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SEGUNDA VIVÊNCIA PEDRAS, AREIA E ESPAÇOS: O LUGAR DO CUIDADO E DAS EMOÇÕES.

A BELEZA DO JOGO DOS GRÃOS E SEU DESENHO NO MUNDO

4.2 SEGUNDA VIVÊNCIA PEDRAS, AREIA E ESPAÇOS: O LUGAR DO CUIDADO E DAS EMOÇÕES.

Esta vivência foi alicerçada no cuidado. A preparação do ambiente envolveu uma dose extra de cuidado. O espaço vivencial continha os materiais que iriam ser utilizados, a vista de todos, com tapete para a colocação dos sapatos na entrada da sala, mantas, música suave, lanche coletivo, cartão de boas vindas com desenhos do Pequeno Príncipe e muita alegria no recebimento de todos.

No centro da sala foi colocada uma manta costurada e preparada para nossos momentos presenciais, com um fundo preto e com a representação dos quatro elementos poéticos de Bachelard. No centro uma mandala em espiral para representar o movimento da vida e das areias sobre o planeta, representando o movimento da vida com o ser e o conviver no fazer e no conhecer como saberes essenciais para uma vida tecida com a teia da corporeidade. O movimento das areias serviu para nos sensibilizar que, assim como elas, somos fluidos e sensíveis aos elementos água e ar, que transmutam e transformam o elemento terra, representado pelo planeta como casa que nos abriga e acolhe; e alimentado pelo fogo, representando as emoções.

A manta foi confeccionada em tecido preto, e sobre ela foram feitas representações dos elementos fogo, água, ar e terra em tecidos coloridos, como se eles brotassem da base escura, mostrando que devemos tirar cor e alegria dos ambientes obscurecidos, dos corpos entristecidos e sem emoção (Figura 8).

Figura 8 – Fotografia mostrando a manta confeccionada para os encontros, com a representação dos quatro elementos: água, fogo, terra e ar.

Fonte: Musse (2009).

A cor preta e seu aparecimento indicam a ausência de luz ou ainda a mistura de todas as cores. Existem várias associações culturais com esta cor, geralmente ligadas à sombra, frio, luto, entre outras. Mas essa cor também está associada à terra fértil, que contém os mortos e prepara o seu renascimento (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007), sendo o local de onde germina e frutifica a semente que se lança. Portanto, a ideia foi usar a cor preta como o solo fértil para acolher nossos encontros e descobertas, e também por representar a mistura de todas as cores, em analogia ao ser humano que nasce para vivenciar o arco-íris de suas emoções, de seus sentimentos, em sua inteireza. Da cor preta brotam outras cores, que estão ali aprisionadas e à espera de uma brecha

para explodir em cores e, assim, tornar os seres e o mundo mais belos e alegres, possibilitando o fluir da humanescência.

A ideia de confeccionar a manta foi para mostrar a importância de cuidar do outro, cuidar do ambiente, pois nada se constrói sem a dimensão do cuidado, como afirma Boff (2004, p. 191) “hoje, na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda parte [...] que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações!”.

Depois do acolhimento nos sentamos confortavelmente em círculo e iniciamos fazendo a leitura da fábula número 220 de Higino (43 a.C. – 17 d.C.), escravo liberto de César Augusto, seu bibliotecário e filósofo, utilizada por (BOFF, 1999) – Anexo D, para ilustrar a amplitude da ideia de cuidado que ele defende. Para o autor, o cuidado é anterior ao espírito e ao corpo, é ontológico e deve existir antes para que o ser humano possa existir. O cuidado revela a essência do ser humano. Portanto, o cuidado é primordial na autoformação humana e para o desabrochar da humanescência.

Posteriormente fizemos uma reflexão sobre a importância do corpo, da corporeidade e dos sentimentos para nos tornarmos melhores e capazes de irradiar energia, nos assumindo enquanto seres cuidadores.

A seguir, realizamos a leitura de um texto do clássico livro de Antoine de Saint-Exupéry (1993) sobre o Pequeno Príncipe (anexo E), que nos lembra da importância do cuidado a partir do ato de cativar. Ao se cativar uma pessoa, estamos ganhando seu bem querer. O cativar é uma construção diária que desenvolve ao redor daquele que cuida um halo energético que alcança o que é cuidado, fortalecendo assim o campo energético entre quem cuida e quem é cuidado.

Nessa interação entre o cuidado e o cativar estamos fortalecendo a autoformação humanescente, que é um processo cíclico onde os sujeitos aprendem vivendo e vivem aprendendo, fazem conhecendo e conhecem fazendo, realizando uma reflexão contínua sobre si, sobre seu estar no mundo e sobre suas ações no e sobre o mundo, permeados pelo fluxo energético das emoções e sentimentos, que formam um campo vibracional entre os seres da natureza. (MATURANA, 1995; FREIRE, 2006; GALVANI, 2001).

Após as leituras, realizamos uma vivência para demonstrar a importância das prioridades em nossa vida, a partir de um texto filosófico de autoria anônima (Anexo F). O autor usa pedras, pedregulhos e areia para demonstrar como priorizamos as coisas mais importantes em nossa vida. Estes elementos se distinguem uns dos outros pelo seu

tamanho, do maior para o menor, respectivamente. Segundo o texto, a família, amigos, nossa saúde e nossos filhos são as coisas que preenchem a vida e que seriam representados pelas pedras maiores. Os pedregulhos representariam os bens materiais como casa, carro, nosso emprego, e outros. E a areia representaria as coisas menos importantes, que não é dito quais são. Para o filósofo anônimo, o receptáculo de vidro, que representa nossa vida, só comporta estes elementos se eles forem colocados por ordem de prioridade. Ou seja, primeiro as pedras, depois os pedregulhos e finalmente a areia. Se houver uma inversão e colocarmos inicialmente os pedregulhos ou a areia, as pedras não caberão no vidro.

