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A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NO ESTADO AUTORITÁRIO E NO ESTADO TOTALITÁRIO E A LIMITAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

1. As teorias da Soberania Absoluta no Estado Autoritário: participação limitada ou não participação

1.4. A Contra-Revolução, o Absolutismo Democratizado e os Nacionalismos

Para lá das influências, anteriormente analisadas na construção teórica do autoritarismo, parece-nos importante referir que o autoritarismo também se constrói, proximamente, a partir da reacção e luta contra os ideais da igualdade, da fraternidade e da liberdade, da Revolução Francesa.

A reacção e luta intelectuais iniciam-se com a publicação, em 1790, da obra Considerações Sobre a Revolução Francesa, de Edmund BURKE (1729- 1797), iniciando um movimento que se tem chamado de «Restauração» 41 e de «Contra-

Revolução» 42, que teve como principais protagonistas intelectuais iniciais, além de

Burke: Louis DE BONALD (1734- 1840), com a obra Teoria do Poder, de 1794, mas que, confiscada pelo Directório, é reeditada em 1796; Joseph de MAISTRE (1753- 1821), com a obra Considerações Sobre a França, de 1796; e Francisco Renato, visconde de CHATEAUBRIAND (1768- 1848), com a obra Ensaio Sobre a Revolução,

39 Sobre esta perspectiva, conferir Jurgen HABERMAS (1990): O Discurso Filosófico da Modernidade.

Lisboa: Publicações D. Quixote, pp. 74 – 80.

40 Opinião também partilhada por Paulo OTERO (2001: 53).

41 O nome fica ligado ao restabelecimento da Monarquia, em França, através de Luís XVIII, com o exílio

de Napoleão I, em Santa Helena.

42 Ao contrário, a «Contra-Revoluçao» é um movimento social, cultural e político que, nos primeiros

tempos, junta, do mesmo lado, absolutistas como Hegel, liberais como Edmund Burke, Jeremy Bentham, Benjamin Constant, Von Humboldt, democratas como Tocqueville e James Mill, e conservadores restauracionistas e autoritaristas (Joseph de Maistre, Luois de Bonald, Chateaubriand) contra a espírito extremista da Revolução Francesa.

terminada em Londres, em 1797, caldeada, apesar de tudo com muitos elementos liberais.

Um segundo momento da «Restauração» e da «Contra-Revolução» esteve directamente relacionado com a construção do Cesarismo Napoleónico (1802 –1814), procurando a conciliação entre autoritarismo / absolutismo e ideais da Revolução, fase que coincidiu, em França, com o «Império» de Napoleão I. Neste movimento se deve enquadrar também todo o processo de construção da Soberania Nacional, em França, ligado ao nome de Emanuel SIEYÈS (1748- 1836 43), que teorizou que a soberania é

nacional e que reside na Nação, cujo «Povo» a delega no Estado, através de eleições livres.

Estas duas tendências continuaram, em França, até ao fim do «II Império» (1873), mesmo nas fases em que a França foi uma República (1932- 1952), mas, sobretudo, com Napoleão III (1852- 1873); e, na Prússia/ Alemanha, até ao fim (1896) dos reinados da dinastia dos Imperadores Francisco Guilherme (I, II e III).

Na prática, é esta face que dá origem aos nacionalismos, a penúltima dimensão dos autoritarismos, nacionalismos cuja «fase popular» se terá manifestado essencialmente entre 1870 e 1918 (Timothy BAYCROFT, 2000: 83- 114), e que têm a sua origem na valorização das tradições medievais pelo Romantismo (Inglês e Alemão,

43 Emanuel José SIEYÈS (1748 – 1836) foi, em França, um alto funcionário do Estado, no período 1785 –

1814), e o principal teórico constitucional do período revolucionário pré-bonapartiano (1789 – 1798) e primeiro-bonapartiano. Fundador do Clube dos Jacobinos, foi sucessivamente, membro da Constituinte, da Convenção, do Conselho dos Quinhentos, do Directório e Cônsul. É considerado por Marcel Prélot e Georges Lescuyer (2001 - II, op. cit., 75-80, o iniciador e o terminador da Revolução Francesa, o criador da ideia de «poder constituinte» e «poder constituído» (1788) e ainda o verdadeiro iniciador do liberalismo em França, com a sua teoria da soberania nacional, que reside na «nação» e da soberania popular, que não reside no povo mas nos seus representantes («o povo só deve querer e agir por intermédio de representantes»). A soberania popular apenas se manifesta de vez em quando nos actos da eleição que, para Seyès, é delegação de poder.

