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Durante milhões de anos a história de nosso planeta tem apenas as rochas como testemunhas. São elas que contam as histórias dos climas, das condições físicas e químicas de nossa atmosfera e das transformações por que passou nosso planeta até o acolhimento da vida.

Ser e estar nesse planeta, enquanto seres pulsantes e parte de uma grande teia, onde se interconectam emoções, sentimentos, história de vida, produção de conhecimento e tecnologia, nos faz muito semelhantes à rocha que abre esse capítulo, pois somos parte de uma grande estrutura, aparentemente caótica, mas repleta de beleza e história e aberta à leitura. Como disse o personagem de Monteiro Lobato, Visconde de Sabugosa7explicando seu sorriso diante de um barranco semelhante ao que ocorre na Barreira do Inferno: “Esse barranco é para mim um livro aberto, uma página da história da Terra, na qual leio mil coisas interessantíssimas”.

Para ele, as ravinas, os barrancos, as areias e as montanhas são páginas de um livro aberto, que contam pedaços da vida da Terra. Mas só aquele que sabe ler o livro da natureza é capaz de compreender a beleza e o conhecimento que eles trazem e, muito

7Visconde de Sabugosa é um personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, criado pelo escritor

brasileiro Monteiro Lobato. O Visconde é um boneco feito de sabugo de milho, um grande sábio, cuja sabedoria obteve através dos livros.

mais, é capaz de ler através do contato direto com o mundo, se permitindo vivenciar e aprender através de todos os sentidos.

Assim somos nós, sujeitos de convivências, fazeres, saberes e abertos para o conhecimento. Assim como o arenito que se transforma, nós também passamos por processos que expandem nossa corporeidade, mudam nossas cores e formas. Somos seres em constante transformação que experienciam o mundo e interagem a cada momento com outros seres e com a força modeladora das emoções, como sujeitos ludopoiéticos imprimindo em nós a história de nossas vidas.

Nossa educação está cada vez mais centrada no processo auditivo e visual (MINOGUE e JONES, 2006), na posição estática dos corpos dos alunos diante dos computadores ou das telas de projeção. O professor fala e mostra imagens estáticas ou móveis. O aluno, sentado na cadeira ouve e vê, como “mero espectador, de simples receptor, presenciador e receptor” (MORAES, 2005, p. 17). A maioria das vezes ele vê muito mais do que ouve, pois o que se projeta nas telas são palavras e como afirma Mousquer (2004, p. 102, grifo da autora) “O olhar nas escolas está centrado em palavras”, quando discute o uso das imagens na escola. As imagens são importantes, assim como a oralidade.

Bosi (2006, p. 65) afirma que “os psicólogos da percepção são unânimes em afirmar que a maioria absoluta das informações que o homem moderno recebe lhe vem por imagens [...] oitenta por cento dos estímulos seriam visuais”. Mas a imagem não se forma somente pelo sentido da visão. Precisamos avançar, ir além de um corpo que só ouve e/ou vê. Somos sujeitos plurisensoriais e nossos sentidos dialogam no processo de produção de conhecimento. A imagem fala, traz em si o discurso, mas este discurso é construído pelo processo cultural e pela forma de ser e estar no mundo de cada um, e não está ligado somente ao sentido da visão, mas se forma pela mixagem de nossos sentidos.

O processo físico e biológico da visão é similar em todos os seres humanos, como afirma Sardelich (2006, p. 212) o que diferencia é “o modo de descrever e representar o mundo de cada um deles, já que eles possuem diferentes maneiras de olhar para o mundo”. Mas não se olha somente com o sentido da visão, que é um poderoso desvelador do mundo que vivenciamos, porém ele é mais amplo e complexo, como diz Bosi (2006, p. 66) “o olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto sensibilidade e enquanto motricidade”.

