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O ESTADO ABSOLUTO E A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA E DE UMA TEORIA DA NÃO-PARTICIPAÇÃO

3. As teorias da Soberania no Estado Absoluto ou de Império 9 e da não-

3.2. Thomas Hobbes e o «Deus Mortal»

Thomas Hobbes (1588 – 1679) propõe na sua obra mais famosa, Leviathan (1651), um Estado Absoluto 28 para garantir a segurança e bem-estar das pessoas

(CAMPAGNA 2000), face ao estado de anarquia que assolou a Inglaterra, entre 1640 e 1650 (Idem), e que levou o absolutismo dos Stwarts ao poder. As pessoas, no seu estado natural (civil, em termos actuais) seriam iguais mas esta igualdade significa que elas são igualmente egoístas, sedentas de riqueza e de poder e, por isso, impropensas para a sociabilidade (Jean TOUCHARD, 1970, III: 110-116). Para realizarem esta vontade de riqueza e de poder, as pessoas estariam em «estado de guerra» umas contra as outras realizando permanentemente a sentença romana «homo homini lupus » (Michel TERESTCHENKO, 1996: 41), sem nada nem ninguém poder garantir a ordem e a paz, tornando-se necessário atribuir a um «Deus mortal» o poder necessário para aniquilar os egoísmos e construir a ordem social (Simone GOYARD-FABRE, 1982: 11-15). Esse «Deus mortal» deveria ser «força e poder absolutos», consubstanciados no Estado, na pessoa do Rei, o grande «Leviathã», senhor da vida e da morte dos homens e garantedor da segurança de todos os indivíduos.

Mas a força e o poder do Estado estariam, segundo Hobbes, na alienação voluntária da liberdade por parte de cada cidadão (Michel TERESTCHENKO, 1996: 41), o qual a depositaria nas mãos do Soberano. Em troca, o Estado garantir-lhe-ia a paz e a ordem jurídica necessária a que ele pudesse desenvolver as suas actividades. Porém, não se trataria de um contrato, pois não estamos em Presença de dois outorgantes29, mas apenas um, o cidadão, que aliena a sua liberdade e o seu «estado de

natureza» 30 para poder viver num «estado de sociedade», através «de um pacto de

28 Pelas razões que veremos ao longo do texto, só por razões históricas e pela sua ligação à dinastia do

absolutismo dos Stewarts, Hobbes pode colocar-se no conjunto dos teorizadores do Estado Absoluto e do Estado Totalitário. O seu lugar é muito mais como teorizador do Estado Autoritário do que do Estado Absoluto, na medida em que ainda reserva alguns direitos inalienáveis ao indivíduo e à sociedade.

29 Esta é a opinião de Carlos Pacheco AMARAL (1998: 74). Diz este autor: «É assim que, na

argumentação de Thomas Hobbes, o Estado não é parte do contrato social; decorre dele. E, como tal, não lhe podem ser imputadas quaisquer obrigações. Para além disso, nem é correcto sequer, falar-se de contrato no sistema Hobbesiano. Um contrato implica uma relação mútua de direitos e de deveres entre duas ou mais partes. E o que Hobbes nos propõe é a estrita renúncia, integral e irrevogável, por parte de todos e de cada um dos membros da sociedade da totalidade dos seus direitos naturais (...).» . No entanto, não é esta a posição de Michel TERESTCHENKO (1996: 41) que considera Hobbes o introdutor, na modernidade do conceito de «pacto» e de «contrato social». Paulo OTERO (2001: 58-59) pensa do mesmo modo, considerando que Thomas Hobbes parte de princípios limitadores do poder absoluto tais como: a defesa de certos direitos inalienáveis e a limitação do poder do Monarca às leis da natureza. Nesta interpretação, o pensamento de Hobbes já teria aspectos liberais.

30 Note-se que o ponto de partida dos três autores pioneiros do contratualismo na soberania do Estado

(Hobbes, Locke e Rousseau) é o mesmo: a consideração do Estado de Natureza, ou a oposição sofística entre natureza e convenção. Só que as assumpções que cada um deles faz relativamente a este estado são diferentes. Para Hobbes, o Estado de natureza é um estado de guerra de todos contra todos; para John Locke é um estado de ausência de sociedade e de direito, onde o homem e o cidadão estão apenas

associação civil» (Michel TERESTCHENKO, 1996: 42) com os outros indivíduos, pelo qual passa a estar desprovido de direitos jurídicos, e só gozará deles se o Estado lhos conferir.