Os autores citados consideram-no mesmo o grande iniciador da Revolução Francesa com o texto «O que

é o Terceiro Estado? (Maio de 1789), em que defende que todo o poder é representativo, em oposição a

Jean-Jacques ROUSSEAU. A resposta que ele próprio dá para o que é o Terceiro Estado não poderia ser mais elucidativa para o futuro da democracia no Ocidente: «O que é o Terceiro Estado? – Tudo. O que é

que ele foi até agora na ordem política? – Nada. O que é que ele quer? – Tornar-se alguma coisa.»

(Emmanuel Sieyès, citado por Marcel Prélot e Georges Lescuyer (2001 - II, op. cit., p. 78).

Importa reter que a oposição a Jean-Jacques ROUSSEAU é total: para este são os indivíduos que detêm a soberania. Para Sieyès, é a nação, como conjunto de indivíduos constituídos em comunidade política. Sem ela, não existe indivíduo, o que parece ser um retorno à teoria organicista de Aristóteles, que prevalece também no absolutismo. Mas Sieyès concede que o indivíduo é titular de direitos independentemente da comunidade política. Aqui reside o seu liberalismo.

Para Sieyès, a construção da Constituição é um processo histórico de acção- reflexão –intervenção, integrando o passado, o presente e o futuro. Como sugere Nogueira de BRITO, os americanos, ao contrário dos continentais, não tiveram que negociar e pactuar com as instituições do passado para construírem a sua Constituição. Mas os Europeus, sim. Por isso «Era, pois, natural que, na sequência da Revolução Francesa se tivesse cedido à tentação de colocar o povo no lugar do rei, vendo no primeiro, tal como acontecia com o segundo, a fonte de um poder absoluto.». (Cf. Miguel Nogueira de BRITO, 2000, A Constituição Constituinte – Ensaio Sobre o Poder de Revisão da

saobretudo), e que se expressam, em França, através de Maurice Barrès (1862- 1923), de Charles Péguy (1873- 1914)e de Charles Maurras (1868- 1952).

Será a combinação de todos os elementos anteriores que fará emergir, a partir de 1922, as ideologias dos autoritarismos, como combinação de anti-liberalismo, de anti-socialismo e de anti-comunismo, de soberania nacional, de nacionalismo, de valorização da personalização do poder, de reconstrução da autoridade do Estado, de diminuição da autonomia da Sociedade Civil, de revalorização dos elementos religiosos.

Assim, já no Século XX, associaremos o Estado Autoritário: ao Estado semi- Totalitário44 do Leninismo (1917- 1923) 45, e do Fascismo Mussoliniano (1922-1945) 46 ; ao Estado Autoritário do Salazarismo (1932 –1968), do Franquismo (1936– 1976),

e, em certo sentido, do De Gaullismo (1945- 1969); às ditaduras militares da Argentina e do Brasil e, provavelmente, de muitos outros casos, um dos quais parece ser a actual situação da Guiné- Bissau.

Em todos estes casos, a autonomia, a liberdade e a participação, individuais ou grupais, estão sujeitas a controle e limitações várias, de intensidade variável, e cujos casos extremos de intolerância, de autoritarismo e de a-participação serão o do fascismo italiano e o do leninismo, como máximo controle e máxima limitação, e o do Salazarismo da década de 50 do século XX, como relativa tolerância.