Não se pode pensar em uma autoformação humanescente sem considerar o sujeito que aprende e que ensina em sua inteireza no sentipensar. É preciso avançar em prol de sua capacidade de fazer uso de todos os seus sentidos e sentimentos fazendo desabrochar sua corporeidade. Como discute Probyn (2004), o desafio é usar a imaginação para despertar a curiosidade, o intelecto e as emoções dos alunos. Para Paulo Freire (2004, p. 150) “a curiosidade é motor da produção de conhecimento”.

A corrente social da autoformação tem em Dumazedier (2001, p. 265) seu maior representante, que compreende o lazer como um tempo voltado para a satisfação do indivíduo, gerando uma possibilidade de autoformação permanente, de ruptura com a vida cotidiana. Para o autor “o tempo de lazer, enquanto um tempo de fruição, torna-se também um tempo de aprendizagem, aquisição e integração, diverso dos sentimentos, conhecimentos, modelos e valores da cultura”.

A vertente existencial da autoformação inaugurada por Gaston Pineau, com seguidores como Marie-Christine Josso e Galvani, considera que na autoformação o aprendente é a peça fundamental na construção dos conhecimentos e dos sentidos produzidos.

Galvani (2001, p. 2) define autoformação como sendo “um processo cotidiano, humano, vital, que permite a cada pessoa produzir uma forma pessoal, a partir do conjunto de suas interações com o meio ambiente”, acontecendo a todo o momento e em todas as situações a que está inserida em seu processo vivencial, envolvendo a produção de uma forma e de um sentido pessoal.

O grande desafio é reencantar a educação e implantar novas práticas pedagógicas, levando a experiencialidade para o ambiente escolar, possibilitando a interação entre os sujeitos no processo do ensinar e aprender, resgatando e compreendendo as implicações do corpo e a corporeidade na dinâmica educacional.

Pouco se pesquisa sobre a importância do tocar no processo de ensino e aprendizagem. Ao se pesquisar sobre o tato na educação, encontramos muitos trabalhos voltados ao uso deste sentido na aprendizagem de pessoas cegas, porém o desenvolvimento do tato em pessoas que não tem o sentido da visão é muito diferenciado daquelas que tem todos os sentidos e onde o tato dialoga muito intensamente com o sentido da visão e os outros sentidos (GARDINER; PERKINS, 2005; THOMPSON; CHRONICLE, 2006).

Uma pesquisa na Scientific Electronic Library Online – SciELO, biblioteca eletrônica que abrange uma coleção de periódicos científicos, com o termo tato,

apareceram 41 artigos. Destes 25 foram na área da Saúde, sete na área de ciências humanas e os outros nas de Agricultura, Linguística e Arquitetura. Muitos destes artigos relacionam o tato no sentido figurado de ter habilidade nas relações humanas. Ao pesquisar as palavras tato e educação, somente três artigos abordam a temática, dois no sentido figurado da palavra e um no tato das pessoas cegas.

Na biblioteca da Universidade de São Paulo, somente dois trabalhos tratam do tato na educação e eles são direcionados para as pessoas cegas. Alguns autores discutem o uso das maquetes em sala de aula, desde sua elaboração até seu uso, porém a abordagem é voltada para a percepção de conteúdos técnicos, sem referências ao tocar como possibilidade de brincar, criar e sentir (LOMBARDO; CASTRO, 1997; SILVA, RIBAS; FREITAS, 2008). As maquetes devem ser tocadas e manuseadas pelos alunos, ajudando-os a desenvolver suas habilidades muscular, perceptiva e psicomotora proporcionando-os experiências concretas com conceitos intangíveis e ideias (ROSS; KURTZ, 1993).