No sistema Hobbesiano o Estado é sistematizado como entidade artificial mas com um poder soberano, absoluto, infalível, indivisível e inimputável (Barry HINDESS, 1996: 48) 31, fundamentando-se nos actos que ele próprio, através dos seus

agentes, pratica: a ordem, a segurança e a protecção que oferece aos cidadãos. «É pela protecção que assegura que o Estado obriga e comanda a obediência e a lealdade dos cidadãos.» (Carlos AMARAL, 1998: 71). Por isso, o Estado é o que ele próprio faz.

O Estado é pois para Hobbes omnicompreensivo de todo o aparelho de força e poder, de toda a Sociedade Civil e de todos os indivíduos, cujo carácter de cidadãos lhes advirá de alienarem nele a sua liberdade. O Estado manterá todos os indivíduos igualmente destituídos de quaisquer direitos ou poderes próprios para não se poderem molestar mutuamente.

Michel TERESTCHENKO (1996: 42) considera que «o que é característico da doutrina «hobbesiana» da soberania absoluta do Estado é ela ter uma natureza democrática» 32 porque são os próprios «contratantes» - os

homens -, a alienar a sua liberdade no Soberano, e porque é em nome dos cidadãos que o Estado disporá de um poder sem limites sobre cada um 33 . Mas a alienação da

liberdade é um acto consciente e deliberado por parte do homem, praticado no

protegidos pela moral e direito naturais; para Rousseau, o estado de natureza é um estado de bondade natural do homem. Ver a este respeito Juan Manuel N. CORDÓN e Tomas C. MARTINEZ (1985, II).

31 Escreve a este respeito Barry HINDESS (1996: 48): «While the subjects incur obligations towards

the sovereign by virtue of their Covenant, the sovereign incurs no corresponding obligations towards its subjects. Subjects may disagree with the sovereign actions on moral grounds or other grounds, but their disagreement gives them no right to withhold their allegiance or to replace one sovereign by another. In Hobbes` view of the constitution of sovereignty, then, there is no scope for anyone to question the legitimacy of the rule to which they are subjected.».

32 Também Simone GOYARD-FABRE na introdução a Thomas HOBBES, Le Cytoyen, op, cit, pp.34 e

40, perfilha esta opinião: «Le Chapitre XVI de l`édition latine du Léviathan, en analisant la notion de «personne», montre de faction subtile la dialectique qui se joue au niveau du souverain entre l`auteur du pouvoir – le peuple qui a transféré au Léviathan son autorité – et l `acteur du pouvoir – la souverain qui agit en tant que représentant des citoyens.». (Idem, p. 40). A mesma ideia se pode encontrar em Francis FUKUYAMA (1992:163-164).

33 Já em (1994: 28), Michel TERESTCHENKO sustentava a mesma visão democrática da teoria de

Hobbes: «Il y a ainsi une légitimité démocratique de la contrainte absolue que l `État exerce sur les individus pour la garantie de leur droit. La contrainte est en effet, aux yeux des individus eux-mêmes, le seul moyen d`intégration dans l`unité du corps social. Toute l`affaire de Rousseau, qui partagera cette conception intégrative de la loi, sera d`expliquer qu`elle est conciliable avec la liberté.»

Jean Touchard, 1970, op, cit. : 114, sustenta a mesma visão contratualista do pensamento de Hobbes: «Ora, para manter a paz e a segurança, os homens não dispõem de melhor meio do que estabelecer entre eles um contrato e transferir mutuamente para o Estado certos direitos que, se os conservassem em si, prejudicariam a paz da humanidade.».

pressuposto de que a sua liberdade só será respeitada se ele respeitar a do outro, como convida Thomas HOBBES (1651):

«Aceitemos quando os outros aceitem despojar-se, - na medida em que isso é necessário à paz e à nossa própria defesa -, dos direitos que temos sobre todas as coisas, e respeitemos tanto a liberdade dos outros quanto desejaríamos que os outros respeitassem a nossa.» 34 .

Michel TERESTCHENKO (1994: 28) vê no pensamento de Hobbes sobre o Estado protector da vida e da segurança a origem do Estado Democrático e do Estado Providência pois

«a evolução do pensamento político realizará (…) uma extensão da esfera dos direitos individuais, garantidos pelo Estado. Esta extensão processa-se no sentido do progresso da democracia.» .

Por outro lado, no pensamento de Hobbes, o Estado deve ser dominador 35 e,

simultaneamente, «eclesiástico e civil», conforme escreve Jean TOUCHARD: «O Estado é simultaneamente «eclesiástico e civil». Nenhuma autoridade espiritual pode opor-se ao Estado. Ninguém pode servir a dois senhores. O soberano é o órgão não só do Estado, mas também da Igreja; tem na mão direita um gládio e na esquerda uma cruz episcopal. Desta forma se acham garantidos o poder e a unidade do Estado. Não há lugar para os corpos intermediários,

34 Thomas Hobbes, Le Léviathan, Cap.XIV. Trad. para francês por F. Tricaud. Paris, Syrei, 1983. Citado

por Terestchenko, 1994, op. cit.: 28.