44 Conferir características do Estado Totalitário na secção seguinte.

45 Em abono da separação entre estalinismo e leninismo, veja-se Gilles MARTINET (1975) e Luc FERRY

e Evelyne PISIER-KOUCHNER (1985: 120 – 169)

46 O fascismo italiano tem sido integrado ora no totalitarismo ora no autoritarismo. Tal tem dependido da

valorização que os diversos autores têm feito das características do ideal-tipo totalitário, quando referidas ao fascismo italiano. Assim, Raymond ARON (1965); Hannah ARENDT (1972b); Claude POLIN (1982), Luc FERRY e Evelyne PISIER-KOUCHNER (1985), Paulo OTERO (2001); Tzvetan TODOROV (2002) têm-no integrado no autoritarismo. Em contrapartida, Herbert SPIRO (1968); Pierre AYÇOBERRY (1979), Jean-Pierre FAYE (1973), Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001, II), Guy HERMET (1985: 269- 312), Serge BERNSTEIN (1999: 115- 134), têm-no integrado no totalitarismo. A nossa opção pela sua integração no autoritarismo baseia-se nas descrições de POLIN (1982: 37-50) e de Hannah ARENDT (1972b: 30 e 242). Segundo o primeiro, «Parmi les raisons qui peuvent expliquer cette demi-mesure dans la violence, si différente de ce que l`on trouvera dans les régimes nazi et soviétique, il faut sans nul doute compter ce fait simple et fort évident: ce régime généralement considéré comme typiquement totalitaire ne comportait, comparé à d`autres, que de faibles doses d`idéologie.». Na mesma linha, ARENDT dirá que «Ce qui prouve que la dictature fasciste (italiana) n`est pas totalitaire, c`est que les condamantions politiques y furent très peu nombreuses et relativement légères (…) et le mépris de nazis à l`égard de «l`État Ethique» de Mussolini, comparé à leur propre état Idéologique, en apporte la preuve décisif.». Porém, Paulo OTERO (2002: 87-88) prefere as cautelas de FAYE, de POLIN, de FERRY e PISIER-KOUCHNER e de Yves LÉONARD: «(...) não existe unanimidade doutrinal quanto à qualificação do fascismo italiano no âmbito dos regimes totalitários: sublinhando-se a diferença que separa, por um lado, uma teoria e uma linguagem totalitárias de, por outro, um esquema de desenvolvimento e vivência de natureza meramente autoritária (...) ainda que se aceite que o fascismo italiano, em vez de absorver por completo a sociedade, se limitou a dominá-la, a oprimi-la e a reprimi-la de maneira selectiva, a verdade é que o fascismo, enquanto ideologia, além de ser autoritário, preenche todos os traços caracterizadores do totalitarismo.».

Por outro lado, é de realçar que estes movimentos, com excepção do leninismo, só raramente puseram em causa a divisão dos poderes 47 Legislativo,

Executivo e Judicial o que representa uma certa estabilidade relativamente à suavização do poder, ainda que tal não obstasse (ou não obste) à influenciação e manipulação.

1.4. 1. A Contra-Revolução

Edmund BURKE (1790, 1986): acusa os ideólogos da Revolução Francesa de metafísicos abstractos que querem impor soluções violentas 48, desenquadradas dos

contextos históricos e sociais de cada Povo (ou de cada Nação), opondo-se, portanto, frontalmente, ao contratualismo de Rousseau e às construções artificialistas dos revolucionários e dos partidários do Terror e do Absolutismo, em nome da apropriação ilegítima da «vontade geral».

Inserindo-se muito mais na corrente liberal do que na autoritária, Burke apela à tradição, aos costumes ancestrais, às práticas sociais construídas geracionalmente e ainda aos princípios religiosos católicos para fundamentar a ordem social e política. Consequentemente, os seus princípios são aristocráticos, conciliadores da inovação com a tradição religiosa, social e cultural, e remetem para uma participação exclusiva das elites sócio- económico- culturais e religiosas.

O pensamento de Burke terá exercido grande influência em Joseph de Maistre, em Louis de Bonald e em Monsenhor de Ketteller (1811- 1877) (Michel TERESTCHENKO, 1996: 78; Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER, 2001: 157- 158).

