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A EMERGÊNCIA DA TATILIDADE NO JOGO DE AREIA

5.5 A FILIABILIDADE NAS RELAÇÕES AMOROSAS

O princípio da filiabilidade foi modificado da noção de membro de Coulon (1995). Este termo foi adotado pela BACOR, por expressar com mais precisão a questão

do pertencimento a um grupo. Para Coulon (1995, p. 48, grifo do autor) um membro é “uma pessoa dotada de conjunto de modos de agir, de métodos, de atividades, de savoir-

faire22, que a faz capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a cerca”.

Como trabalhamos na perspectiva da humanescência, do ser humano em sua inteireza no sentipensar, adotamos o termo filiabilidade por representar um termo mais ligado a amorosidade das relações e ao pertencimento, tão importante no processo educacional e nas relações sociais. É o sentimento que nasce nas relações e no diálogo que se instala nas relações sociais e que cria uma forma própria de relacionamento.

Ao investigar os estados de fluxo e as condições para que ele ocorra, Csikszentmihalyi (1999), afirma que elas acontecem em situações em que as pessoas se sentem parte do grupo social a que estão inseridos, fazendo parte efetivamente da forma de ser e viver daquele grupo, entendendo e se fazendo entender por sua forma de ser e estar no mundo.

Para Coulon (1995, p. 48, grifo do autor), o membro é “alguém que, tendo incorporado os etnométodos de um grupo social considerado, exibe naturalmente a competência social que o agrega a esse grupo e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar”. Ou seja, é necessário que o ator do processo queira estar inserido e filiado ao grupo, uma vez que o processo deve ocorrer naturalmente.

A filiabilidade pode ser identificada no relato da participante Ametista (2009) ao explicar a escolha de sua representação por meio de uma fotografia “Escolhi esta foto [...] de uma trilha que fiz na Pedra da Boca23 com a turma do curso [...] pelo fato de minha vida nesse momento estar muito mais ligada ao curso e aos meus colegas de curso do que a qualquer outra coisa”. Fica evidente que sua vida tem forte influência de seus colegas de curso, com os quais realiza atividades inerentes ao processo educacional no qual está inserida, e também nas atividades de sua vida fora da escola.

É necessário se sentir partícipe do grupo, pois como afirma Csikszentmihalyi (1999, p. 128): “não é possível que uma pessoa leve uma vida realmente excelente sem sentir que pertence a algo maior e mais permanente que ela mesma”. Ou seja, este algo maior que ela própria é o contexto vivencial em que está inserida, vivendo na plenitude

22Savoir-faire se refere ao saber fazer, o know-how.

23 Pedra da Boca é um Parque Estadual localizado no estado da Paraíba, que oferece inúmeras trilhas, e

de seus sentimentos e emoções, partilhando a vida em sua plenitude consigo e com o outro.

A filiabilidade permite a leitura da indicialidade do fenômeno, uma vez que, ao vivenciá-lo como partícipe, o sujeito torna-se capaz de realizar uma leitura diferenciada da situação existencial que se instala. Isto pode ser observado no depoimento da participante Ametista sobre o que ela viu no Jogo de Areia: “pude ver e perceber pela fala de meus colegas que as sensações com a luva foram diversas, bem como as representações, embora se referissem todos ao mesmo tema”. Ou seja, fica claro para a participante as sensações e emoções que os outros relataram, uma vez que ela estava vivenciando, juntamente com eles, o desafio de montar um cenário no Jogo de Areia com limitações impostas pela vivência. Uma pessoa de fora teria muita dificuldade de entender o que cada participante estava revelando sobre a vivência.

O princípio da filiabilidade foi observado em diferentes situações nas vivências com o Jogo de Areia e no aflorar da tatilidade. Novamente se reforça a diferença de abordagem do Jogo de Areia sobre o olhar terapêutico e o pedagógico. Na abordagem terapêutica a construção dos cenários é um processo solitário, onde o paciente constrói seu cenário sob o olhar e atenção do analista (WEINRIB, 1993; KALFF, 2003; AMMANN, 2004).