Porém, realizamos uma releitura e reescrita do texto (anexo G) e adicionamos um quarto elemento, a água, e associamos a areia com o brincar, o criar, o imaginar. Assim, fomos colocando no vidro as pedras, depois os pedregulhos que iam se encaixando nos espaços vazios, depois a areia que entrava por todos os lados, sem cerimônia. O vidro pareceu estar cheio. Nada mais cabia ali. Ou ainda caberia a água?

Derramamos toda a água no recipiente, que foi preenchendo todos os espaços vazios entre as pedras, entre os pedregulhos, e os poros da areia. Ela percolava livremente entre pedras, pedregulhos e areia, preenchendo todos os espaços vazios. Como a água percola os espaços vazios mais ínfimos, aqui, ela representa nossas emoções, o nosso sentir, preenchendo os espaços mais íntimos do espírito humano. Sem as emoções não somos nada além de um amontoado de pedras, pedregulhos, areias, vazios.

Os mais íntimos vazios e aqueles que dão coesão ao espírito necessitam estar abertos para a chegada das águas. Não de forma exacerbada, pois sabemos que todos os extremos são prejudiciais. A beleza da vida está exatamente na adequada combinação de pedras, pedregulhos, areia e água e na movimentação e reorganização que elas se permitem.

Devemos ter muito cuidado em não priorizar nossas pedras ou qualquer um dos outros elementos, pois não somos um recipiente fechado, nossa corporeidade possibilita a organização de prioridades de acordo com o contexto no qual estamos inseridos, onde as emoções devem permear todos os espaços que existem entre os grãos em um eterno movimento de vida, flexível e aberto.

Além do mais, a vida não é um vidro onde estão contidos nossas pedras, pedregulhos, areia e água. Somos sujeitos corpóreos, com nossa corporeidade

permeando o corpo, de forma que não há como estarmos contidos em um espaço, sem podermos adicionar nenhum elemento que não aqueles pré-definidos.

Nesse ponto começamos os questionamentos sobre o cuidado, o cativar, o inacabamento, as prioridades de nossa vida com as seguintes questões: O cuidado faz parte de sua vida? Como você tem se cuidado? Como você cuida do outro?

Solicitamos que cada um fizesse um cenário do “cuidar de si” e no momento de socialização, percebemos como o cuidado se revelou com beleza e espontaneidade logo no início da socialização das representações, quando os participantes se preocuparam em descrever detalhadamente cada imagem de suas construções para o companheiro cego, como pode ser observado abaixo:

Bem vou descrever um pouquinho para o quartzo [...] eu fiz uma espécie de balãozinho onde sempre eu coloco uma bonequinha representando a minha pessoa desde o primeiro cenário. E coloquei algumas palavras como: amigos, música, futuro, história. Fiz um monte de bonequinhos e um cachorrinho representando a minha família. Um livrinho com a palavra aprendizado e uma imagem da natureza, certo? (MUSCOVITA, 2009).

A este fenômeno, Assmann e Mo Sung (2000, p. 134, grifos dos autores) denominam sensibilidade solidária que “é a forma de conhecer o mundo que nasce do encontro e do reconhecimento da dignidade humana dos que estão dentro-e-fora do sistema social”, ou seja, aqueles que por algum motivo estão à margem da sociedade.

O cuidado com o outro é primordial para que a sociedade possa ser igualitária e que possa acolher a todos em um ambiente humanescente, sadio e que contribua para o aprimoramento do outro, enquanto cidadão de direitos e deveres, capaz de viver em harmonia consigo próprio, acolhendo e sendo acolhido, como afirma Diopsídio (2009): “a temática cuidado para mim está relacionada a deixar esse egoísmo de cuidar somente da gente de lado e passar a cuidar de todos”.

Cuidar do planeta é uma das formas mais amplas de cuidado, pois envolve o cuidado com a vida de todos os seres do planeta. Para Capra (2002, p. 64, grifo do autor) “a vida, efetivamente, fabrica, modela e muda o meio ambiente ao qual se adapta. Em seguida, esse meio ambiente realimenta a vida que está mudando, atuando e crescendo nele”. Assim, demonstrar cuidado com o meio ambiente evidencia qualidades essenciais para os seres reflexivos que vivem e convivem neste planeta que é nosso abrigo, mas que tem sofrido as agruras de conviver com seres humanos que não se

entregam à dimensão do cuidado e não percebem que a natureza é nosso maior presente, como nos diz Diopsídio (2009) “Eu me remeti aqui à questão ambiental, onde a natureza que é um dos nossos maiores presentes, está sendo degradada de forma acelerada e preocupante, então eu quis mostrar aqui a questão de cuidar da natureza” .

Observa-se que o cuidado permeia todas as esferas da vida, desde o cuidado consigo, com o outro e com a natureza. Cuidar é viver em harmonia e dignidade e para tanto é necessário, como afirmam Maturana e Verden-Zöller (2006, p. 256) que “tenhamos a audácia de viver seriamente a responsabilidade de seres humanos que querem gerar no dia-a-dia, um mundo humano em harmonia com a natureza a que pertencem”.

4.3 TERCEIRA VIVÊNCIA - O JOGO DE AREIA COM AS MÃOS ENCOBERTAS: