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A CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA NO ESTADO AUTORITÁRIO E NO ESTADO TOTALITÁRIO E A LIMITAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO

2. A Soberania Absoluta e a Negação da Participação no Estado Totalitário

2.1. As origens do Estado Totalitário 1 Os Contributos anteriores a

2.1.2. O contexto de 1830 até

A evolução económico- político- administrativo- social dos Estados Europeus do Norte e da Federação dos EUA, ao longo do Século XIX, havia conduzido as relações entre as respectivas Sociedades Civis a uma ruptura total nos planos da

organização económica, da organização social, da organização política, e ainda, das representações ideológicas subjacentes a cada uma das concepções em confronto 64.

Tais concepções opunham e associavam capitalismo, liberalismo económico e democracia liberal, de um lado, e marxismo, socialismo utópico e, sindicalismo, do outro 65, não se apresentando ainda consolidada a «terceira via»66 do socialismo

democrático ou democracia social.

Estavam em confronto 67 dois «tipos ideais» antagónicos: os ideais liberais da

autonomia da sociedade civil face ao Estado, da liberdade de iniciativa, da liberdade civil, do mercado livre e do jogo aberto da concorrência, onde os «melhores» triunfariam e os «piores» se juntariam e submeteriam a algum grupo dos «melhores», ou então «morreriam», contra a defesa da regulação das relações económicas e sociais, da insubmissão dos mais pobres porque não necessariamente «piores», e porque «explorados» pelo «capital», e a «igualização das condições» 68, para «libertar» todos

os homens e transformá-los em «homens livres» e «cidadãos».

Além disso, as duas representações do mundo estavam também divididas por factores religiosos e científicos.

Os arautos das concepções liberais baseavam a coesão social na religião, apesar de aceitarem a separação entre a Igreja e o Estado, uma conquista do Estado Moderno, consolidada pelo Liberalismo Iluminista, designadamente depois de Locke

64 Veja-se estas afirmações de Paulo OTERO, 2001: 19: «o Estado totalitário nasce, por um lado, da

guerra do bolchevismo e do maoísmo contra o capitalismo e, por outro lado, da guerra do fascismo e do nazismo contra o marxismo.». No mesmo sentido, Anderson de MENESES (1994: 128-129) fala em dicotomia entre «Estado Totalitário de Direita» e «Estado Totalitário de Esquerda».

65 Veja-se o diagnóstico da situação que Karl MARX e Friederich ENGELS (1848) faziam ao tempo: «A

sociedade divide-se, cada vez mais, em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.» (Cf. Marx e Engels, 1848 /1968.

Manifesto do Partido Comunista. S.Paulo: Editora Escriba, ltdª, p. 23).

66 O conceito, como se viu no Capítulo I é de Anthony Giddens (1998) e aplicamo-lo aqui «abusivamente»

para catalogação dos factos referentes ao Primeiro Quartel do Século XX.

67 Segundo Marcel PRÉLOT e Georges LESCUYER, 2001, II, 188, o objectivo dos autoritarismos, dos

fascismos e dos totalitarismos era, precisamente, resolver este confronto: «O seu objectivo é a substituição do estado demo-liberal declinante, que se tornou ele próprio socializante, por um novo tipo de Estado Forte, ao qual promete o futuro. É, simultaneamente, um reflexo de reacção contra o liberalismo e um gesto de prevenção contra o comunismo e contra o socialismo.».

68 A expressão é de Alexis de TOCQUEVILLE, no seu De la Démocratie en Amérique (I parte, 1835 e II

parte, 1840). É necessário esclarecer que, com ela, Tocqueville não queria significar o mesmo que Karl Marx (1844). Tocqueville falava da igualdade face à lei, do voto universal e do acesso aos bens da civilização e da cultura como condições imprescindíveis para a intervenção política e cívica, no plano das iniciativas individuais, grupais ou orgânicas. Para Marx, a igualização das condições significava o desapossessamento colectivo da propriedade, porque a sua não-posse geraria uma igualdade de representações da realidade social e uma mesma consciência das necessidades colectivas.

(cf Capítulo IV), e defendiam os valores da tradição como valores a preservar, porque, ambos, factores fundamentais, da coesão social dos grupos e comunidades 69.

Os arautos das concepções marxistas viam na religião a fonte de poder e de inspiração dos seus opositores, portanto, obstáculo maior da libertação dos povos porque, enquanto crentes, ainda não tomaram consciência da sua alienação 70. Além

disso, diziam-se representantes do espírito científico, consolidado ao longo da segunda metade do Século XIX 71, materializado na génese da maior parte das ciências

experimentais e sociais, na análise científica da história, portanto no materialismo

69 Não admira, por isso, a retoma de autores conservadores e «reaccionários» (contra o espírito laico e

democratizante da Revolução Francesa), como Edmund BURKE e Joseph de MAISTRE, por parte dos teóricos do ultraliberalismo, do fascismo e do autoritarismo.

70 Para bem se compreenderem as posições marxistas a este respeito, é conveniente ler Karl Marx, em

Critica da filosofia do Direito, de Hegel. Fazemos dela um extracto, produzido por Henri LEFEBVRE,

1975: 40-41: «O homem faz a religião e não a religião o homem. A religião é, para o homem, a consciência de si próprio, ou quando ainda não se encontrou, ou quando já se perdeu. Ora, o homem é o mundo do homem, o Estado, a Sociedade. Este Estado e esta Sociedade

(burguesa, claro) produzem a religião, consciência falseada do mundo, porque é um mundo

falseado. A religião é a teoria geral deste mundo, a sua enciclopédia, a sua lógica popular, o seu “ponto de honra” espiritualista, a sua exaltação, a sua sanção moral, o seu solene complemento, o seu tema geral de consolação e de justificação... A miséria religiosa é, simultaneamente a expressão da miséria real e o protesto contra esta miséria real. É o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem alma, o espírito de um mundo sem espírito. É o ópio do povo ... A crítica da religião é, portanto, o princípio de uma crítica a este “vale de lágrimas” sobre o qual a religião espalha a sua auréola! A crítica arranca as flores imaginárias que cobriam as grilhetas do homem, não para que ele use grilhetas sem ornamentos e sem sonhos, mas para que a rejeite e colha a flor viva. A crítica desengana o homem para que ele pense, actue, dê forma à sua realidade, como um homem que atingiu a idade da razão ...».

71 O Cientifismo pode ser expresso por esta crítica de Alain BESANÇON, 1977, em Les Origines

Intellectuelles du Léninisme, Paris, Calman-Lévy, citada e traduzida por TODOROV (2002: 34): «A

salvação é o saber que a traz». Por isso, a divisa de então era que se as técnicas novas do conhecimento permitiam ao homem melhor dominar a natureza e aperfeiçoar o processo de produção, «(...) nada nos impede de pensar na criação de um homem novo, de uma espécie liberta das imperfeições da espécie inicial: o que é lógico para as vacas é-o igualmente para os homens.» (Idem Ibidem). Este espírito de revolução científico-tecnológica vai ser explorado até aos limites do bom senso por Hippolyte TAINE (1828- 1893) e por Ernesto RENAN (1823 -1892, que lhes extraem as consequências nos domínios social, moral, político e religioso, apologizando a superioridade do génio e a sua relação com o clima, a raça e o território, a crença absoluta na razão e na técnica, e a inutilidade da religião e da moral. Negando a autonomia da vontade e a determinação da liberdade, pressupostos básicos da democracia, Taine afirmará mesmo que só «a ciência conduz à moral» (TODOROV, 2002: 35). Este cientifismo da segunda metade do século XIX, enquanto ideologia da acção está também presente em outros autores, designadamente em Marx, na sua famosa XI tese sobre Feuerbach: «Até agora, os homens, não fizeram outra coisa senão dar diferentes interpretações do mundo: o que importa é transformá-lo» (seguimos a tradução e citação de TODOROV, 2002: 35). E esta transformação só podia ser, no mínimo, a-religiosa, quando não anti-religiosa porque «a religião é o ópio do povo» (MARX, A Ideologia Alemã, in LEFEBVRE, 1975: ). Por isso, o expoente máximo do cientismo, na moral, na ética, na política e na religião, Frederico Nietzsche, não é um produto isolado do Século XIX. É o seu corolário.

histórico72, e na reivindicação F. NIETZSCHEana» de um «homem novo», o «super-

homem», sobretudo porque «Deus morreu, Nós matámo-lo»73.

A acrescer a tudo isto, as contribuições hegelianas 74 para a integração da

Sociedade Civil no Estado pareciam demonstrar que a «verdadeira» «racionalidade» só se construiria numa organização político-social de «tipo novo», radical, que dissolvesse os antagonismos e rupturas económico-político-sociais e religiosas em presença, em suma, que instaurasse uma Nova Sociedade e um Novo Estado e salvasse a «Europa» do conflito em que vivia.

Propunha-se, portanto, uma orientação segundo leis de totalidade e integração e já não de organização ou de reorganização da pluralidade - e muito menos do pluralismo -, numa antecipação das teorias estruturalista e de sistema nas ciências sociais e nas da organização, a que, naquele contexto, a lógica das superações das antíteses nas dialécticas hegeliana e marxista não seriam alheias.

Em síntese, a emergência do totalitarismo, apesar de «tipo novo», no plano político, não caiu do céu. Herdeiro da integração do indivíduo no Estado como processo de construção do «Bom, do Bem e do Belo», preconizada por Platão; da máquina de poder triturador exigindo a submissão e alienação dos indivíduos, grupos e comunidades na Soberania Absoluta, de Jean Bodin; do descontrolo das «paixões» do «Príncipe», de Rousseau; da relação transpersonalista entre o indivíduo e o Estado, preconizada por Hegel, da morte de Deus e da vitória do «homo cientificus», de Taine, de Renan e de F. NIETZSCHE, encontrou no «triunfo da força do poder do Estado (que Alexis de Tocqueville anteviu) 75, sobre o indivíduo, e a sua esfera de

liberdade» (Paulo OTERO, 2001: 67), - proporcionado pela nova burocracia 76, saída

72 A ideia de materialismo histórico é uma invenção de Marx, na sua tentativa de sintetizar as duas

tendências da gnoseologia ocidental, idealismo e realismo, influenciando decisivamente, no futuro, quer a filosofias do conhecimento quer as epistemologias, afigurando-se a fenomenologia do conhecimento e a psicologia genética de Piaget como os principais herdeiros desta síntese. O que Marx e Engels preconizam é a des-sacralização do conhecimento e a sua humanização, como produto das acções humanas, das relações sociais e das relações económicas: «São os homens que produzem as suas representações, as suas ideias – os homens reais, activos, condicionados pelo desenvolvimento determinado das forças produtivas ... . A consciência é o ser consciente; o ser dos homens é o seu processo vital.» (Cf Marx, A Ideologia Alemã). Por isso, o materialismo histórico é o estudo e a explicação dos fenómenos sociais como produto da acção dos homens, dos seus grupos, dos seus interesses, das classes sociais, etc., correspondendo à primeira invenção da sociologia da acção social (Cf. LEFEBVRE, 1975: 68 e 171-190).

73 Cf presente capítulo, secção 2.2.3. . 74 Cf presente capítulo, secção 2.2.2. .

75 A expressão entre parêntesis é nossa. Cf. Capítulo III.

76 A este respeito, é interessante a análise de Marx, algo coincidente com a de Benjamin Constant (1835) e

com a de Alexis de Tocqueville (1840), acerca do processo de constituição do centralismo político e do aparelho de Estado, produtos ambos do processo da acumulação e concentração capitalistas, anuladores, por conseguinte, da autonomia e da liberdade comunitárias: «A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária dessas transformações foi a centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindo interesses, leis,

da especialização industrial, científica e tecnológica, a par da «despersonalização» e «atomização» do indivíduo, denunciadas por Hannah ARENDT (1972b), que a revolução industrial operara e que tornou mais fácil a aceitação dos ideais de revolução marxista -, o motor da luta contra o liberalismo e seus princípios fundamentais como se, mesmo o nacional-socialismo, tivesse assimilado tais ideais, na procura de soluções para o conflito social, para a depauperização do proletariado e para a crise da economia capitalista, em busca de novos mercados e de novas fontes de matérias primas e, por isso mesmo, necessitando de coesão política na ordem interna do Estado, o que justifica o autoritarismo na unificação da Alemanha de Bismarck, na Rússia de Lenine e de Estaline, na Itália de Mussolini, na Jugoslávia de Tito, na Espanha de Franco, etc..

As soluções que vão emergir, a partir de 1917, na então União Soviética, através da Revolução Bolchevique, liderada por Vladimir LENINE (1917- 1923) e por Leiba TROTSKY (também conhecido por Lev Davidovich), a que se seguiram as «soluções finais», e fatais, de Estaline (1923-1953); na Itália, a partir da fundação do Partido Fascista, em 1919, por Benito MUSSOLINI (1922-1945), que se transforma em «duce», quando toma o poder, em 1922, com os camisas negras; na Alemanha, com a eleição de Adolfo Hitler (1933 -1945) para líder do Partido Nacional-Socialista, em 1923, sendo nomeado Chefe do Governo em 1933, e Chefe do Estado, em 1934; em Portugal, a partir de 1928, com a nomeação de António Oliveira Salazar para Ministro das Finanças, com a nomeação de Gustavo Cordeiro Ramos para Ministro da Educação, em 1930, e com a do mesmo Salazar (1932 –1968), em 1932, para Presidente do Conselho (de Ministros); e, em Espanha, a partir de 1936, com a nomeação de Francisco Franco (1939-1976) para Presidente da Frente Popular, e transformado em «caudillo» após a vitória na Guerra Civil espanhola (1939), são soluções novas porque, como dissemos antes, e a não ser o regime soviético, inspirado na violência da filosofia da acção revolucionária marxista- leninista 77, não se enquadram em qualquer das

teorias político-administrativas até então dominantes, a saber, o liberalismo conservador, o liberalismo económico, a democracia liberal, o socialismo utópico e o marxismo /comunismo.

governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só Governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe, uma só barreira alfandegária.» (Marx, 1843/1975, Manifesto ...: 27)

77 O derrube da burguesia não pode ser senão violento: «(...) o processo de dissolução da classe

dominante, de toda a velha sociedade, adquire um carácter tão violento e agudo que uma pequena fracção da classe dominante se desliga desta, ligando-se à classe revolucionária (...).» (Marx, 1965: 34)

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