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A EMERGÊNCIA DA TATILIDADE NO JOGO DE AREIA

5.1 EXPERIENCIALIDADE: A ENTREGA AO TOCAR

O princípio etnofenomenológico da experiencialidade20 aborda a forma como o fenômeno é vivenciado pelos sujeitos na sua prática. Como afirma Coulon (1995, p. 30) é o método que “os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as suas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar”. Adotamos o termo experiencialidade em substituição aos termos “prática – realização” da etnometodologia uma vez que o sujeito pode praticar ou realizar suas atividades cotidianas sem necessariamente vivencia-las de forma amorosa e de entrega, como ocorre na experiencialidade onde o fenômeno é vivenciado de forma integral no corpo e na corporeidade.

No Jogo de Areia, enquanto processo terapêutico, o sujeito ao construir seus cenários é confrontado com seus próprios pensamentos e sentimentos, sendo encorajado a olhar para o mundo de todos os ângulos (KWASNIEWSKI, 2005). Na abordagem pedagógica, o processo é similar, pois o sujeito faz conexões com diferentes saberes ao experimentar o processo de reflexão, construção dos cenários e socialização, o que leva a novas reflexões. E isto é possível através da construção do cenário e da vivencialidade do mundo vivido e representado na caixa de areia, quando ele comunica, toma decisões, raciocina e conhece. É o jogo da beleza do fazer, ser e conviver, como adverte Paulo Freire (2006, p. 28): “uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de intervindo no mundo, conhecer o mundo”.

E conhecer deve-se dar pela interlocução de nossos sentidos em nosso ser e estar no mundo. São as mãos as principais interlocutoras dos demais sentidos no Jogo de Areia. Por meio delas entra-se em contato com o substrato, toca-se e manuseiam-se

20O termo experiencialidade vem da palavra experiência, acrescida do sufixo dade. Este sufixo expressa

as miniaturas, constroem-se os cenários. Sobre a ação das mãos e seu papel na transformação da matéria e de nosso espírito, argumenta Focillon (1983, p. 156):

O espirito faz a mão, a mão faz o espirito. O gesto que não cria, o gesto sem amanhã provoca e define o estado de consciência. O gesto que cria exerce uma ação contínua sobre a vida interior. A mão arranca o tato de sua passividade receptiva, ela o organiza para a experiência e a ação. Ela ensina o homem a se apropriar da extensão, do peso, da densidade, do corpo. Criando um universo original, deixa em todo ele a sua marca. Mede forças com a matéria, que transforma, e com a forma, que transfigura. Educadora do homem, ela o multiplica no espaço e no tempo.

A primeira experiência onde o fenômeno da tatilidade se revelou e foi identificado pelo princípio etnofenomenológico da experiencialidade centra-se no processo de escolha das imagens da representação de si e seu envio pelo correio eletrônico, feito por cada um dos participantes da pesquisa.

Levando em consideração que as conexões virtuais e as interações mediadas pela máquina que também envolve troca de energia, o usuário ao clicar no mouse dependerá da coordenação viso manual. Tal gesto envolve seu corpo através das pontas de seus dedos em conexão com todas as outras partes, e, portanto, na ação efetiva das mãos na interação com o computador e na intencionalidade, onde se vivencia a tatilidade (SANTAELLA, 2008).

A intencionalidade e efetivação da ação de enviar uma fotografia e escrever um texto evidenciam a interação sensorial e sinestésica do sujeito, como afirma Santaella (2008, p. 49, 50) “o clique do mouse significa não apenas movimentar-se física e mentalmente no ambiente, mas, sobretudo, agir sobre ele”. Agimos sobre o ambiente não somente por meio de nosso corpo, mas também pela via dos sentimentos e emoções. Santaella (2008, p. 49) afirma que, ao usarmos as mãos nas interações com o computador, mais especificamente as pontas dos dedos, “é tal a concentração da sensibilidade tátil na ponta do dedo que, na realidade, é a sensibilidade do corpo inteiro que se desloca para esta extremidade”.

Na experiência com o Jogo de Areia há uma interação direta com o objeto, uma efetiva “mão na massa”. Muitas vezes os participantes se sentem retraídos, pois o ambiente educacional no qual estão inseridos é mediado somente pela voz e pela visão e, muitas vezes, esquecendo-nos que “a realidade se manifesta a partir do que somos capazes de ver, interpretar, de construir e reconstruir” (MORAES, 2004, p. 40). O

conhecimento, na maioria das vezes, está posto como certo e imutável e quase nunca ele é construído pelos atores do processo de ensino aprendizagem, no caso, os alunos e os professores, onde não há envolvimento emocional das partes. Para Assmann (2005, p. 50), “nos novos sistemas de aprendizagem é impossível determinar a separação dos sentidos e das emoções no processo de descoberta e de criação do conhecimento”.

A prática manual possibilita vivenciar o Jogo de Areia de forma diferenciada, oportunizando experienciar sensações distintas daquelas que estão acostumados, evidenciando a experiencialidade, como afirma o participante Quartzo (2009):

[...] tivemos a oportunidade de vivenciar os objetos de uma forma diferenciada. [...] tiramos nossos sapatos e sandálias e nos sentamos no chão, estava tudo bem, mas o melhor ainda estava por vir. Depois disto foi pedido para que eu colocasse em uma das mãos uma luva e tocasse na caixa de areia que estava na minha frente. Esta experiência foi inovadora. Eu nunca tinha tocada na areia com a mão vestida de luva.