Na abordagem pedagógica, o Jogo de Areia assume o papel de ser o motivador da oralidade e da verbalização, onde as construções dos cenários, apesar de serem solitárias, favorecem a socialização, a partilha e o pertencimento. É no momento da socialização dos cenários que se criam as oportunidades de expansão da energia criativa de cada um, e possibilita o fluir de novas ideias na interlocução com os iguais, como afirma Muscovita (2011) ao revelar sua relação com o Jogo de Areia:

A cada tema que era discutido no grupo, uma caixa de areia surgia e então era desafiador demonstrar, representar o meu pensamento em um lugar aparentemente tão pequeno, mas as discussões e as colaborações dos colegas eram tão proveitosas que rapidamente surgia algumas ideias e a caixa de areia logo virava um ótimo lugar de expor a minha colaboração.

O depoimento da participante reforça a importância do Jogo de Areia como estratégia vivencial no processo de ensino-aprendizagem, uma vez que tem o potencial de abrir canais comunicacionais e criar condições favoráveis ao convívio, onde o sujeito que constrói se abre para o mundo e para sim mesmo. De acordo com Freedle (2006) ao

selecionar representações simbólicas de suas experiências vivenciais interagindo com a areia em um nível sensorial, construindo seus cenários os participantes ficam conectados diretamente aos seus corpos, sentimentos e energias criativas. É no conviver que se operam as conexões para a configuração da filiabilidade.

Na convivência os participantes conquistaram sua filiabilidade. Ao possibilitar aos mesmos a livre construção imagética no Jogo de Areia para que construíssem cenários sem o uso de miniaturas, o participante Quartzo, que é cego, construiu o cenário da figura 20 e o descreveu, deixando evidente que o sentimento de pertencimento ao grupo, fortalecido pela vivência no Jogo de Areia, possibilitou a ele uma nova visão do planeta Terra:

Tentei fazer uma retrospectiva, desde o momento em que cheguei aqui no IFRN, como eu imaginava a Terra, [...] coloquei esse espaço livre para representar esta coisa que eu imaginava que era tudo liso, e esta parte aqui, preenchida com areia, um pouco ondulada, onde tentei representar a nova visão que eu tenho agora [...] com as outras caixas de areia [...] que o mundo não é tão reto, tão plano, ele é acidentado (QUARTZO, 2009).

O participante relatou que anteriormente imaginava que o planeta Terra fosse uma superfície lisa, sem montanhas ou outros acidentes geográficos. Esta ideia foi se fortalecendo porque ele morou toda a sua vida (23 anos), na Cidade de Natal – RN, que é uma cidade praticamente plana, com poucos morros. Mas ao começar a vivenciar o mundo no Jogo de Areia, principalmente “vendo” os cenários dos outros colegas com as mãos e usando maquetes nas aulas de Geografia Física do Curso de Licenciatura em Geografia, ele percebeu que o mundo era diferente e assim, representou o mundo em que vivemos de forma enrugada.

A filiabilidade foi identificada em diferentes momentos nas relações dos participantes que enxergavam com o que é cego. O grupo se preocupava sempre em descrever seus cenários e suas construções vivenciais para ele, como observamos no relato de Muscovita (2009):

Bem vou descrever um pouquinho para Quartzo: eu fiz uma espécie de balãozinho onde sempre eu coloco uma bonequinha representando a minha pessoa desde o primeiro cenário. E coloquei algumas palavras como: amigos, música, futuro, história. Fiz um monte de bonequinhos e um cachorrinho representando a minha família. Um livrinho com a palavra aprendizado e uma imagem da natureza, certo?

Figura 20- Representação do mundo enrugado na concepção de um participante cego. Para o participante, a parte sem areia representa o mundo liso de sua ideia original e as partes com areia, o mundo real todo acidentado.

Fonte: Musse (2010).

Além do mais, quando vivenciaram o Jogo de Areia sem o sentido da visão, relataram suas sensações e emoções, a partir do que sentiam em relação ao colega que se apropriava do mundo sem o sentido da visão. Isto é evidenciado pela participante Turmalina (2009) que relata o que sentiu quando colocou a venda nos olhos “eu vi assim, a questão da dependência [...] a gente, quando enxerga, às vezes reclama de tudo, e a gente vê esses meninos aí (os cegos) ganhando o mundo, conquistando muitas coisas”. Como afirmam Maturana e Verden-Zöller (2006, p. 36) “nossos desejos e preferências surgem em nós a cada instante, no entrelaçamento de nossa biologia com nossa cultura e determinam, a cada momento, nossas ações”. E estes desejos e preferências levam os sujeitos a procurar por aqueles que são iguais, que partilham de

seus interesses, com os quais se sentem bem e conseguem fluir, sentindo-se filiados e acolhidos.

5.6 A ARQUETIPALIDADE: A REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA DO