O tato, conforme Minogue e Jones (2006) é inerentemente multidisciplinar, envolvendo pesquisa na engenharia, robótica, psicologia experimental, ciência cognitiva, ciência da computação, e, muito discretamente na tecnologia educacional. Os autores realizaram uma revisão bibliográfica sobre o tato na educação. Eles realizaram uma pesquisa em duas bases de dados eletrônicas, ERIC8 e PsycINFO9. Inicialmente utilizaram o termo háptico como a única palavra-chave, o que mostrou 1151 resultados (187 do ERIC e 964 do PsycINFO). Posteriormente, utilizaram os termos tátil e aprendizagem como palavra-chave e encontraram 279 referências, 185 do PsycINFO e 94 de ERIC. A próxima pesquisa empregou o termo háptico e educação. Surpreendentemente, isso resultou em apenas 126 referências, 90 de ERIC e 36 de PsycINFO. Os resultados duplicados foram eliminados, restando somente 144 artigos para serem examinados. Destes trabalhos eles selecionaram aqueles que investigavam o desenvolvimento de tato e seu papel na cognição; os que tratavam especificamente das interações da visão com as percepções táteis e os trabalhos que investigavam diretamente o uso do tato no contexto de ensino e aprendizagem.

8ERIC - Education Resources Information Center, ERIC oferece acesso ilimitado a mais de 1,3

milhões de registros bibliográficos de artigos de periódicos e outros materiais relacionados com a educação.

9PsycINFO é um banco de dados abstratos que proporciona uma cobertura sistemática da

Da análise destes trabalhos os autores detectaram que pouquíssimas pesquisas empíricas têm, sistematicamente, investigado o valor do tato no complexo processo de ensino e aprendizagem. Algumas pesquisas na área de Física, Biologia e Matemática lançam mão da experiência tátil, porém mais voltados para o toque passivo, onde o indivíduo não escolhe deliberadamente suas ações na exploração e manipulação de um objeto. Byington (2003, p. 162) afirma que “a ausência das mãos no aprendizado, a não ser para o professor escrever no quadro-negro e os alunos anotarem, é uma das mutilações do ensino tradicional”.

Gibson (1996) faz uma interessante discussão sobre os sistemas de percepção, entre os quais o sistema háptico. Para o autor, sempre foiassumidoque nossos sentidos visual, auditivo, tátil, olfativo e gustativo eram os canais da sensação, porém, ele afirma que os órgãos sensórios constituem-se em sistemas perceptivos complexos e interrelacionados. Ainda de acordo com Gibson (1996.) o sistema háptico não possui um órgão especifico de sentido, mas receptores nos tecidos que estão por toda parte do corpo, portanto, as mãos e outros membros do corpo são efetivamente órgãos ativos de percepção. O autor ressalta ainda, que no ser humano as duas partes principais do que ele chama de “aparato háptico” são a pele e o corpo em movimento, por mais sutil que seja o movimento, desde um eriçar de um pelo até o movimento das mãos sobre a areia. Portanto, o sistema háptico precisa ser considerado em uma dimensão mais ampla que o simples tocar com as mãos, uma vez que todo o corpo toca o mundo vivencial, ao interagir com ele, desenvolvendo assim sua tatilidade como fenômeno de apreensão do mundo pelo ser humano, o qual permite sua interação sensitiva e cinestésica com todos os seres da natureza. A tatilidade está intimamente relacionada com sua corporeidade e, portanto, é responsável pela qualidade e quantidade das emoções que se revela e se vivencia no mundo (MONTAGU, 1988; GIBSON, 1996; FINNEGAN, 2005).

A apreensão do mundo vivencial acontece por meio do toque ativo onde interagimos com os objetos, não somente com o tato, mas em interação com a audição, o paladar, o olfato e visão, intermediados pelos sentimentos. Por meio deles sentimos o mundo e dialogamos com outros seres e com a natureza. Os sentidos não atuam de forma isolada, ao contrário, eles dialogam constantemente e o tato tem possibilidades múltiplas, pois através deste sentido “sinto a dureza, a flexibilidade daquilo que toco, mas também sinto o frio, o calor, a suavidade, a textura daquilo eu me toca”, afirma Austry (2008, p. 118).

Este diálogo dos sentidos, conhecido como sinestesia nos possibilita vivenciar situações inusitadas como sentir o gosto das cores ou das músicas. Sacks (2007) esclarece que durante muito tempo a sinestesia foi interpretada como sendo fruto da imaginação de artistas e escritores. Com o avanço das pesquisas neurofisiológicas sobre este fenômeno sabe-se, no entanto, que algumas pessoas podem ter ativação simultânea ou coativação de duas ou mais áreas sensoriais no córtex cerebral. Para o autor a sinestesia não pode ser controlada e nem induzida.