O fazer com as mãos remete-nos imediatamente às produções realizadas pelos sujeitos e sua relação com a tatilidade. Para Paz (2006), as produções, que o autor denomina de artesanato, são feitas pelas mãos humanas mediadas pela sensibilidade e utilizam fragmentos de objetos que trazem uma história e são usadas para construir outras histórias, outras representações. Na vivência do tocar houve o envolvimento das mãos, do sentir, do pensar, do criar, da convivência com o outro e do emocionar, não na confecção de um objeto de artesanato, mas na construção de um símbolo de si, guardando similaridades com o artesanato, tão poeticamente descrito por Octávio da Paz (2006. p. 3):

Uma vez que é feita por mãos humanas, a peça de artesanato preserva as impressões digitais – reais ou metafóricas – do artesão que a criou. [...] Além de ser feito por mãos humanas, o artesanato também é feito para mãos humanas: não apenas podemos vê-lo, mas tocá-lo com nossos dedos. [...] A natureza transpessoal do artesanato está expressa, direta e imediatamente, na sensação: o corpo é participação. Sentir é, antes de tudo, ter consciência de algo ou de alguém além de si mesmo. Mais ainda: é sentir com alguém. [...] Nós sentimos por meio dos outros. [...] O objeto feito à mão é um signo que expressa a sociedade humana de uma forma própria: não como ferramenta (tecnologia), não como símbolo (arte, religião), mas como uma forma de vida física e simbiótica.

Usar as mãos para o fazer, possibilita-nos abrir os canais sensoriais e comunicacionais com o mundo representacional, vivenciando o mundo pela inteireza de nosso Ser. Isto foi efetivado por meio de experiencialidades vivenciais com o no Jogo de Areia que possibilitaram a expansão da consciência para a liberdade e a autonomia do ser criativo, sensível e lúdico.

Como afirma Schiller (2002b, p.88, grifo do autor) “expressamos a liberdade da fantasia, enquanto lhe damos asas; deixamos Psiche erguer-se com asas de borboleta sobre o plano terreno quando queremos designar sua liberdade dos grilhões da matéria”. E assim, quando damos asas às nossas mãos, elas são capazes de nos transportar ao mundo sensorial onde somos capazes de vivenciar nossa tatilidade com nossos sentimentos e emoções pelo saber fazer, como afirma o participante Ortoclásio (2009) sobre sua criação que envolve um arco-íris: “[...] atravessar cada parte do arco-íris, e compreende-los em sua essência é o caminho para se chegar a sabedoria divina. Essa sabedoria não significa que seremos Deuses assim como o criador de tudo. O que mudará em nós é a percepção da vida”.

Entregar-se ao devaneio da criação é prazeroso para algumas pessoas, porém outras ficam tolhidas pela falsa crença de que não são capazes de criar ou de se representar, como revela a participante Água-marinha (2009) “não é tarefa fácil falar de nós mesmos e muito menos nos representar [...] se admitirmos que, como seres falhos, não conseguimos enxergar nosso próprio interior”.

Para aqueles os quais o processo criativo é natural, com entrega total, os corpos ficam relaxados, as mãos são ágeis, os rostos mostram concentração e entrega a atividade. As mãos executam um balé gracioso no ir e vir e na entrega aos objetos, a interlocução com os outros sentidos se instala sem defesas e todo o corpo se entrega ao processo do criar. O ser e o fazer com criatividade e sensibilidade se movimentam juntos, articulando toda a teia da corporeidade em junção com a teia do Jogo de Areia.

Em contrapartida, para aqueles em que o processo criativo apresenta barreiras de qualquer natureza, há uma ruptura instantânea na espontaneidade dos movimentos, e as mãos deslizam inseguras e os olhos passeiam ansiosos pelos objetos como relata a participante Ágata (2009) “a princípio tive certo receio na maneira de como iria fazer para me apresentar, que objetos usar, como fazer”.

A vivência no Jogo de Areia utilizando as luvas desencadeou nos participantes uma experiência inusitada e geradora de emoções conflitantes entre o tocar e o não tocar, como observamos na fala de Ametista (2009): “Na primeira experiência, de tocar

a areia com luvas nas mãos, tive a sensação de não tocá-la, como algo que pertencesse a mim, mas não conseguisse senti-la de fato”.

As experiências com o Jogo de Areia foram vivenciadas de formas diferenciadas por cada um dos participantes. Alguns apresentaram receio e intimidação, como expressa Ortoclásio (2011): “a vivência com o jogo de areia primeiramente me provocou uma reação de intimidação. Ter que falar sobre meus sentimentos e minhas ideias com aquilo que fazíamos na areia me provocava receio”. Outros se mostraram muito a vontade e se entregaram ao desafio, como relata Quartzo (2011) “as minhas experiências, com a caixa de areia sempre foram excelentes. Tendo em vista que era como embarcar numa aventura, cheia de desafios”, e também Zircão (2011) “me sinto lisonjeado de ter participado de uma pesquisa tão importante e ao mesmo tempo tão simples e prazerosa. É impressionante como nossos encontros nas segundas-feiras me deixavam feliz”.

Sabemos que o Jogo de Areia tem o potencial de fazer aflorar a emoção, que muitas vezes fica aprisionada nos recônditos de nossa alma e todo nosso sentir se torna um prisioneiro ávido por encontrar uma forma de se libertar, e nossas ações cotidianas refletem esta busca. Para Maturana (2006, p. 130) “se queremos compreender qualquer atividade humana, devemos atentar para a emoção que define o domínio de ações no qual aquela atividade acontece”.