituras em um momento inicial, porém, o cenário só tem sentido dentro do contexto em que foi construído, uma vez que os cenários no Jogo de Areia, em sua abordagem pedagógica vivencial humanescente, são construídos a partir de uma questão problematizadora. Portanto, para sua leitura, necessita-se saber qual foi a questão que gerou a construção do cenário e, obviamente, reconhecer que cada sujeito é singular e a subjetividade permeia a construção do cenário, configurando a indicialidade.

Figura 18 – Cenário construído por um dos participantes da pesquisa. No canto superior esquerdo observa-se uma miniatura de um boneco nu enterrado na areia com pernas para o ar. Somente o construtor do cenário é capaz de expressar seu significado dentro do contexto no qual o cenário foi construído, refletindo a indicialidade da linguagem.

Fonte: Musse (2010).

Na abordagem pedagógica vivencial humanescente, aquele que constrói o cenário é capaz de evidenciá-lo e descrevê-lo para os demais. É pela palavra e pela dinâmica corporal que o cenário emerge para o outro em sua inteireza, como afirma Maturana (2001, p. 168):

Palavras constituem operações no domínio de existência, como seres vivos, dos que participam na linguagem, de tal modo que o fluir de suas mudanças corporais, posturas e emoções tem a ver com o conteúdo de seu linguajar. [...] o que fazemos em nosso linguajar tem consequências em nossa dinâmica corporal, e o que acontece em nossa dinâmica corporal tem consequências em nosso linguajar.

Os observadores ouvem os relatos, elaboram novas linguagens e realizam leituras por meio da indicialidade da fala, configurando-se a corpografia daquele que relata e também daquele que escuta. E esta linguagem se revelou na escrita dos diários vivenciais, nas colagens, nas interações virtuais e nas filmagens. A linguagem é ampla, tem várias facetas e é o canal comunicacional com o mundo.

A transcrição do material gravado e filmado com as narrativas necessita da imparcialidade do pesquisador e posicionamento ético diante delas, uma vez que trabalhar com as imagens e com as narrativas, que são diferentes formas de linguagem, exige um olhar atento, como afirma Scoz (2004, p. 78, grifo da autora), sobre o desafio de integrar estas diferentes fontes de dados “manter um olhar e uma escuta que me permitissem ler nas entrelinhas aquilo que a autora da cena queria revelar ou esconder”. A leitura destas nuances da linguagem possibilita o adentrar no mundo daquele que se expõe ou se oculta pelos gestos, palavras e emoções, fornecendo pistas do modo de viver com e no mundo, refletido em sua corpografia.

Muitas vezes a expressão máxima do que queremos investigar não está naquilo que explicitamente os participantes deixam escrito ou nos apresenta. Quando o participante Berilo (2009) revela que “essa foto representa minha vida afetiva, meu lado pessoal, parte de grande valia da minha vida”, no texto que acompanhou a fotografia que o representava naquele momento, ele deixa pistas que a pessoa a qual ele se encontra abraçado é parte de sua vida amorosa e a fotografia (Anexo C) apresenta ainda balões vermelhos no formato de coração, mais um indício do processo amoroso no qual o participante está envolvido. Esta amorosidade cria um campo vibracional favorável às interações, tornando o sujeito mais propício para vivenciar sua autoformação humanescente.

As fotografias são uma importante fonte de dados implícitos, ou seja, a indicialidade das imagens é muito forte e requer cuidado e atenção em sua leitura. Um observador com olhar mais atento pode realizar inúmeras leituras a respeito do ser e estar das pessoas que estão sendo retratadas e seu mundo. Seu modo de vestir, o espaço físico onde a fotografia foi realizada e outros detalhes são uma fonte importante de

dados. A imagem é capaz de dizer muito mais que a palavra escrita, pois é nela que está a indicialidade da ação, dos sentimentos, da corporeidade.

O participante Quartzo (2009, grifo do autor) revela que ao tocar a areia com as luvas “senti uma agonia em colocar a luva e tocar os objetos e a areia e também tive vontade de tirá-la, me sinto cego com elas”. A cegueira do tato está relacionada a sua condição de ser uma pessoa cega e que usa o tato como importante forma de conhecer o mundo. Estar com sua mão protegida pela luva, deixa-o cego para a compreensão do mundo pelo sentido tátil, pois o tato, como afirma Montagu (1988) é a base de nossa concepção sobre o que existe fora de nós e o que está fora de nós é nosso mundo vivencial, com o qual interagimos e vivemos.