Joseph de MAISTRE diz de Rousseau que foi o homem do mundo que mais se enganou, ou seja, que mais se distanciou entre teoria e prática, refutando-lhe a teoria da soberania popular e da origem contratual da sociedade porque o homem nunca teve um tempo anterior à sociedade, e não o é senão pela vida em sociedade a quem deve a linguagem e a cultura. Nestes termos, não foi o homem a instituir nem a sociedade nem a linguagem nem a cultura mas sim a Divina Providência 49.

A partir daqui, Maistre defende; à semelhança dos pré-românticos, designadamente de Johann Gottfried HERDER (1744 –1803) que a soberania não é racional mas afectiva. Ela resultaria do sentimento de comunidade que um Povo experimenta que, quando muito forte, o leva a constituir-se numa Nação. Donde conclui

47 No plano teórico, Louis de BONALD é adepto da integração de poderes na Monarquia.

48 «... out of the tomb of the murdered monarchy in France has arise a vast, tremendous,

unformed spectre, in a far more terrific guise than any which ever yet have overpowered the imagination, and subdued the fortitude of man. Going straight forward to its end, unappalled by peril, unchecked by remorse, despising all common maxims and all common means, that hideous phantom overpowered those who could not believe it was possible she could at all exist, except on the principles, which habit rather than nature had persuaded them were necessary to their own particular welfare, and to their own ordinary modes of action.» (cf BURKE, 1986:9).

49 «La société n`est point l`ouvrage de l`homme, mais le résultat immédiat de la volonté du

que cada Nação é uma comunidade própria, à qual não podem ser impostos modelos abstractos de organização sócio-política, inclinando-se pela adopção da virtude e do bom senso de Aristóteles.

Nestes termos, os direitos dos indivíduos são relativos a cada comunidade, a qual também tem o seu conceito de homem, de indivíduo e de cidadão, não se podendo falar de um homem em abstracto 50. Do mesmo modo, combate o racionalismo anti-

clerical das Luzes e a sua razão legisladora para defender os costumes e as instituições, a aliança entre o trono e o altar. O que o leva a defender a Monarquia como o melhor regime político e a lei como fundamento da legitimidade, contra o exercício da soberania pelo povo, desígnio impossível e utópico, «uma vez que o povo apenas nomeia os que nomeiam».

Nestes termos, o poder reside nos governantes, que fazem a lei e lhe devem obedecer, do mesmo modo que os cidadãos que têm nela a sua liberdade 51, pensamento

em que muito insiste Maistre, legitimando assim um poder representativo mas autoritário, tradicionalista e religioso, a par de um nacionalismo emergente.

As ideias de Maistre são comungadas por Louis DE BONALD. Porém, este acrescenta alguns outros pontos também característicos dos autoritarismos português e italiano, tais como: a) a religião e o poder de Deus como fundamento primeiro da sociedade e do poder; b) o valor da família como primeira célula da sociedade e da autoridade; b) o conservadorismo da civilização, chegando a contestar a construção de estradas e de caminhos de ferro porque «quanto mais máquinas há num Estado para aliviar a indústria do homem, mais homens há que não passam de máquinas»52; c) o poder absoluto do Governo, que deve ser monárquico, como síntese

do poder de Deus, e que faz a lei, em nome dos súbditos e para os súbditos, governando sem controle externo, apenas sendo reeleito ou demitido pelas eleições; d) esta concessão à democracia representativa me troca do poder absoluto do Governo, como conciliação entre absolutismo e democracia.

1.4. 2. O absolutismo democratizado dos cesarismos napoleónicos

A influência do cesarismo napoleónico dos I (1802-1814) e II (1852-1873) Impérios na emergência dos autorismos dos Séculos XIX e XX merece ser referida na medida em que, com eles, se opera:

a) uma síntese entre os ideais da Revolução Francesa e os do Absolutismo; b) uma síntese entre o Monarca / Imperador e a ordem constitucional;

50 Aqui, Maistre tem uma frase célebre, que o tempo viria a consagrar: «Or, il n`y a point d`homme dans

le monde. J`ai vu dans ma vie des français, des Italiens, des russes, etc.. Je sais même, grâce à Montesquieu, qu`on peut être persan; mais, quant à l`homme, je déclare ne l`avoir rencontré de ma vie ; s`il existe c`est bien à mon insu …». (citado por Terestchenko, 1996: 80).