35 Esta ideia de Estado dominador parece ter sido retirada de uma das Epístolas de S. Paulo aos romanos:

«Que todos se submetam às autoridades porque não existe autoridade que não venha de Deus, e porque as autoridades que existem foram instituídas por Deus.». No entanto, a doutrina cristã medieval vai invertendo esta lógica de submissão do cristianismo: S. João Crisóstomo (347 – 407) dirá que Deus apenas concebeu a instituição política, não o poder de cada governante em particular. Santo Agostinho, teorizando sobre as duas cidades (a de Deus e a dos Homens) falará da proeminência da Cidade de Deus e da necessidade de os homens se subordinarem às leis da de Deus. Esta radicalização do poder da Igreja atingirá o clímax nos séculos XI e XII. No século XI, o Papa Gregório VII proclamará a absoluta superioridade do poder espiritual ao temporal e, por isso, deporá reis e príncipes, como o fez com Henrique IV da Germânia. No século XII, Bernardo de Claraval, fundador da Ordem Cisterciense, desenvolverá finalmente a teoria dos dois gládios, o do poder temporal e o do poder espiritual, para esclarecer o modo como a Igreja deveria lidar com o problema da separação de poderes. O poder temporal era delegado pelo Papa no imperador e o Papa não devia imiscuir-se no governo dos homens, a menos que fosse necessário. Poderemos talvez ver aqui a reminiscência da Editorial Presença dos representantes do poder espiritual nas cerimónias oficiais. Tal representante não exerce o poder. Mas a sua presença, ao lado, e em paralelo, pode indicar a sua posse. Sobre esta polémica, ver Michel TERESTCHENKO (1996: 20-25).

para os partidos, para as facções. Neste ponto, Hobbes precede Jean-Jacques Rousseau.» 36 .

Porém, segundo o mesmo autor não será legítimo ver em Hobbes um percursor do absolutismo real porque «o bem do soberano e do povo não podem ser separados» (HOBBES, 1651) 37 e, além disso, a sua obra, «dentro de uma

perspectiva de conjunto, encaminha-se no sentido do liberalismo e do capitalismo.» (Jean TOUCHARD, 1970: 116).

Segundo Niccolà ABBAGNANO (1970: 126 – 129), o absolutismo de Hobbes é muito peculiar e é caracterizado pelos seguintes traços: 1) irreversibilidade do pacto de transferência do poder dos homens para o Estado; 2) indivisibilidade do poder do Estado; 3) exclusividade por parte do Estado do juízo sobre o bem e sobre o mal, uma vez que a regra que permite distinguir o bem do mal não pertence à ordem natural mas sim à civil; 4) possibilidade de o Estado exigir a obediência a ordens injustas ou criminosas; 5) inimputabilidade do Estado nas suas relações com os cidadãos; 7) liberdade dos cidadãos reduzida aos domínios não regulados pelo Estado; 8) Estado como «alma da comunidade», «uma vez que se a alma se afastasse do corpo, os seus membros deixariam de receber movimento dela» (Thomas HOBBES, 1651) 38 ;

e, 9) liberdade absoluta do Estado; e, 10), inclusão da Igreja no Estado uma vez que «a matéria do Estado e da Igreja é a mesma, são os mesmos homens cristãos, e a forma que consiste no legítimo poder de convocá-los é também a mesma, dado que os cidadãos são obrigados a apresentar-se onde quer que o Estado os convoque.» (HOBBES, 1651) 39

Para o efeito do nosso estudo, interessa-nos reter da teoria de Hobbes, a centralização do poder, a alienação do cidadão no Estado, a correspondente consequência da impossibilidade da sua participação em qualquer sector da vida pública e social e da inexistência de quaisquer direitos individuais e de cidadania não reconhecidos pelo Estado. Por outro lado, Hobbes apresenta-se como defensor do Estado Confessional, o que conduzirá à deificação do poder absoluto (Barry HINDESS, 1996: 39).

36 Jean TOUCHARD, (1970: 115). Ver também Niccolà ABBAGNANO (1970, VI: 126 – 130), sobre a

tese da despersonalização do poder, na esteira de Rousseau.

37 Thomas HOBBES (1651), citado por Jean TOUCHARD, (1970: 115)

38 Thomas HOBBES, Leviatã, 21, citado por Niccolà ABBAGNANO (1970: 128) 39 Tomhas HOBBES, De Cive, 17, § 21, citado por Niccolà ABBAGNANO (1970: 128)

A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NO ESTADO AUTORITÁRIO E NO

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