Algumas sensações foram percebidas pelos participantes em contato com a areia, possibilitando-os vivenciar situações inusitadas como descreve Zircão (2009): “cada vez que a tocava, sentia que cada grão, por menor que fosse, caminhava em minha mão”. A entrega ao devaneio e ao mundo da imaginação no Jogo de Areia leva à experimentação de sensações como a descrita pelo participante, possibilitando que a mão que desliza na areia proporcione que a areia e seus grãos caminhem pelas mãos daquele que toca e ao mesmo tempo é tocado. A entrega às sensações nos aproxima de nosso mundo exterior, como afirmam Moraes e La Torre (2004, p. 84) “as sensações constituem a fonte principal de conhecimento a respeito do mundo exterior ao nosso corpo. São nossos canais informativos”.

Ainda sobre as sensações e a entrega ao sentir mediado pela sensibilidade e a criatividade, o participante Ortoclásio (2009) expressa que “a areia que mexi deu a impressão de fluidez. Deve ser por isso que minhas sensações lembravam a água”. Nesta pesquisa o elemento água se relaciona à ludicidade, que é um dos fios da teia da corporeidade e também se relaciona ao conviver como um dos quatro pilares da educação (DELORS, 1999). É nesta entrega à brincadeira, se permitindo vivenciar a areia e o jogo, que o sujeito expande sua corporeidade, possibilitando o desabrochar de sua humanescência.

A indicialidade ficou evidenciada também no momento em que os participantes foram desafiados a criarem um cenário em uma caixa de areia de dimensões reduzidas e com poucas miniaturas. Nesta proposta vivencial a participante Muscovita (2009, grifo da autora) revela; “a sensação que tive foi se vira nos 30, tipo ter de fazer, com o que tinha no momento”. O termo em destaque na fala da participante refere-se a um programa de televisão, onde os participantes dispõem de 30 segundos para fazer sua

apresentação musical ou outro desempenho qualquer. Ou seja, é um momento em que a criatividade é a arma principal na resolução do problema.

A criatividade como um dos fios da teia da corporeidade é associada ao elemento fogo, que é a essência da vida, como afirma Bachelard (2008 a, p. 11) “o fogo é assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo [...] tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo”, ou seja, a velocidade se associa ao elemento fogo, mesmo ele sendo um elemento vinculado ao devaneio. Ainda para Bachelard (2008 a, p. 23) “não se entregar ao devaneio diante do fogo é perder o uso verdadeiramente humano e primeiro do fogo”. E este elemento da natureza, juntamente com a criatividade é também associado ao princípio do saber fazer, mostrando o homo faber que cria e constrói não somente a materialidade, mas que vivencia o fenômeno do criar com alegria e prazer, como continua a dizer a participante Muscovita (2009) diante do desafio de criar em situações desfavoráveis: “senti isto mesmo, fazer e acontecer, mesmo com as dificuldades, e quando isto acontece é muito gratificante, usar a criatividade e ver o trabalho feito”. E, mais uma vez, ficou evidenciado o princípio da indicialidade, pois o fenômeno precisa estar situado num contexto específico para revestir-se de significado.

Na experiência do Jogo de Areia com o uso de luvas, a participante Água- Marinha (2009, grifo da autora) deixa evidente novamente a indicialidade ao relatar que:

Na educação penso que temos de estar dispostos a lidar com as surpresas impostas no dia-a-dia e, por meio da criatividade, realizarmos de diferentes maneiras as formas que dispomos de ensinar mesmo que hajam luvas nos impedindo de liberar nossas vontades, nossas necessidades de inovar o cotidiano escolar.

A palavra “luvas” reflete aqui os impedimentos que ocorrem no processo educacional que enfrentam aqueles que querem inovar e adotar uma prática pedagógica diferente daquela tradicional onde as relações e o conhecimento são intermediados por uma barreira que dificulta o contato direto com o conhecimento. Mas, mesmo assim é possível romper estas amarras e impedimentos e fazer uma educação para a vida, como afirma Moraes (2008, p. 19) a beleza da vida está “em compartilhar experiências, alegria, afetividade, cuidados, carinho, emoções, intuições, desejos e afetos”, ou seja, de possibilitar viver e conviver mesmo com os impedimentos que ocorrem a cada momento.