51 Semelhanças com Seyès e com Kant: a liberdade é a obediência à lei, porque a lei provém de um poder

legítimo que representa o povo, porque o povo não pode mandar.

c) uma síntese entre o Monarca / Imperador e a Democracia Representativa; d) uma síntese entre centralismo estatal e liberalismo privado, entre poderes

públicos estatais e liberdades individuais;

e) uma síntese entre poderes do Estado Central e alguns poderes das comunas e das corporações;

f) uma concepção do poder monárquico e personalizado como pacificação dos conflitos tensões sociais; e

g) uma legitimação do livre-arbítrio e da discricionaridade do Estado- Administração.

Ao operar uma certa conciliação entre estes elementos, os dois Impérios abrem caminho à formulação teórica do autoritarismo, na medida em que se camufla a personalização do poder com um parlamento pouco activo e controlado e se mantém uma ordem constitucional onde o Povo é chamado a eleger os seus representantes e mantém certas liberdades fora do controlo estatal. Este modelo passou para os autoritarismos português, espanhol e italiano, mesmo se em república.

Alexis de TOCQUEVILLE evidenciou que a Revolução é a continuação do modelo de poder do Antigo Regime, através do Povo. Na sua investigação, Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER (2001, II: 145), concluem o mesmo sobre a democratização do absolutismo: «bastará uma repersonalização do poder (...) para que despotismo esclarecido, em princípio democratizado, readquira uma extraordinária vitalidade».

Napoleão I aceita de Rousseau as ideias de igualdade entre os cidadãos, de pacto social e de soberania popular mas vai-os moldando na sua retórica legitimadora dos poderes imperiais. De seguida, logo na sequência do 18 do Brumário, elogia o liberalismo invocando a vitória futura das ideias conservadoras e liberais, pretexto para Cabanis 53, um sobrevivente da Enciclopédia, hipostasiar o Povo, antecipando o

comportamento de todos os autoritarismos para com este:

«A classe ignorante deixará de influenciar a legislação e o Governo. Tudo se fará para o povo e em nome do povo, nada será feito por ele e sob a sua sugestão irreflectida».

De seguida, apoia-se na religião e na Concordata de 15 de Julho de 1801 para fortalecer a sua autoridade, perseguindo o anticlericalismo e o anti-religiosismo, de qualquer tendência, para concentrar em si o poder religioso e reivindicar-se como único representante da força moral da nação e do Povo.

Com Napoleão III esta união moral entre o imperador e a Nação será «romanizada», tornando-se o Imperador um César legitimado pelo Povo, transformando as eleições em plebiscitos por ser ele a indicar ou a propor os candidatos. E assim, ao mesmo tempo que exclui a «hierarquia censitária» do liberalismo, reforça a ligação

afectiva entre o Imperador e o Povo como forma de, demagogicamente, pôr em causa o carácter hereditário da Monarquia e das elites.

Os seus ideólogos, tais como Émile Ollivier, preparam-lhe o terreno: só haverá despotismo se o Povo não eleger os seus representantes, se estes não puderem votar os programas de governo e se as liberdades civis forem restringidas. Neste aspecto, Napoleão III induziu a democracia representativa e a República, às quais a Monarquia não sobreviveria, após a sua morte.

Por isso, apesar de introduzir o plebiscito e corroborar a fulanização do poder, como legitimação mínima, que os autoritarismos vieram a implementar, as liberdades civis e direitos pessoais dos cidadãos conduziram estes a legitimar o despotismo democratizado, apesar de não terem intervenção substancial no Estado.