Basbaum (2002), afirma que neurologicamente a sinestesia se apresenta de duas maneiras. A primeira trata da sinestesia constitutiva que revela mecanismos cerebrais e cognitivos e a segunda é a associação entre modalidades perceptivas de maneira geral. Interessa-nos neste trabalho a sinestesia cognitiva que se caracteriza por associações de ideias, como ouvir uma música e associar a determinado ambiente experienciado anteriormente ou sentir um cheiro e ser remetido a outro espaço-tempo.

O Jogo de Areia, por seu caráter lúdico-criativo, é uma estratégia vivencial que possibilita o construir e reconstruir do mundo por intermédio da tatilidade, onde a pessoa passa a ser o ator principal na construção de seus conhecimentos, utilizando a inteireza de seu corpo e sua corporeidade. Este é um processo permanente que fortalece a autoformação humanescente.

Porém, tradicionalmente, o Jogo de Areia é aplicado no âmbito psicoterapêutico, com poucos trabalhos voltados para a área pedagógica, como vivência ludopoiética. Entre os autores que se afastam que têm buscado interlocuções entre o Jogo de Areia e outras áreas do conhecimento, destacam-se Giovanetti e Sant'anna (2005) que investigaram o psicodiagnóstico interventivo com Jogo de Areia na avaliação de momentos de crise adaptativa às atividades clínicas e institucionais do curso de Psicologia, bem como no término da graduação. Scoz e Mitjáns (2009) utilizaram-no como recurso metodológico para o estudo da zona muda das representações sociais, especialmente as representações sociais de professores, pela sua significação para a prática pedagógica. Scoz (2004; 2008) utilizou-o como uma técnica que contribui para uma aproximação da compreensão da subjetividade em psicopedagogia. Franco e Pinto (2003) apresentam possibilidades de sua ampliação como um instrumento de pesquisa acadêmica na psicologia clínica, enfocando-se suas propriedades projetivas e diagnósticas.

A sistematização do Jogo de Areia como estratégia vivencial no processo de ensino-aprendizagem e como técnica de pesquisa que complementa entrevistas e outras

abordagens, vem sendo realizada desde o ano de 2006 pela Linha de Pesquisa Corporeidade e Educação no PPGED/UFRN e também nos laboratórios vivenciais de cada pesquisador que atuam na área de Lazer (PEREIRA, 2007; PEREIRA; CAVALCANTI, 2007; PEREIRA, 2008; MAIA, 2008); Música (MOSCA, 2007, 2008), Formação de Professores (MUSSE, 2007a, 2007b; 2008a, 2008b) Educação Infantil (BARBOSA, 2007, 2008, 2009; PINHEIRO, 2010); Enfermagem (SAMPAIO, 2009).

Para Franco (2009) o uso do Jogo de Areia na realidade brasileira tem passado por modificações e adaptações, criando uma identidade brasileira “capaz de respeitar diferenças e em evolução para a ampliação de seu reconhecimento”. Entre estas modificações e adaptações está o seu uso no processo educacional, onde os cenários são construídos individualmente, mas nem por isso configurando-se como um processo solitário; ao contrário, é uma construção permanente sem a dependência dos outros, na relação com eles, apoiados pela reflexividade, ludicidade, criatividade e imaginação como sujeitos autopoiéticos e humanescentes. É uma quebra de paradigma com a cultura tradicional de se aprender somente com o aporte visual e oral, onde a prática, o tocar e o vivenciar ainda estão muito longe da escola.

Portanto, as vivências com o Jogo de Areia, no processo educacional e como vivência ludopoiética, necessitam de uma investigação mais aprofundada, possibilitando compreender o movimento da tatilidade no fazer com as mãos e suas possibilidades ludopoiéticas na autoformação humanescente.