1.4.3. Os Nacionalismos

As características essenciais constitutivas do Estado-Nação e da Soberania Nacional (Povo com sentimento de identidade e imaginário social comum, território comum e poder político constituído e legitimado pelo mesmo Povo, a que se juntam, em plano secundário, a língua e a religião 54, a raça, um código moral 55), que

abordámos no Capítulo II, permitem-nos agora compreender como, a partir da Revolução Francesa (Timothy BAYCROFT, 2000: 12- 21), se começaram a constituir as condições para a emergência dos Estados-Nação e para a consolidação dos Estados- Federação, existentes ou emergentes na Europa Ocidental (Bélgica, Alemanha, Itália, Suiça, Espanha), quer sob a forma de poder republicano- democrático quer sob a forma de poder monárquico-constitucional.

Embora o nacionalismo típico seja próprio do período 1870 – 1914, com prolongamentos até 1945, e, em alguns casos, até mais tarde (França, 1969; Portugal, 1974; Espanha, 1975; e Grécia, 1978), a sua génese é muito anterior.

54 Aspectos que, em conjunto e, no caso português, têm para José MATTOSO (2001: 5-10) uma grande

importância, pela estabilidade territorial de Portugal, desde 1297, e pela coincidência entre língua, território e religião, para lá, claro, da extensão e domínio de toda a população e território pelo mesma forma do poder.

55 Veja-se estas palavras de Marcel MAUSS (1969), Oeuvres, Vol. 3, Cohésion Sociale et Division de la

Sociologie, Paris. Original, 1920: «Em suma, uma nação completa é uma sociedade

suficientemente integrada, com um poder central, democrática, e certa medida, tendo sempre presente a noção de soberania nacional, e cujas fronteiras são as de uma raça, uma civilização, uma língua, um código moral – numa palavra, um carácter nacional.».

No século XIX, sobretudo, a identidade do Povo-Nação 56 fortaleceu e foi

fortalecida pelas monarquias constitucionais, apelando à grandeza da Nação, do seu passado, dos seus valores, das suas potencialidades, da necessidade de uma acção em conjunto, face às novas condições económicas e sociais do capitalismo, conduzindo inexoravelmente ao imperialismo e ao expansionismo, denunciados e explicados por Vladimir LENINE (1916), os quais haviam conduzido a Europa à I Guerra Mundial (1914- 1918), e que a haveriam de conduzir ainda à II (1939- 1945).

As experiências republicanas da França (1789- 1802; 1815 – 1848 e 1873 em diante evidenciaram também como a democracia pode, por via sentimental (soberania popular sobre o poder político) e por via ideológica (o dever da expansão do ideário democrático na Europa e no mundo) contribuir para a consolidação do nacionalismo, apoiando-se nos sentimentos da grandeza da Pátria, dos seus feitos heróicos, dos seus valores, da sua legitimidade democrática perante o mundo, etc..)

Assim, e como referem (BAYCROFT, 2000: 14- 17) e PRÉLOT e LESCUYER (2001, II: 179 – 187), a primeira emergência dos nacionalismos é emotiva e romântica mas logo o nacionalismo se torna anti-particularista e anti-relativista concentrando-se, através do plebiscito, na personalidade do representante da Nação, como representante da vontade dela, da sua força e dos seus ideais, o que remete para o centralismo administrativo e para a defesa da monarquia e do absolutismo democratizado, com concessão apenas de algumas autonomias à Sociedade Civil e de pouca descentralização na Administração Pública.

Charles MAURRAS (1868- 1952) defenderá um nacionalismo integralista, monárquico, em que a República é um regime intrinsecamente inaceitável, porque orientada para o laicismo iluminista e para o ostracismo à tradição.

Nos ideais nacionalistas, a coexistência entre nacionalismo e liberalismo também não é pacífica porque o liberalismo tende a sobrepor os interesses particulares ao interesse geral, tende a controlar ou, no mínimo, a influenciar a acção do Estado em função das oligarquias económicas e intelectuais. Ora, o nacionalismo integralista defende para o Estado a exclusividade da administração da «res publica»,

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